Sempre acreditei na autoclassificação, desde a época em que trabalhava para disseminar a estratégia do Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI)
Assuntos como quesito cor, preto, pardo, afrobege, negro por conveniência estão pipocando na minha internet — porque a internet é feita de bolhas, não posso deixar de ressaltar. Quase sempre, nessa minha internet, os assuntos estão sendo discutidos por pessoas negras. As brancas não costumam entrar no debate, mesmo quando convidadas, dizem que não têm lugar de fala para se posicionar sobre racismo.
Eu sou da geração que entendia que se autodeclarar preta era um ato político, independentemente de ter a pele retinta ou não. Então, mesmo não tendo uma pele retinta, sempre me disse preta, tanto ao preencher o famigerado Censo, na hora de preencher os formulários de documentos como carteira de identidade, passaporte ou qualquer outra coisa. Publicamente, sempre me coloco como preta ou negra. Nunca, jamais me disse parda, mesmo não sendo retinta e tendo total consciência que pardos também são negros.
A questão atual, aquela que ronda a minha internet, está no fato de as pessoas não brancas se autodeclararem negras. Obviamente, muitas delas não são negras mesmo, mas muitas são e, quando o fazem, são atacadas objetiva ou subjetivamente. São chamadas de afrobege, negro conveniente e assim por diante.
Eu sempre acreditei na autoclassificação, desde a época em que trabalhava para disseminar a estratégia do Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), por volta de 2005 e 2006, e que tinha, entre seus objetivos, disseminar a importância da aplicação do Quesito Raça/Cor nos formulários do Sistema Único de Saúde (SUS). Aquela estratégia provocava a população a fazer uma reflexão profunda sobre identidade e, por vezes, era nesse momento que a negritude falava mais alto.
O que pesa é que não existe a possibilidade, pelo menos em formulários oficiais, de colocar não branco, o que poderia, talvez, dar conta de uma série de miscigenações e identidades presentes no Brasil. Então, quem se entende negro e não tem pele retinta coloca pardo, mas também quem não se enxerga negro nem branco também coloca pardo, que se soma à categoria preto para identificar pessoas negras. Essa dificuldade ou o resultado dela em termos estatísticos impacta, por exemplo, na definição de políticas públicas em todos os níveis e muito para além das cotas raciais.
Por isso, é urgente discutir o assunto e buscar soluções para acomodar todas as pessoas como elas se enxergam e identificam. Mas é também preciso provocar cada uma delas para uma reflexão aguda sobre identidade étnico-racial, e o racismo não pode ser o único elemento nesse processo.
É nesse momento que o conceito ou ideia de consciência negra, amplamente disseminados pelo movimento social negro em toda sua história e, com mais veemência, a partir do final da década de 1970, pode ser fundamental. Em outras palavras, eu não acredito que alguém deve se autoidentificar como preto porque, infelizmente, o racismo é muito mais severo com quem tem pele retinta. Também não acho que pessoas não brancas devem usar pardo se não têm nenhuma consciência negra, identidade ou proximidade com a negritude. Mas concordo que pessoas negras de pele clara identifiquem-se como pardas nos formulários e como negras publicamente e em espaços sociais se assim se sentirem mais confortáveis.
Contudo, esses são os meus achismos, que faço questão de disseminar na minha internet e nos espaços de formação de opinião por que transito, como a imprensa. O debate está aberto e uma das únicas certezas é que, talvez, todas essas pessoas, com ou sem dificuldade de se autodeclarar étnico e racialmente, possam falar e se ouvir mutuamente no sentido de aprofundar a discussão e encontrar caminhos para a fortalecer, especialmente a comunidade negra, e enfrentar o racismo, inclusive e sobretudo, as pessoas brancas, que ainda insistem em se esquivar do debate.
Dividir mais, categorizar ainda mais, não me parece a melhor estratégia neste momento, especialmente com a sofisticação do racismo que temos presenciado. Enquanto torcemos o nariz cada vez que uma pessoa parda se diz negra, podemos deixar de lado a possibilidade de fazer frente as estratégias de miscigenação, embranquecimento e tantas outras que reforçam, até hoje, o mito da democracia racial.
RACHEL QUINTILIANO, jornalista, ativista, colunista e membro fundadora da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do DF