Quase lá: O Projeto Coletiva Que Precisamos Definir

 

Cândido Grzybowski* em 27/11/2022

 

candido grzybowski3Estamos em um momento de grande expectativa para que a transição de governo aconteça sem nenhum sobressalto. Isto até pode parecer normal depois de uma intensa e tensa disputa eleitoral com o governo que agora termina. O que mais queremos é ao menos voltar a sonhar que é possível viver em democracia para todas e todos. Esperamos e merecemos isto.

A tarefa inicial do Governo Lula será, sem dúvida, arrumar a casa como condição para enfrentar emergências e urgências inadiáveis. Isto tem que ser feito, em nome do cuidado das pessoas e da natureza, como enfaticamente anunciado e assumido pelo próprio Lula na definição de seu mandato. Mas de imediato se coloca a questão: se trata apenas de voltar ao que era e o que tínhamos de políticas desenvolvidas nos governos democráticos anteriores, especialmente período dos governos petistas? Ou, desde o início, a questão é também enfrentar o desafio de começar a definir e lançar as bases democráticas ecossociais mais sólidas de um país de cuidado, convivência e compartilhamento nas relações entre todas e todos e nas relações com a natureza?

O fato é que temos uma sociedade assentada em bases excludentes e destrutivas, que precisam ser transformadas, não só mitigadas ou controladas. A conquista e a colonização como lógicas estruturais operam até hoje. Nunca é demais lembrar que tais lógicas movem a economia e tem controlado o poder estatal como seu apoio político estratégico. Não cabe aqui analisar a violenta e triste história de nossa formação feita a pau e fogo. Mas devemos ter sempre presente que foi um processo de violência, destruição e morte sistemática, contra os povos indígenas originários, escravos negros africanos, imigrantes pobres da Europa e todos os descendentes dessa população, assim como contra a natureza. Foi um processo de formação econômica, social, cultural e política negando o cuidado como prioridade incontornável para a vida em sociedade de convivência e compartilhamento. Pelo contrário, como processo ainda dominante carrega um viés colonial extrativo e destrutivo, racista, patriarcal e violento no seu DNA, renovando-se a serviço de uma oligarquia de base territorial, capitalista e financeira, subserviente aos interesses geoeconômicos e políticos mundiais de turno. Os negócios do agro e do minério continuam no centro da economia e, pior, se fortaleceram, levando a um aprofundamento da reprimarização e dependência econômica com apoio do Estado e suas políticas.

Isto, como projeto, continua colonizando o imaginário em amplos setores da sociedade civil, apontando o extrativismo amplo como base das nossas “fortalezas” para o desenvolvimento do país. É emblemático em nossa história que os colonizadores começaram pelos “fortes” de conquista no literal – o embrião do Estado colonial -, que são a origem das próprias forças armadas e de sua sanha sempre presente de definir autoritariamente os rumos e os projetos da nação Brasil, como se fossem um poder legítimo para tanto.

Fome, miséria, pobreza, precariedade e violência em que vivem milhões da nossa gente, explorados e com direitos negados, em territórios ameaçados  e degradados nas “periferias” urbanas, nos campos e nas florestas, os que já são afetados pela mudança climática,  são o retrato ecossocial da falta de centralidade do cuidado com pessoas e natureza entre nós. Precisamos de economia e de Estado para o cuidado. Ou seja, desde aqui e agora, as próprias urgências e emergências tem que ser pautados por um projeto de país justo e sustentável buscando criar novas bases democráticas ecossociais. Tarefa para muitas gerações, mas que não podemos mais adiar, pois poderá ser tarde e gerações futuras não nos perdoarão.

Um projeto radicalmente democrático e transformador da lógica colonial vigente é tarefa coletiva permanente, de todas e todos, que precisa ser construído e constantemente renovado como imaginário mobilizador. Mais, ele tem que plantar raízes no seio da sociedade civil, na nossa construção de identidades e vozes como cidadania a mais ampla e participativa possível, para ser sustentável e resiliente diante das ameaças destrutivas e excludentes. Só assim poderemos criar algo virtuoso e irresistível, capaz de moldar e inspirar o Estado  necessário e este poderá, em nome da cidadania  coletiva com sua diversidade, regular a economia e o mercado em tal direção.

Por onde começar? Primeiro, aceitar a centralidade do protagonismo da cidadania em ação. Não é o Estado que vai definir o protagonismo, mas sim cabe ao Estado acolhê-lo e facilitá-lo, através dos poderes executivo, legislativo e judiciário, que nós, como cidadania, temos o poder de definir e redefinir como instituintes e constituintes que somos, se necessário for.

Sem dúvida, ampliaram-se as destruições, exclusões e ameaças fascistas sob o governo atual, não só por cerceamento das vozes de cidadanias discordantes, mas pelo lawfare contra as nossas lideranças políticas emblemáticas surgidas das lutas cidadãs e nas disputas eleitorais, pela disseminação em massa de fakenews em redes digitais e assim conquistando suporte a seu projeto ditatorial em nome “Deus, Pátria e Família”, mote pelo fascismo. Cabe ressaltar, também, a desconstrução de espaços de participação social em políticas, a liberação de armas e legitimação de milicianos,  a “abertura das porteiras para o estouro da boiada” sobre os territórios de cidadania, de forma a mais violenta e destrutiva nestes anos de perda gradual de intensidade da democracia conquistada.

No entanto, não dá para ficarmos satisfeitos com apenas um retorno ao que tínhamos e que foi definido mais de 30 anos atrás, implementado de forma mais virtuosa nos 14 anos de governos petistas de nosso período democrático recente. Nós mesmos temos que nos reinventar e lutar por reconhecimento e legitimidade de nossa participação instituinte e constituinte, que não depende da boa vontade dos poderes de turno. Somos nós, cidadania, e só nós que temos a legitimidade para exigir mais e empoderar os poderes existentes para que atuem na direção necessária.

A questão que estou levantando é a falta que nos faz um consistente projeto democrático ecossocial, baseado no cuidado das pessoas e da natureza. Um projeto capaz de apontar para transformações estruturais em nosso país no longo prazo. Mas projeto que precisa ser definido e assumido com a urgência necessária pela cidadania em sua diversidade, com base em seu papel intransferível de construtora legítima, disputando-o democraticamente para obter hegemonia no seio da sociedade civil e, assim, para poder ser acolhido pelos poderes constituídos. A democracia instituída em 1988 foi uma poderosa semente conquistada devido à potente mobilização da cidadania contra a ditadura militar, mas ainda se mostrou insuficiente para fazer emergir tal projeto coletivo, com capacidade de moldar o Estado e, através dele, regular a economia a serviço da democracia e assentar as bases de busca de justiça e inclusão ecossocial de todas e todos, com cuidado e respeito à integridade dos bioamas que são fonte da vida e do bem viver.

Assim colocada a questão de fundo, trata-se de definições e implementação de políticas que enfrentem a origem e as causas das exclusões e destruições ecossociais, em nome de direitos iguais na diversidade que carregamos. Não dá para combater fome, miséria, destruição e crise climática com uma economia que é voltada exclusivamente para acumulação com bases centradas em um modelo capitalista dependente da vitalidade de diferentes extrativismos destrutivos voltados para fora –  o agrário, o petroleiro e o mineral –  e  reguladas pela ditadura do mercado, acima do próprio Estado. Aí está a lógica estrutural que precisamos enfrentar com um inspirador e mais intenso projeto democrático transformador, que não pode ser definido e assumido coletivamente sem o protagonismo da ação da cidadania em parceria com o Estado.

 

*Cândido Grzybowski é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ijuí, Rio Grande do Sul, mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor em Sociologia pela Sorbonne, Paris. É ex-diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase.

 

fonte: https://sentidoserumos.blogspot.com/

 


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