Cândido Grzybowski
Construir e conquistar hegemonia democrática na atual conjuntura brasileira implica em realizar um trabalho político de busca coletiva, inadiável e insubstituível, que só nós, cidadanias ativas, podemos empreender. Ele supõe diálogos permanentes para dentro - em busca de unidade entre a diversidade de atores, identidades e vozes, que temos como cidadanias ativas em luta por direitos – e para fora, visando disputar e vencer uma verdadeira guerra política de concepções e ideias, sobretudo frente ao capitalismo e às direitas em geral, com sua defesa intransigente do primado de interesses individuais acima de tudo, no seio da sociedade civil. Esta é uma ação política constante, plantando e regando as bases vivas de uma democracia intensa e em renovação permanente. Trata-se de agregar e fortalecer um bloco histórico das múltiplas diversidades que carregamos em torno a um comum de princípios, valores, concepções de viver e conviver, com capacidade de promover um processo democrático ecossocial transformador.
Não podemos desprezar ou minimizar os desafios que existem. Estamos diante de um capitalismo velho de alguns séculos, assentado no mais radical individualismo, que explora, destrói e domina em busca de acumulação individual crescente, definida como caminho para o desenvolvimento econômico em benefício de todo mundo. Com ele e dependendo dele não temos como fazer justiça ecossocial, nem imaginar outro mundo. Hoje, os “donos” deste mundo de exclusões e destruições, baseado no capitalismo neoliberal globalizado, pregam que não existem alternativas e corrompem nossos imaginários. Com sua propaganda sistemática, valendo-se tanto das mídias tradicionais e como das novas tecnologias de comunicação e seus algoritmos, vem colonizando corações e mentes de toda população, com valores, concepções, modos de pensar, consumismo e estilos de vida, sempre apontando que não existem alternativas viáveis. O fato mais relevante, a gitantesca desigualdade social e a destruição da natureza, em crescimento vertiginoso, nem é adequadamente diagnosticado como resultado palpável de tal modo de produção, podendo nos levar a uma catástrofe planetária e humanitária sem precedentes.
Mas insurgências e resistências a tal ordem sempre existiram e vem se multiplicando. O viver humano é, a seu modo, uma busca e uma insurgência sem fim. Sempre demonstrou capacidade de superação diante dos desafios mais trágicos. Civilizações acabaram, como o capitalismo vai acabar um dia. Porém, não sabemos quando e nem qual é a capacidade de resiliência do sistema natural, que nos dá a vida, o nosso Planeta Terra. Com o estilo de vida humana atual, imposto pelo consumismo capitalista, já superamos muitos os limites dos sistemas ecológicos fundamentais à integridade do planeta.[2]
Vivemos neste mundo e a nós cabe, às gerações de hoje e às que virão, enfrentar isto. Como reflexão e debate, existem muitas iniciativas de redes mundiais sobre novos paradigmas. Simplificando, e muito, podemos estabelecer que estamos diante de três alternativas, grosseiramente somente três! De alguma forma ou outra, este cenário de três possibilidades resume a gravidade do dilema que temos como humanidade.
Uma é ajustar e remediar, aqui e lá, adiando ao máximo a catástrofe anunciada. Ela não se propõe mudar a lógica estrutural, mas corrigir os excessos. Aqui cabem todos os acordos estabelecidos nos órgãos multilaterais existentes e no âmbito da ONU, como são hoje os ODS, boas intenções não impositivas. O “global new deal” vai nesta mesma linha, assim como a suposta responsabilidade social empresarial. Nada de bom dá para esperar do desenvolvimento de novas tecnologias, como o “capitalismo verde” e/ou a reengenharia para a captura e estocagem de carbono. O surpreendente hoje é que até, de algum modo, esta perspectiva de melhorar o que destrói e exclui é referendada pelo principal espaço de encontro do capitalismo neoliberal, o Fórum Econômico Mundial, de Davos. Ele propõe agora um capitalismo “multistakeholders”, onde todos supostamente ganhariam! Cabe a pergunta: quem seria explorado e destruído para todas e todos poderem ganhar, se o sistema se baseia na exploração do trabalho e no extrativismo sem limites dos recursos da natureza, ao que se juntam todas as outras mazelas como patriarcalismo, racismo descarado, intolerâncias, violências e guerras.
A segunda e mais provável alternativa, no estado atual da geopolítica, é nada mudar. Trata-se, por todas as evidências já conhecidas, de um caminho que nos levará ao colapso de dimensões planetárias e afetando a maior parte da humanidade. Um capitalismo para os que sobrarem, um mundo fortaleza, de condomínios e até países super protegidos, com muralhas, armados e vigiados dia e noite, como já estão sendo criados, de algum modo, pelo mundo inteiro. Seria o mundo de muralhas reais ou fictícias intransponíveis para humanos “fracassados e indesejáveis”, que o capitalismo cria mais e mais.
A terceira, grosso modo, é transformar tudo e, de algum modo, refundar o viver humano em convivência e respeito entre si e com a natureza. Visões iluminadas e ensaios práticos existem e tem virtuosidades como inspiração, mas, lamentavelmente, são sementes e experimentos pontuais, ainda pouco conhecidos e debatidos. Precisam ser construídos e ganhar potência democrática ecossocial transformadora para promover mudanças desde o aqui e agora. De toda foram são sinais claros que existem alternativas possíveis e viáveis, mas não virão do capitalismo ou dos Estados dominados pelas forças políticas que o defendem. Estamos dispostos a encarar e lutar para torná-las viáveis e centrais, de algum modo, como novos paradigmas de viver e democracias de alta intensidade?[3]
De todos os modos, considero que qualquer alternativa transformadora deverá ser feita democraticamente para realmente significar conquista de direitos ecossociais iguais na diversidade. Esta questão é que está no centro de minhas buscas e reflexões. A participação no evento em Recife fortaleceu ainda mais esta perspectiva e me deu luzes sobre a importância estratégica de estabelecermos diálogos democráticos. O objetivo coletivo, de cidadanias em ação, no seio da sociedade civil, é construir e almejar a conquista de hegemonia democrática como direção política na sociedade e no poder estatal, com impacto transformador e regulador da economia em nome de garantir direitos iguais para todas e todos, sem deixar ninguém para trás.
A grande questão de fundo nestes diálogos é a construção de concepções e imaginários, de princípios e valores comuns, com capacidade de agregação da diversidade intra e inter movimentos de cidadanias ativas, sem hierarquias e sem dogmatismos, valorizando as múltiplas e legítimas identidades, vozes e demandas. Ao mesmo tempo, trata-se de diálogos com visão estratégica transformadora, que implica ganhar poder coletivo democrático, enfrentando as disputas de ideias no seio da sociedade civil, gerando ondas políticas democráticas irresistíveis diante das forças que sustentam o domínio e os privilégios das classes dominantes.
As lutas específicas sempre foram e continuam sendo base fundamental, pois constituem, a seu modo, formas estratégicas de garantir vida no aqui e agora. Além disto, é através de tais processos de organização e luta que se constituem movimentos de cidadania ativa e se expressa a enorme diversidade de modos de se ver, viver e conviver que a sociedade pode conter. Está em jogo o fundamental princípio de ter direito ao pertencimento e ao reconhecimento, indispensável para se sentir sujeito emancipado e de direitos iguais. Neste sentido, quanto mais identidades e vozes de cidadania ativa é melhor. É mais democrático e vivo, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, mais complexo e desafiante.
Uma potente cultura democrática, com capacidade de disputar hegemonia, assenta no princípio de direitos iguais na diversidade, sem exclusões ou discriminações. Mas como cultura democrática, com virtude de ser capaz de conquistar adesão e ser compartida pela grande maioria, precisa construir o seu próprio eixo catalizador, uma espécie de cimento político e cultural de valores, concepções, análises, ideias, propostas e argumentos consistentes, tornando-se irresistíveis. Isto para ser capaz de disputar imaginários coletivos frente ao bloco histórico dominante, com sua capacidade de “comprar lealdades” e dominar o mundo da comunicação e dos debates sociais, mas com suas próprias complexidades e contradições. Afinal, ideologias dominantes, a seu modo, são sempre datadas e situadas, podendo ser combatidas e demolidas, até tornar-se dominadas e insignificantes. A história não acaba enquanto a humanidade existe!
A busca permanente de emancipação, começando por pensar por si mesmo e para si, se libertar das imposições ideológicas reinantes e buscar os semelhantes na mesma condição, é o pilar de sustentação de uma consciência cidadã determinada. Mas ela necessita, ao mesmo tempo, reconhecer-se no pertencimento e no compartilhamento, tanto de sonhos e esperanças como das violências e violações vividas e sofridas, com muitas e muitos outros. É assim que se formam as potentes organizações e movimentos de cidadania ativa em democracias. Mas sempre, de alguma forma, tais movimentos, como forças em luta, implicam em se forjar a partir de diversidades em seu interior, dadas as múltiplas transversatilidades e interseccionalidades que são próprias da vida: de gênero, idade, cor da pele, grau de formação, de opções culturais e religiosas, trabalho em busca do sustento, profissão e renda, território de vida, país de origem, migrações realizadas por escolha ou imposição, entre tantas outras que podem ser encontradas. Isto tudo pode estar de algum modo formando um complexo movimento de cidadania ativa. Mas sua potência se faz a partir dos diálogos internos e no esforço de incluir todas e todos, dando conta de transversatilidades e interseccionalidades.
Aqui cabe salientar primeiro os diálogos estratégicos para dentro, em cada movimento de cidadania ativa, uma tarefa sempre indispensável e em renovação. Ao mesmo tempo, mas em simultaneidade, o desafio é construir fóruns de diálogo estratégico permanente entre diferentes e potenciais aliados ou inter forças de cidadania ativa, em busca dos valores e concepções comuns, dos acordos sobre análises e propostas no presente histórico e na visão de futuro desejável. Tudo isto forma o conjunto de condições políticas e pedagógicas que permitem forjar um grande bloco histórico democrático de diferentes movimentos de cidadanias ativas.
Democracia sempre é e será uma busca por um pluriverso de se sentir titular e de viver com direitos iguais na diversidade. Os direitos se definem conscientemente como tais nas lutas democráticas, muitas vezes até antes mesmo de serem reconhecidos, constituídos e instituídos pelo Estado. Os direitos se destilam conscientemente no viver, nas relações de todos os tipos que historicamente estabelecemos como humanos e com a natureza, o grande comum de toda vida, de humanos e não humanos. Hoje, defendo que temos que pensar e lutar democraticamente por direitos iguais na diversidade ecossocial, condição fundamental para superar a catástrofe que o capitalismo nos aponta como futuro para a humanidade e a natureza que nos dá condições de vida.
Direitos iguais só podem se concretizar como direitos democráticos ecossociais. Tão simples e complexo assim! Será sempre uma busca, pois não tem limites e sim um método de ir fazendo e conquistando: a democracia mais viva e intensa, de bom viver para todas e todos. Por isto mesmo, construir e conquistas hegemonia democrática é, como tarefa política, uma tarefa permanente, pois o fim é a possibilidade dela mesmo: disputar e alcançar os melhores acordos coletivos possíveis no momento histórico para a maioria e para preservar a integridade da natureza. Nisto consiste o que chamo o poder transformador de uma democracia ecossocial. Haja desafio nisto!
[1] De 20 a 23 de março, em Recife, participei de um seminário de trabalho intitulado Oficina II. Tratou-se de uma retomada e reavaliação de condições e possibilidades de participação social nas políticas governamentais, proposta da Oficina I, de 2003, no início do primeiro Governo Lula. Não participei da Oficina I, mas sou muito grato aos organizadores pelo convite para participar da Oficina II, um evento de grande intensidade e inovação no diálogo político entre representantes de cidadanias diversas, necessário nos dias de hoje. Foi muito inspirador para as questões que envolvem a busca de hegemonia como tarefa coletiva.
[2] Ver o importante estudo do Stockholm Resilience Center: Planetary Boundaries <https://www.stockholmrsileiente.org>
[3] Participo das discussões da rede de debates GTN – Great Transition Network –, animada pelo Tellus Institute, de Boston, USA, desde 2008. Adoto para debate a proposta, que anima a GTN, de três cenários possíveis para o futuro. O Ibase publicou o livro de Paul Raskin, presidente do Tellus, sob o título Jornada para Terralanda: A grande transição para a civilização planetária. Rio de Janeiro, Ibase, 2018. Em 2020, em consultoria para ABONG e Ibase, eu mesmo produzi um texto síntese sobre a proposta e debates do GTN, assim como do Grupo sobre Comuns, nascido no interior do FSM, mas crescendo de forma totalmente independente. O estudo foi completado com caracterização de várias outras iniciativas de reflexões e debates em rede sobre novos paradigmas. A versão digital do estudo foi produzida pela ABONG para um ateliê no Fórum Social Temático de 2021.