Autoria - Adriana Vilar de Menezes
Dissertação retrata percurso que resultou na elaboração de lei sancionada em 2003
Em meados da década de 1990, Adriano Bueno da Silva ouviu pela primeira vez o nome do líder negro Zumbi dos Palmares (1655-1695) ao escutar o rap “Afro Brasileiro”, da dupla Thaide e DJ Hum.
Tenho orgulho e bato no peito, sou descendente de Zumbi Grande líder negro brasileiro
Por nossa liberdade enfrentou exércitos inteiros Mas acabou perdendo a cabeça (...)
Até então, Silva desconhecia o personagem do quilombo localizado onde hoje é o munícipio alagoano de União dos Palmares e que virou símbolo de resistência à escravidão no Brasil. Nos bancos escolares do ensino fundamental ou médio, ele nunca havia estudado a cultura e a história afro-brasileira.
Ensinem nossa cultura à sua família
A nossa tradição, a nossa evolução
Tudo isso está em suas mãos
(Não é brincadeira não, estou falando sério)
95, trezentos anos de zumbi Vamos homenageá-lo, agindo assim (...)
A letra da música retratava uma das pautas do movimento negro reorganizado no final da década de 1970 e que, entre outras conquistas, culminou na criação da Lei 10.639, em 2003, instituindo a obrigatoriedade do ensino afro-brasileiro.
Em 2019, Silva deu início ao seu mestrado na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp com o objetivo de pesquisar o percurso de elaboração da lei. Sua dissertação, intitulada “Ensino de história e cultura afro-brasileira: de pauta do Movimento Negro à Lei 10.639”, orientada pelo professor Newton Antonio Paciulli Bryan e concluída em 2022, venceu o III Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog 2023, na categoria Educação – Mestrado. A pesquisa foi desenvolvida no Laboratório de Políticas Públicas e Planejamento Educacional (Lapplane) da FE.
Na dissertação, Silva lança luz sobre o que acontecia no país antes de a lei ser sancionada, em 2003, logo no início do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O pesquisador graduou-se em Pedagogia em 2011 sem ter acesso ao conteúdo em sala de aula, fato lamentado por ele. “Por isso, acho que minha trajetória de vida me empurrou para esse tema de pesquisa.”
Passados 20 anos, o ensino de história e cultura afro no Brasil ainda não está totalmente implementado nas escolas públicas e privadas. Silva, contudo, comemora ter havido uma evolução e que hoje já seja possível entrar em uma escola e conversar com as crianças sobre Zumbi dos Palmares, por exemplo. “Isso é muito significativo. A transformação está acontecendo, mas é um processo lento.” A implementação da lei e seus desdobramentos (como a lei 11.645/08, que tornou também obrigatório o ensino da história dos povos indígenas) são tema da sua pesquisa de doutorado, que está em andamento.
Segundo Silva, seu mestrado conseguiu identificar o embrião da lei de 2003 na atuação do movimento negro. Fundado em 7 de julho de 1978, em ato público realizado nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, o Movimento Negro Unificado (MNU) começou a defender a inclusão do ensino de história e cultura afro nas escolas. Campanhas críticas à perspectiva oficial da história nacional ocorreram em várias ocasiões, como no centenário da abolição, em 1988, mesmo ano da promulgação da atual Constituição.
“Eu identifiquei nove projetos de lei [de cunho antirracista], desde 1983, de autoria do então deputado federal Abdias do Nascimento.” Esse processo continuou nos anos 1990, quando integrantes do movimento negro começaram a ocupar vagas no Parlamento.
Pernambuco
O texto da lei 10.639 nasce primeiro de uma proposta do senador pelo Partido dos Trabalhadores (PT) Humberto Costa, em 1993, na Assembleia de Pernambuco, quando ele era deputado estadual. A proposta foi aprovada, mas o então governador do Estado, Joaquim Francisco Cavalcanti (PFL), não a sancionou. Costa foi eleito deputado federal e apresentou o mesmo texto no Congresso em 1995, que foi rejeitado. No entanto, passou pela Comissão de Educação da Câmara, presidida na ocasião por Esther Grossi. Os deputados Ben-Hur Ferreira e Esther Grossi reapresentaram o texto de Humberto Costa, que veio a ser aprovado em 1999.
Instigado por seu orientador, Silva questionou Humberto Costa sobre qual a relação entre um médico branco e o movimento negro. O senador informou que seu papel se resumiu a apresentar o projeto e que o responsável pela elaboração do texto foi o seu assessor José Severino de Oliveira, militante do MNU no Recife.
Na entrevista com Oliveira, Silva percebeu que o texto da lei havia nascido a partir das iniciativas tomadas em terras pernambucanas. “Na história do movimento negro, sempre se fala muito de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas houve protagonismo do Estado de Pernambuco. Isso precisa ser dito, sem tirar o peso histórico de figuras importantes para o movimento negro, como Benedita da Silva, Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento no Rio, e do fato de o MNU ter sido fundado em São Paulo”, explica.
Após testemunhar um avanço insuficiente das pautas negras no governo José Sarney, durante a abertura política, o movimento negro criou expectativas, logo frustradas, com a escolha do sociólogo Fernando Henrique Cardoso para presidente. Em 1995, o MNU organizou uma marcha com 30 mil pessoas até Brasília, pelos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, para entregar a FHC um programa de ação, nunca implementado.
Em janeiro de 2003, a lei 10.639, já aprovada, ainda não havia sido sancionada. “Foi um acontecimento. Lula tem o mérito de ter sancionado a lei, mas é importante registrar que o grande protagonista desse processo foi o movimento negro”, afirma o pesquisador. No mesmo ano, Lula criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, com status de ministério e sob o comando de Matilde Ribeiro, que também levou ao governo a pauta da criação de cotas raciais – cuja lei foi criada em 2012 e revisada e ampliada em agosto de 2023, tornando-se definitiva.
Nomeada como educação antirracista, pluriétnica, multicultural ou para a diversidade, tais termos se consolidaram no meio acadêmico como educação sobre as relações raciais. “Em um país em que mais da metade da população é afrodescendente, é uma vergonha ser necessária uma lei que nos obrigue a contar a história da África. Isso deveria ser natural”, defende Silva.
Decolonização
Na avaliação do professor Bryan, o trabalho de Silva contribui também para o movimento de decolonização. “Há um interesse acadêmico importantíssimo. Precisamos pensar em uma escola pública decolonial capaz de refletir sobre a nossa realidade.”
“Fiquei muito feliz com o prêmio, que funciona como divulgação científica. Isso deu visibilidade para um trabalho que precisa ser apropriado pelas pessoas”, conclui o hoje doutorando.
fonte: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/693/o-protagonismo-do-movimento-negro-no-ensino-da-cultura-afro