Por Francirosy Campos Barbosa, antropóloga e professora do Departamento de Psicologia da FFCLRP/USP
A polêmica sobre o uso do véu na França não é recente. Em 1989, o colégio Gabriel Havez teria proibido suas alunas muçulmanas de usarem véu, atitude que causou muitos protestos. No entanto, esses protestos não foram capazes de barrar a lei de n. 228 de 2004, que proibia o uso de signos (paramentos) de adesão religiosa nas escolas/liceus; excluídas de seu âmbito, porém, as universidades. A justificativa para adoção dessa lei foi o princípio da laicidade, no entanto, a comunidade muçulmana é a mais penalizada e são as mulheres muçulmanas as maiores vítimas.
Em 2009, a Lei n. 1192/201 foi proposta pelo presidente da República Nicolas Sarkozy e pela Assembleia Nacional. Essa lei proibiu a burca (vestimenta que cobre o corpo e o rosto das mulheres) na França. O Conseil Constitutionnel, na Decisão n. 613/2010, considerou constitucional a lei em questão, pois considerava que as mulheres que usassem burca atentavam para a desigualdade entre os sexos e promoviam insegurança, pois não havia possibilidade de identificação das pessoas em locais públicos. A Corte Europeia dos Direitos do Homem, por sua vez, também considerou que a lei não feria a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Affaire S.A.S. c. France, n. 43835/11). Por fim, sabemos que os reflexos do 11 de setembro de 2001 ainda estavam/estão presentes nesses discursos.
“[…] a burca não seria bem-vinda no território da República Francesa” tendo em vista que “[essa] não é a ideia que a República tem a respeito da dignidade da mulher” (Sarkozy).
Em 13 de julho de 2010, o governo francês – com base no Projeto de Lei n. 524 – passou a proibir o uso da burca (vestimenta islâmica usada no Afeganistão, no Paquistão e em outros contextos) e do niqab (mais usado na Península Árabe) em vias públicas, em lugares abertos ao público e nos destinados aos serviços públicos. A lei imposta considera que toda mulher que usa burca ou niqab é submissa e deve ser “salva” pelos ocidentais, proposição que é tão violenta quanto obrigá-la a usar tal vestimenta. É importante dizer que o véu não subtrai o pensamento, e a ausência dele não é significado de autonomia, embora todo discurso reforce essa ideia.
Na França, vivem mais de 6 milhões de muçulmanos, e mais ou menos 2 mil mulheres usavam essas vestimentas (burca e niqab) naquele período, o que não justificava tal reação. A dupla associação ao terrorismo e à opressão de gênero dada às mulheres tira delas a sua própria autonomia, desconsiderando suas escolhas. A proibição do uso dessas vestimentas islâmicas tenta esconder certo “discurso civilizacional” e “ideológico” e promove o apagamento da diferença, ampliando a hostilidade ao islam e aos muçulmanos.
É muito comum na nossa sociedade nos assustarmos com a polícia da moral no Irã e dissertar como “conhecedores” de causa sobre ela, que persegue mulheres sem o lenço; no entanto, nos silenciamos (na Europa e em qualquer lugar) quando se trata de garantir o direito à diferença e ao uso dos paramentos religiosos.
Em 25 de junho de 2013 o jornal oficial Observatoire de la Laïcité noticiou que foram registrados 705 controles ou abordagens, dos quais 423 relativos a mulheres com véus. No total foram abertos 365 procedimentos, com resposta penal em 96% deles, e apenas uma condenação por “dissimulação forçada”. As mulheres que são penalizadas devem pagar 150 euros, um valor muito maior do que pagava um cidadão que não usava máscara no período pandêmico da covid-19, que desembolsava 135 euros.
Na contramão da França, em 13 de março de 2015, o Tribunal Constitucional Alemão decidiu que as professoras muçulmanas podem, sim, vestir o véu nas escolas, invalidando a proibição adotada por alguns Estados. No entanto, torna-se uma ação isolada, pois a proibição de construção dos minaretes, a queima de alcorões em manifestações na Suécia são consideradas como liberdade de expressão e são comuns e conhecidas.
Em 2016 assistimos a outros decretos que afirmavam que trajes de banho que ostentem filiação religiosa fossem proibidos, assim, o burquíni, vestimenta de banho/ginástica de mulheres muçulmanas, passa a ser proibido. Vimos cenas de mulheres muçulmanas sendo retiradas à força de balneários franceses. O premiê francês Manuel Valls manifestou-se favorável à proibição do burquíni com o argumento de que o traje representaria um projeto político arcaico baseado na submissão feminina. Mais uma vez, homens falando por mulheres muçulmanas. Para Valls, a vestimenta islâmica, mesmo o burquíni, é incompatível com os valores franceses de laicidade. Infelizmente o discurso do premiê foi endossado pela Corte Europeia de Direitos do Homem.
No último domingo, o ministro da Educação, Gabriel Attal, proíbe na volta às aulas as meninas muçulmanas de usarem abaya. Attal disse: “Quando você entra em uma sala de aula, você não deveria ser capaz de identificar a religião de um aluno só de olhar para ele”.
O que Attal esquece é que a maioria das alunas de origem muçulmana tem sobrenome árabe, africano, iraniano; se não for a roupa que vai identificá-las, certamente os seus sobrenomes, a sua cor de pele e o seu comportamento vão distingui-las das demais alunas, algo que, por si só, explicita a relação entre a negação da existência do “outro” pelos Estado francês e a islamofobia. Quanto mais se criam leis que atingem diretamente a comunidade muçulmana, a violência contra as mulheres será ainda maior. São as mulheres, sempre, as que mais sofrem e são penalizadas com essas leis.
No Brasil, eu sigo com o meu lenço, abaya (quando vou à mesquita) e burquíni (quando vou à praia, à piscina, ao pilates), torcendo para que as mulheres possam ser o que quiserem em qualquer lugar do mundo.
fonte: https://jornal.usp.br/artigos/sem-lenco-sem-abaya-sem-burquini-a-islamofobia-francesa/