Pesquisa da USP abordou o protagonismo de mulheres negras quando as leis abolicionistas estavam surgindo e como elas conseguiram suas liberdades, apesar dos entraves jurídicos
Publicado: 21/06/2023 - Jornal da USP
Texto: Thais Morimoto*
Arte: Simone Gomes
Manoela conseguiu sua liberdade pouco depois de nascer, após a luta de sua mãe, Benedicta Maria de Jesus, que pagou sua alforria com cinco dólares emprestados. Após alguns anos, Manoel Luis Teixeira, o antigo proprietário de Manoela, roubou os documentos que provavam sua liberdade e a reescravizou, dando início a uma grande batalha judicial. Essa e outras histórias foram estudadas em uma pesquisa de mestrado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Autora da dissertação A agência de mulheres escravizadas na luta judicial por suas liberdades em Taubaté (1850-1888), Giovana Puppin Tardivo analisou a batalha travada entre mulheres escravizadas e defensores do sistema escravocrata. O período deveria marcar o fim da luta, mas representou o começo de um longo processo histórico de desconstrução da mentalidade escravista, que perdura até hoje. Giovana fez levantamentos demográficos da região de Taubaté, no estado de São Paulo, e percebeu como o local onde viviam e as particularidades da vida de cada mulher se relacionavam com a conquista de suas liberdades não apenas legalmente, mas reais.
“Tem vários fatores que influenciam no cotidiano das mulheres escravizadas, por exemplo, se elas moravam em um pequeno ou grande plantel e que tipo de atividade elas estavam destinadas, o trabalho doméstico ou agrícola, plantando gêneros alimentícios ou café; então cada região tem suas características demográficas particulares”, afirma a pesquisadora.
Giovana estudou 36 documentos do arquivo público do município e, segundo ela, muitas vezes, as mulheres escravizadas procuravam brechas nas legislações que estavam surgindo em favor da libertação dos escravizados.
Nem sempre, porém, os juízes seguiam a legislação vigente. “Na grande maioria das vezes, havia juízes que não estavam interessados, que ficavam sempre do lado dos escravizadores, mesmo se tratando de mulheres em condição ilegal”, afirma Giovana. Alguns dos juízes até inventaram dispositivos de leis para manter as mulheres em cativeiro. Além dos magistrados, alguns advogados também não ajudavam. “Existem documentos que mostram que os representantes demoravam para responder ao juiz, não sabiam argumentar e não estavam interessados; desapareciam e largavam [o caso]”.
O gênero feminino
A escolha do gênero feminino buscou dar visibilidade a esse grupo que não teve reconhecimento do seu protagonismo histórico nos séculos passados. “A escravidão é muito estudada, mas pesquisas sobre escravidão e gênero são recentes. Eu diria que começaram a partir da década de 1980”, afirma Giovana.
A história das mulheres escravizadas é ainda mais singular, em vista do cotidiano marcado pela particularidade do gênero, como os abusos sexuais. Elas tinham suas intimidades violadas e não possuíam o domínio do próprio corpo. Manoel, por exemplo, mantinha relações ilícitas com algumas mulheres, o que parece ter motivado atitudes para manter cativas sexuais, de acordo com algumas testemunhas do processo movido por Manoela contra o antigo dono. Manoel tentou chantagear sua tia, Clara, para que ela voltasse ao seu poder em troca da liberdade de Manoela. Mas, se aceitasse as condições, Clara poderia ser vítima do estupro, de acordo com a pesquisadora em sua dissertação.
Manoela conseguiu provar a compra de alforria por meio de sete testemunhas sem que Clara precisasse aceitar a chantagem. Mas nem sempre a história tem um final de vitória para as mulheres negras. “Ainda hoje, infeliz e brutalmente, a gente ainda vive uma continuação dessa exploração e desigualdade que a mulher negra sofre”, segundo Giovana.
* Assessoria de Comunicação da FFLCH