O MST é um dos maiores produtores orgânicos da América e um dos maiores movimentos sociais do mundo. Mesmo assim, a direita e a mídia tentam criminalizá-lo. Conversamos com a militante e deputada Rosa Amorim, que faz parte da primeira geração da bancada da reforma agrária, para entender como podemos reverter esses ataques e continuar ganhando mentes e corações.
UMA ENTREVISTA DE
Gercyane Oliveira - JacobinNos últimos anos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se tornou, com seus assentamentos, centro de formação, feiras agroecológicas, site de notícia, jornal e armazéns Brasil afora, o maior movimento popular da América. O que diferencia o MST dentre outros tantos movimentos sociais latino-americanos é o seu status explícito como um movimento de classe — e, não menos explicitamente, um movimento socialista.
Para entender como o movimento se organiza por dentro, conversamos com Rosa Amorim, deputada estadual em Pernambuco pelo PT e uma das sementes que germinaram através da estratégia radical do movimento. O pai Jaime Amorim compôs o primeiro grupo que saiu do sul do país para construir o MST no nordeste e a mãe baiana, Rubneuza Leandro, participou da fundação do MST em vários Estados até fincar sua bandeira em Pernambuco.
Com 26 anos, Rosa cresceu em Caruaru, no assentamento Normandia, conhecendo desde a infância os desafios da luta pela reforma agrária. Como deputada e militante, Rosa representa bem a origem popular do movimento que através da sua formação desempenha um papel fundamental no aumento da consciência de centenas de crianças, jovens e trabalhadores, na luta anticapitalista, anti-imperialista e anticolonial. Nesta entrevista exclusiva, ela fala sobre as estratégias do MST para enfrentar o bolsonarismo e continuar transformando a sociedade basileira.
GO
Vamos iniciar falando sobre sua trajetória política, e da sua atuação no MST.
RA
Sou filha de assentados da reforma agrária do MST e militantes durante toda minha vida. Sou filha dessa primeira geração de lutadores da reforma agrária, que já nasce dentro de uma terra conquistada na luta mais efetiva do movimento. Gosto sempre de dizer que fui alfabetizada para a luta dentro do MST. O movimento tem uma preocupação grande de forjar novas gerações de lutadores e lutadoras do povo. Claro que a decisão de se tornar militante é muito individual, de cada um, mas não tinha como ser uma jovem convencional na conjuntura política que eu estava e não estar envolvida nas lutas sociais.
Eu me formei enquanto militante numa organização de jovens que é o Levante Popular de Juventude (LPJ). Construí o LPJ por orientação do MST, que tem uma contribuição gigante na luta pela educação. Então, foi no movimento estudantil que eu fui criando minhas raízes na luta social, na luta pela educação. Começando no grêmio estudantil secundarista, participando das lutas de 2013, mas mais ainda quando eu entro na universidade em 2015.
“Dentro desse processo o MST decidiu pela primeira vez na sua história lançar candidaturas em todo país para ocupar o parlamento.”
Em 2016 o país viveu uma ruptura democrática com o golpe que o Brasil sofreu na retirada da nossa presidenta Dilma da Presidência da República. Isso criou uma crise gigante no nosso país, principalmente uma crise política que teve uma consequência direta nas universidades. Então, foi nesse processo que firmei meu lugar na luta. Fui suspensa da universidade em 2016, quase expulsa, por conta das ocupações que os estudantes fizeram contra a PEC do congelamento dos investimentos públicos por 20 anos, a Emenda Constitucional 95, e esse período longe da universidade me fez cada vez mais afirmar meu lugar na luta.
Estive por 3 gestões na União Nacional dos Estudantes (UNE). Na última gestão na executiva como Diretora de Cultura, esse também é meu campo de atuação: sou estudante de teatro da UFPE. E nesses últimos 4 anos, junto ao MST, construí aqui em Pernambuco uma campanha de solidariedade no meio da pandemia, uma campanha que se nacionalizou, a Mãos Solidárias. Uma campanha muito importante para ajudar o povo a enfrentar a fome. Trabalhamos principalmente nas periferias da cidade do Recife, atendendo mais de 50 comunidades, um trabalho popular de base e de solidariedade de classe.
Dentro desse processo o MST decidiu pela primeira vez na sua história lançar candidaturas em todo país para ocupar o parlamento. E então o MST me faz esse convite, para eu ser o nome a representar o MST aqui no Estado de Pernambuco, no intuito de dizer: se vamos ocupar a política a gente também precisa pensar essas representatividades. Então foi uma aposta numa mulher jovem, negra, lésbica que representa também um processo de renovação da política junto ao MST.
(Reprodução)
GO
O MST conquistou resultados muito relevantes nas últimas eleições. Como vem sendo a atuação na prática dentro dos limites institucionais?
RA
De 15 candidaturas, o MST elegeu 7. Foram 3 deputados federais e 4 deputados estaduais em diversos Estados de diferentes regiões do nosso país. A maior concentração está no Nordeste, mas também no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, onde tivemos uma vitória muito importante com a deputada Marina do MST. Nesse momento a gente pode dizer que fazemos o enfrentamento dentro da institucionalidade, com a ideia de que cada vez é mais importante ter representações da sociedade civil organizada ocupando o parlamento.
Nós entendemos que as leis são as lutas institucionalizadas e quem faz luta nesse país também precisa nesse momento ocupar espaços de decisão. Também é um momento de aumentar uma bancada de esquerda, comprometida com a democracia. Foi com esse intuito que o MST decidiu disputar as eleições num momento de fragilidade da nossa democracia e polarização da sociedade. Um dos desafios e responsabilidades do MST com nosso país foi lançar candidaturas para fazer uma disputa ideológica na sociedade, fazendo um debate de projeto de país, que é um projeto popular, democrático, que respeite e lute pelos direitos do povo.
“Nossas pautas não se restringem apenas às bandeiras do campo, nosso projeto é muito mais audacioso: é um projeto de transformação de país.”
Importante frisar que nossa atuação, mesmo estadualizada, vem sendo cada vez mais nacionalizada. Nós dizemos que as representações do MST no parlamento compõem uma bancada da reforma agrária a nível nacional. Deputados estaduais e federais comprometidos com a reforma agrária, pela democratização da terra, com a luta do povo trabalhador rural, mas estendendo cada vez mais a nossa bandeira da reforma agrária. Nossas pautas não se restringem apenas às bandeiras do campo, nosso projeto é muito mais audacioso: é um projeto de transformação de país. Portanto, nossas bandeiras são a reforma agrária, a luta pela terra, a luta do povo do campo, a luta contra o latifúndio e o agronegócio, mas é também a luta da educação, das mulheres, do povo negro, da saúde.
GO
Sendo um projeto audacioso, como você mesma disse, o MST busca oferecer uma alternativa radical de sociedade frente à destruição capitalista?
RA
Com certeza. Nos marcos do que permite a nossa democracia e a constitucionalidade, sim. Agora o MST vive um momento muito difícil. Inclusive, no parlamento essa vem sendo a nossa defesa: nós somos militantes do MST, mas também somos parlamentares e estamos dentro da institucionalidade fazendo uma defesa intransigente da nossa organização que vem sendo atacada por meio de uma CPI que tem como finalidade criminalizar MST.
“O que a gente fala o tempo inteiro é que o MST quer garantir o que está na nossa Constituição de 1988: que as terras improdutivas sejam destinadas a cumprir a sua função social.”
Para nós é muito importante não só a nossa bancada no Congresso Nacional, mas também trazer deputados aliados do MST para defender as nossas bandeiras. Temos como ponto central a nossa crítica ao modelo do agronegócio, à bancada do boi, da bala e da bíblia. Mesmo com um governo popular e progressista eleito, temos um grande enfrentamento a fazer no parlamento. A gente precisa enfrentar aqueles que querem cada vez mais diminuir os nossos direitos dentro da institucionalidade.
GO
Você tocou em um ponto chave, a CPI do MST que está tramitando no Congresso. O MST é um alvo histórico da violência estatal no campo e da perseguição midiática, e agora na arena parlamentar. Quais são as perspectivas do movimento nessa conjuntura, no governo Lula III, diante desses ataques? Há uma defesa intransigente do socialismo ou o movimento tem uma outra perspectiva?
RA
O nosso horizonte é socialista. O MST tem isso no seu princípio, nas suas cartilhas. O nosso trabalho e luta de organização do povo é para a construção de uma sociedade onde todos e todas possam viver com dignidade e nós não vamos resolver as desigualdades sociais do nosso país se não resolvermos a questão central, que é a raiz dessas desigualdades desde que o Brasil é Brasil que é a questão da terra, da concentração da terra, do latifúndio. Há tanto trabalhador sem terra e quanto tanta terra sem trabalhador que poderia ser ocupada por trabalhadores que queiram produzir seu alimento, para fortalecer nossa soberania alimentar.
“A forma que a gente faz de ocupação das terras é para pressionar o Estado a fazer valer a nossa Constituição.”
O que a gente fala o tempo inteiro é que o MST quer garantir o que está na nossa Constituição de 1988: que as terras improdutivas sejam destinadas a cumprir a sua função social. Essa tentativa de criminalização do MST fere a própria Constituição. Nós não temos histórico do Estado dar de mão beijada terras improdutivas para o povo. A forma que a gente faz de ocupação das terras é para pressionar o Estado a fazer valer a nossa Constituição.
GO
Retornando ao início, sua trajetória no movimento estudantil veio da atuação do MST na educação de seus militantes, nos campos de formação. Nos conte um pouco mais sobre a atuação do MST na educação.
RA
O MST entende que o que queremos não é mais uma reforma agrária clássica que é apenas a conquista da terra. Nós mudamos o nosso conceito há 10 anos: a nossa luta é por uma reforma agrária popular. Por que Popular? Porque ao ocupar a terra, muitas outras demandas de lutas e bandeiras surgem. A luta por uma saúde no campo, por educação no campo, por estrutura, infraestrutura, cultura e etc.. Então, lutar por uma reforma agrária popular quer dizer que a gente quer construir naquele espaço uma nova sociedade através do bem-viver.
Dentro disso surge pra nós uma luta muito importante pela educação no campo. Por exemplo, temos um modelo instaurado no nosso país – eu não estou dizendo que eu sou contra porque é um processo de reparação, mas não é o ideal – que é a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Se pensarmos, por exemplo, EJA do campo é um modo de reparação, mas, entender o que é o EJA, na sua essência, exime o Estado e os Municípios de proporcionarem uma educação básica para quem vive no campo. Então, nós queremos que as crianças tenham acesso a educação básica, que a juventude tenha acesso ao ensino médio e queremos ver esses jovens do campo ingressando na universidade. Portanto, o MST é muito importante no desenvolvimento desse conceito a nível nacional da educação no campo.
A luta por escola do campo passa pelo MST, a luta pelo Programa Nacional de Ensino Superior para a Reforma Agrária (PRONERA) passa pelo MST, e cada vez mais incentiva os jovens a não abandonarem o campo, mas avançarem na sua pesquisa, na produção de ciência. E ao adquirir esse conhecimento tem um retorno para qualificar a sua atuação no campo. Tem uma música que diz: “não vou sair do campo pra poder ir pra escola, educação do campo é direito e não esmola.” Para nós, a educação do campo é um direito. Queremos o meio rural desenvolvido e para isso precisamos ter educação.
GO
Quais competências e estratégias o MST deve tentar desenvolver dado que o objetivo do movimento é também ocupar a arena do Estado para transformá-lo?
RA
A nossa luta se dá, eu diria, em três campos hoje. Na nossa luta social, nós continuamos fazendo um trabalho contínuo. A nossa luta social é de organização do povo, trabalho de base, elevação do nível de consciência, ocupação das terras e denúncia do latifúndio. A luta social é que fez o MST ser o que ele é hoje. Nós tivemos vitórias concretas através desse campo, que continua na ordem do dia pois não paramos no processo de denúncia do latifúndio.
“Nós acabamos de passar por uma Feira Nacional da Reforma Agrária que superou as nossas expectativas: foram mais de 500 toneladas de alimentos comercializados.”
Tivemos o nosso abril vermelho este ano em que a principal bandeira de luta não foi sobre as ocupações, que foram pouquíssimas este ano, mas a cobrança do Estado para resolver as milhares de famílias que vivem há mais de 10 anos embaixo de um barraco de lona. Famílias que estão embaixo de um barraco de lona, reivindicando um pedaço de terra, terras que já foram comprovadas pelo INCRA que não cumpre a sua função social. Então nós continuamos avançando na democratização do acesso à terra, mas precisamos resolver aquelas terras que foram ocupadas e até agora não resolvidas. A nossa luta social continua na ordem do dia e está presente em diversos âmbitos.
O segundo campo eu diria que é a luta ideológica que para o MST é muito importante. O exemplo básico é que hoje qualquer pessoa que quer se dizer de esquerda coloca um boné do MST. Nós acabamos de passar por uma Feira Nacional da Reforma Agrária que superou as nossas expectativas: foram mais de 500 toneladas de alimentos comercializados na principal cidade, o principal motor econômico do Brasil, que é São Paulo. E mais do que fazer uma feira da reforma agrária em São Paulo foi o quanto a gente conseguiu dialogar com a sociedade brasileira sobre a importância da reforma agrária.
Se você quer conhecer o MST você precisa conhecer aquilo que o MST faz, o que o MST produz. Então as feiras cumprem esse papel, que está dentro da nossa batalha ideológica na sociedade. Ainda vivemos uma disputa muito grande de narrativas no nosso país, porque a principal base da economia do Brasil é o agronegócio que exporta apenas 5 produtos e o povo brasileiro desconhece que a maioria daquilo que comemos no nosso dia a dia vem da agricultura familiar que em grande parte são assentados e acampados da reforma agrária que produzem. Então, para além da nossa luta social, construímos a luta ideológica, a batalha das ideias, a luta para fazer com que a sociedade entenda a importância da nossa luta e tenha uma aderência a ela.
Por fim, eu colocaria a luta institucional, que é a que o MST está entrando cada vez mais. Colocamos também como prioridade uma defesa irredutível do governo Lula, mesmo que tenha algum ruído sobre a relação do MST com o governo. É um governo importante para avançarmos no fortalecimento da democracia. Então, o retorno do Ministério do Desenvolvimento Agrário, a criação do Ministério dos Povos Indígenas, do Ministério da Igualdade Racial, enfim, ministérios que transversalizam pautas importantíssimas, que defendemos firmemente.
O compromisso do Presidente Lula em fazer com que a reforma agrária avance nesses quatro anos, é um compromisso que estamos brigando porque é um governo de disputa que pode fortalecer a nossa luta institucional. Cada vez mais deputados e deputadas aderem à bandeira do MST. A CPI está aí pra provar isso: o quanto temos apoio não só desse campo da esquerda mais tradicional, mas de cada vez mais di campo institucional que começa a compreendendo melhor a importância da luta do MST. Ou seja, a luta social, ideológica e institucional caminham juntas para que a gente construa o MST e transforme a sociedade brasileira.