Ao Correio Braziliense, especialistas e autoridades apontam caminhos possíveis para a paridade entre homens e mulheres na diplomacia brasileira, prevista para ser alcançada apenas em 2110
O percentual feminino na carreira diplomática é considerado baixo, representando 23% do total — cerca de 354 de 1.539 diplomatas. Essa proporção tem se mantido estável há pelo menos duas décadas, mesmo com a oferta de 100 vagas por ano, como ocorreu nos concursos de 2006 a 2011. Relatório de 2023 do Ministério das Relações Exteriores (MRE), o mais recente divulgado pelo órgão, revela um cenário preocupante também em postos de liderança: mulheres ocupam apenas 16% das posições de chefia e 22% dos cargos de embaixador. Nesse ritmo, a Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras (AMDB) alerta que a igualdade de recrutamento só será alcançada em 2110.
“Coisa de homem”
Para a ministra conselheira do Ministério das Relações Exteriores (MRE) Viviane Rios Balbino, os desafios começam com a percepção, “não tão distante da realidade”, de que a carreira diplomática não é para mulheres. “De maneira semelhante à carreira militar, a (diplomática) foi estruturada para que homens a ocupassem. Uma série de práticas institucionais bastante arraigadas dão por certa a presença da esposa do diplomata no lar, ocupando-se de todo o trabalho relacionado aos deslocamentos da família (adultos, crianças e demais dependentes) para o exterior.”
Autora das publicações Diplomata: substantivo comum de dois gêneros e Terá a paz rosto de mulher, Viviane afirma que essa estrutura disfuncional desestimula potenciais candidatas e até suas famílias. “É conhecido o diferente apoio, inclusive financeiro, dado pelas famílias a rapazes que se preparam, às vezes por anos a fio, para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), e às moças. Uma maneira de corrigir a percepção que afasta as mulheres do concurso seria nomear mulheres, em números paritários, para funções de grande visibilidade”, diz Viviane Balbino.
Desafios históricos
Na carreira diplomática, as mulheres enfrentaram diversos impedimentos desde que a primeira diplomata, Maria José de Castro, ingressou na carreira, em 1918 (veja abaixo). "Houve reformas que foram impedindo e dificultando o acesso e a ascensão das mulheres, como a reforma Oswaldo Aranha (1938), que restringiu o acesso de mulheres durante 16 anos. Em 1954, houve uma lei que dispôs sobre o ingresso na carreira 'sem distinção de sexo', mas a proibição de casamento entre colegas perdurou até 1965", lembra a alta representante para temas de gênero da Assessoria de Participação Social e Diversidade do MRE (APSD), embaixadora Vanessa Dolce de Faria.
"De 1966 a 1985, havia o instituto da 'agregação', que determinava que um dos diplomatas do casal deveria abrir mão da carreira quando removido para o exterior — e geralmente eram 'elas' e não 'eles' que abriam mão. Depois, de 1985 a 1996, havia a determinação de que o salário de um dos dois do casal deveria ser de apenas 40% quando servindo no exterior. Ou seja, mesmo depois da Constituição de 1988, que reconheceu a igualdade jurídica entre os sexos, a discriminação em matéria de remuneração foi mantida", completa Vanessa Dolce.
Esses papéis fixos de gênero foram questionados em serviços exteriores nas últimas décadas, "seja pelos novos formatos de família (homoafetivas, principalmente), seja pelas legítimas aspirações profissionais das esposas de diplomatas. Os cônjuges das diplomatas, porém, especialmente aqueles que não são vinculados às chancelarias, ainda causam estranhamento. O mesmo vale para mulheres diplomatas solteiras. Não se registra o mesmo incômodo com relação a homens diplomatas solteiros ou divorciados”, expõe ainda a ministra conselheira Viviane Balbino.
Só em 1996 foi retirada a última barreira normativa à igualdade entre homens e mulheres no Itamaraty, quando se estabeleceu a igualdade remuneratória no exterior para diplomatas casados.
Recorte racial
De acordo com o Boletim Estatístico Étnico-Racial do Serviço Exterior Brasileiro de 2024, cerca de 3% do corpo diplomático brasileiro é composto por mulheres negras, o que também está sendo considerado pelas autoridades ao pensar políticas de inclusão no MRE.
Desenvolvido em conjunto com o CNPq, o Ministério da Igualdade Racial e a Fundação Palmares, o Instituto Rio Branco implementa, há 22 anos, o Programa de Ação Afirmativa (PAA) - Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia, que tem por objetivo ampliar as condições de ingresso de brasileiros pretos ou pardos na carreira de diplomata, ampliando a diversidade do serviço exterior brasileiro.
A iniciativa, do governo federal, já mostrou resultados positivos nos últimos 10 anos: “77 candidatos que se identificaram como negros ingressaram na carreira diplomática entre 2002 e 2023 por meio do CACD. Desse total, 60 candidatos receberam bolsa do PAA. O IRBr tem avaliado a viabilidade de adotar iniciativa semelhante para indígenas, mulheres e pessoas com deficiência”, revela ao Correio a diretora-geral do Instituto Rio-Branco, embaixadora Mitzi Gurgel Valente da Costa.
“No caso das mulheres negras, elas também se beneficiam de ação afirmativa implementada por meio da Instrução Normativa 23/2023, do MGI, que determina a chamada do mesmo número de candidatos da ampla concorrência e candidatos pelas cotas raciais para as diferentes fases do concurso. Haverá, portanto, mais chances de mulheres negras alcançarem a fase discursiva do certame”, afirma Mitzi Gurgel, referindo-se à atualização do último edital do CACD, que incluiu a convocação adicional de 75 mulheres para a segunda fase do certame. Não vigoram, porém, cotas específicas para mulheres nem para mulheres negras.
Transexualidade
Na carreira diplomática brasileira, não há registro oficial de mulheres transexuais — que não se identificam com o gênero masculino atribuído no nascimento. O reconhecimento da identidade de gênero, porém, é uma possibilidade no CACD. "A mulher trans tem direito ao reconhecimento da sua identidade. O edital prevê que as publicações referentes aos candidatos transexuais ou travestis serão realizadas de acordo como nome e o gênero constantes noregistro civil. Sendo assim, paraconvocação na segunda fase do concurso, em especial nas vagas designadas às mulheres, precisará ter a mudança de gênero no registro civil” ”, explica Camilla Cândido, da LBS Advogadas e Advogados.
Sobre a inclusão LGBTQIAP+, a embaixadora Vanessa Dolce de Faria, afirma que medidas estão sendo avaliadas no contexto do Programa Federal de Ações Afirmativas (PFAA). "O MRE está avaliando a adoção de medida afirmativa para favorecer a inclusão de pessoas trans nos contratos de serviços terceirizados", diz.
Panorama global
De acordo com Viviane Balbino, o Brasil se difere de outros países no contexto internacional devido à tardia iniciativa por parte do governo, que só em 2024 implementou efetivamente uma dinâmica de proporcionalidade de gênero na carreira. “Com relação a outros países, a presença feminina foi, em geral, mais baixa em todas as chancelarias. Argentina, Chile, México e Paraguai, por exemplo, já contavam com ações de paridade no serviço público, inclusive, na chancelaria. Isso para não falar de países europeus, africanos e asiáticos.”
Nesse sentido, a embaixadora Vanessa Dolce completa: “As mulheres, historicamente, estão alienadas de todos os espaços de poder. No Congresso Nacional, são apenas cerca de 18% de nossos representantes — estamos abaixo da média mundial e aquém de todos os nossos vizinhos na região. Na esfera federal, temos hoje o maior número de ministras já alcançado no Brasil, mas ainda estamos longe de um cenário de paridade."
A Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) adotou, em 2015, a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, estabelecendo propostas para alcançar, entre outras metas, a paridade de gênero no mundo. Em apoio à agenda, a ONU Mulheres lançou a iniciativa global Por um planeta 50-50 em 2030: um passo decisivo pela igualdade de gênero, com a colaboração de mais de 90 países, para que “mulheres, homens, sociedade civil, governos, empresas, universidades e meios de comunicação – trabalhem de maneira determinada, concreta e sistemática para eliminar as desigualdades”. Já em 2022, a AGNU instituiu a data de 24 de junho como Dia Internacional das Mulheres na Diplomacia.
Participação feminina
Pesquisas mostram que mulheres parlamentares e mulheres em cargos de chefia aprovam leis e políticas públicas melhores para as pessoas comuns, para o ambiente e para a inclusão social. “O aumento da participação de mulheres nos processos políticos e de paz é vital para alcançar estabilidade e para que os acordos sejam mais duradouros”, afirma Viviane Balbino.
A paridade em cargos de decisão colabora ainda para quebrar padrões excludentes de promoção na carreira. “Quando apenas homens avaliam o mérito, é natural que se lembrem mais dos companheiros de rodas masculinas de socialização. Isso também está mapeado na literatura especializada e não é exclusividade brasileira. O que falta ao Brasil é tomar ações decididas para reverter definitivamente esses conhecidos vieses de gênero – coisa que países vizinhos já estão fazendo.”
Em 2023, com a nomeação da embaixadora Maria Laura da Rocha como secretária-geral das Relações Exteriores, o Brasil saiu da posição de único país da América do Sul que nunca havia tido uma mulher exercendo a função em toda a história do órgão. “Embora se trate de decisão obviamente importante, é muito pouco. Para fazer frente ao peso histórico da exclusão, seria necessário garantir paridade nos cargos de secretários (terceiro escalão do MRE) e nas chefias dos postos de maior prestígio no exterior (categoria “A”). Isso projeta uma decisão institucional de busca de diversidade e também já foi testada em outros países”, afirma Viviane Balbino.
Vitória
Em abril deste ano, a AMDB, entidade protagonista na luta, encomendou um parecer jurídico ao MRE reivindicando a constitucionalidade e a implementação das cotas de gênero para o CACD 2024. Apesar da mudança na dinâmica convocatória de vagas, o edital não acolheu o pedido. "Precisamos reconhecer que a desigualdade existe e que ela nos prejudica como sociedade. Todos perdemos quando as mulheres não estão incluídas nos processos decisórios, quando são penalizadas nas suascarreiras, no acesso à saúde, no gozo dos seus direitos pelo simples fato de serem mulheres", afirma a vice-presidente da AMDB, Laís Garcia.
“Aguardaremos os resultados das provas do CACD para avaliar se a medida resultará em equilíbrio maior entre o número de homens e mulheres que é de fato aprovado ao final da seleção. Mas consideramos essa medida salutar e uma vitória da mobilização das mulheres diplomatas. Queremos ter uma diplomacia com a cara do Brasil, com mais mulheres e outras parcelas da população historicamente excluídas da carreira”, compartilha Laís Garcia, que está como presidente interina da associação.