Quase lá: Nancy Fraser busca o mapa do Pós-Capitalismo

 

Sistema vive uma de suas crises mais profundas, diz a filósofa — por isso, há riscos de fascismo e chances de transformação. Mas elas só vingarão se for possível, a tempo, passar das pequenas revoltas a um amplo projeto de novas relações sociais

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Nancy Fraser em entrevista a Anne Strainchamps para o Wisconsin Public Radio | Tradução: Maurício Ayer 

A história do nosso tempo é uma novela de crises sobrepostas: mudança climática, pandemia, turbulência econômica, guerra, violência racial e muito mais. A filósofa Nancy Fraser chama essa condição de “tempestade perfeita da irracionalidade e injustiça do capitalismo”. Trata-se de um momento que ela vem prevendo – e até esperando – há muito tempo.

“Momentos de crise profunda e aguda que são visíveis para muitas pessoas, crises que são vividas como impasses terríveis, onde as pessoas sentem que algo tem que ceder e não podemos continuar assim – quando esse sentimento se espalha – então você tem uma aceleração de aprendizado social. Também acontece uma aceleração das coisas mais horríveis e repugnantes”, disse Fraser em entrevista ao site To The Best Of Our Knowledge. “Mas é também um momento em que as pessoas estão abertas a pensar fora da caixa, a coisas que nunca teriam considerado antes”.

Fraser, filósofa feminista-marxista da New School for Social Research, é uma das teóricas críticas mais proeminentes do mundo. Ao longo de quatro décadas, ela construiu uma teoria abrangente do capitalismo, ampliando as ideias de Marx e Engels para incorporar o feminismo, a justiça racial, o meio ambiente e, agora, a pandemia. Seu trabalho é amplamente conhecido na Europa, onde alcançou o status de celebridade intelectual. Nos Estados Unidos, ela é uma figura importante na esquerda acadêmica, nas páginas da Jacobin Magazine e The New Left Review, e recentemente começou a escrever para um público mais amplo, com livros como Feminismo para os 99%: um manifesto e Cannibal CapitalismHow Our System Is Devouring Democracy, Care, and the Planet – and What We Can Do About It (Capitalismo Canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta – e o que podemos fazer quanto a isso, em tradução livre).

Conversar com Nancy Fraser é estranhamente empolgante. Se 40 anos estudando o capitalismo lhe ensinaram alguma coisa, é o valor de uma boa crise.

Leia a entrevista, que foi editada para melhor compreensão e concisão. 

 

___________

Nancy Fraser – As coisas ficam interessantes em situações de crise. Foi assim que chegamos ao New Deal. Não se poderia ter alçado essa política de forma incremental. Foi um grande choque para todo o sistema que gerou o medo por parte das classes empresariais – de uma revolução social de baixo para cima, do comunismo, dos sindicatos e assim por diante. É preciso que haja forças mobilizadas que amedrontem as classes dominantes para que elas pensem em fazer, ou aceitar, grandes mudanças.

Acho que estamos em um desses momentos de crise aguda. Eles são raros na história. Houve talvez quatro ou cinco nos 500 anos de história do capitalismo.

Anne Strainchamps – Estes são pontos de virada?

Pontos de virada (são) em que um novo sistema pode ser produzido.

A maneira como eu penso isso é a seguinte. Em primeiro lugar, vejo a história do capitalismo como períodos de relativa normalidade quando o risco voraz é, digamos, suficientemente contido. A descarga vai para cima das populações que não contam, ou que podem ser ignoradas, porque estão distantes. Então construímos um estado de bem-estar para nós. Mas, enquanto isso, não deixamos de extrair petróleo de lá e assim por diante.

O que acontece quando surge um desses momentos de crise – agitação e inquietação social e política – o que muda?

Quando termina relativamente bem – o que nem sempre acontece –, chega-se a uma nova forma de capitalismo que é estruturalmente diferente. Ainda é impulsionado pela acumulação de capital e tem essa voracidade embutida, mas é um reinício. Quando funciona, também é porque há alguma nova forma de produção econômica ou tecnologia que cria riqueza que pode ser compartilhada de forma mais ampla, de modo que você obtém mais adesão das populações.

O que tornou o New Deal possível foi construir toda essa sociedade em torno do motor de combustão interna. Agora, em retrospectiva, isso acabou se mostrando como uma barganha com o diabo – demos às pessoas em países ricos direitos sociais relativamente bons às custas do meio ambiente. Portanto, não são soluções permanentes, mas se duram 40, 50 anos, desenvolve-se um novo modo de vida.

No entanto, você acha que a crise atual é diferente. Por quê?

A mudança climática parece ser uma virada no jogo. É uma ameaça existencial para todo o planeta, para qualquer coisa que se assemelhe a uma civilização humana. A questão é: o capitalismo pode resolver isso? Não posso dizer com certeza que não, mas tenho fortes dúvidas.

Então acho que deveríamos exigir coisas como a nacionalização das empresas petrolíferas e das empresas de combustíveis fósseis. Fazer com que a questão de como vamos gerar energia se torne uma questão política, subordinada à política democrática e ao planejamento social.

Enquanto isso, provavelmente não sou a única pessoa que teme que no meio da madrugada tudo vá desmoronar e a vida se torne como um especial da HBO com bandos de humanos selvagens vagando por rodovias abandonadas.

Devastação, luta por um lugar nos botes salva-vidas, cada um por si?

Exato. Mas talvez depois disso, pequenas comunidades se unissem e formassem suas próprias novas sociedades?

Pensar como será após o apocalipse e a devastação é muito derrotista para mim. Eu não apostaria minhas moedinhas na ideia de que estaremos à altura disso, mas ainda temos que lutar como o diabo, porque as alternativas são horríveis demais, incluindo essa aí.

Eu sei. Mas ainda leio artigos sobre o colapso civilizacional, então é animador ouvir você dizer que ainda há coisas que possamos fazer.

Não estou dizendo que vamos fazer. Será preciso imaginação política e vontade política. Mas minha ideia é a seguinte: as pessoas em todos os lugares estão se organizando. Em alguns casos, eles estão formando milícias supremacistas brancas de extrema-direita. Em outros casos, eles estão fazendo Black Lives Matter ou estão lutando contra oleodutos ou desmatamento ou alguma outra luta. Portanto, há muitas pessoas em movimento. Mas é fragmentado. Está em todo lugar. O que lhes falta é um mapa.

Um mapa?

De como fica a questão que é existencial para eles em relação à questão que é existencial para aquelas outras pessoas ali, o que intuitivamente não é óbvio. Então o que eu me vejo fazendo, e não estou sozinha, é tentar mapear o sistema, para você entender que o mesmo sistema que está te ferrando, em relação a este rio poluído aqui, é o que está ferrando outra pessoa, em relação a por que ela não pode obter uma vacina lá.

Você não consegue lutar contra essas coisas uma a uma. Você tem que tentar lutar contra o sistema.

O que um crente da QAnon ou um supremacista branco teria em comum com um socialista progressista?

Acho que é preciso se afastar das crenças superficiais para ver de onde vem a raiva e o que a está motivando. Eu diria que muitas dessas pessoas têm queixas legítimas e boas razões para terem raiva, mas ao mesmo tempo têm diagnósticos muito equivocados. Eles acham que a culpa é dos imigrantes, ou dos negros, ou das redes de pedofilia e das pizzarias, ou de uma eleição roubada.

Eles também são motivados por uma crítica profunda das elites.

Mais que isso. Eu diria que eles têm um mapa da hierarquia social em três partes. Eles têm uma elite. Eles têm a subclasse desprezada que são os estupradores mexicanos, os islâmicos, os negros preguiçosos que não querem trabalhar. E então eles têm as pessoas de bem, os “verdadeiros americanos”, que estão aprisionados no meio, e tentam lutar contra os de cima e os de baixo.

Há também o populismo de esquerda, que não tem a subclasse desprezada. Tem o 1% e os 99%. Isso também é populismo, não uma análise de classe sofisticada.

Quando você diz mapa, penso em algo visual.

Acho que todo mundo tem um mapa na cabeça. Quando fazem organização ou mobilização política, eles têm uma espécie de mapa de quem é o inimigo. O problema é que a maioria dos mapas que as pessoas criam espontaneamente, se não partiram de uma reflexão profunda, são simples demais. O mapa permite que você desenhe conexões.

Então, se cada um de nós puder rastrear as raízes profundas que ligam ao mesmo sistema, e se tivermos um nome para o sistema, podemos pelo menos conversar sobre como produzir uma mudança radical que chegue às raízes do problema.

E ainda podemos fracassar. As forças do caos, da ganância e da estupidez são grandes. Mas, pelo amor de Deus, considerando o que está em jogo, como não tentar?

As apostas políticas atualmente são tão altas e a situação é tão grave, que – é estranho dizer, mas – este é o momento pelo qual eu espero desde os anos 1960. Este é o momento em que algum tipo de radicalismo é necessário e possível, porque nada mais funcionará. Disso eu tenho certeza. Nada além do verdadeiro radicalismo funcionará.


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