Quase lá: O ecofeminismo numa perspectiva ecossocial. Artigo de Giulia Costanzo Talarico

Em todo o mundo, nos últimos trinta anos, houve um aumento significativo na participação das mulheres nos protestos contra as catástrofes ambientais e nas manifestações em defesa dos territórios, e em geral, no ativismo camponês e ambiental, tanto em organizações mistas e, em geral, como em organizações feministas.

IHU

Giulia Costanza Talarico

“Devido à sua pluralidade de visões, objetivos e estratégias, a perspectiva ecofeminista é capaz de integrar simultaneamente múltiplas abordagens e explicar os vínculos históricos entre o capitalismo neoliberal, o mito do progresso moderno, a violência contra as mulheres, o extrativismo, as mudanças climáticas, entre outros”. A reflexão é de Giulia Costanzo Talarico, socióloga e ativista ecofeminista, em artigo publicado por El Salto, 13-07-2024. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Em todo o mundo, nos últimos trinta anos, houve um aumento significativo na participação das mulheres nos protestos contra as catástrofes ambientais e nas manifestações em defesa dos territórios, e em geral, no ativismo camponês e ambiental, tanto em organizações mistas e, em geral, como em organizações feministas.

A nível transnacional, desenvolveu-se um quadro comum no discurso do movimento pela justiça global, no qual a contribuição das mulheres e das mulheres feministas é imprescindível. Os projetos de mulheres e as resistências feministas não visam apenas desafiar as relações de poder e fornecer alternativas para combater a crise, mas também construir práticas coletivas que apostam na igualdade, na justiça social e na sustentabilidade, problematizando a valorização social e econômica do trabalho de cuidado, uma vez que as mulheres camponesas e indígenas são a principal fonte de abastecimento alimentar das famílias e de proteção de recursos como as sementes.

Na verdade, são as mulheres, e especialmente as mulheres do Sul global, que desempenham um papel fundamental no apoio aos sistemas agroalimentares locais, protegendo as sementes e os conhecimentos ancestrais. As mulheres são responsáveis pela reprodução da vida das comunidades camponesas através do papel essencial de alimentar, cuidar das pessoas, dos animais e dos territórios.

É evidente que a situação atual exige uma abordagem a partir da sustentabilidade, porém é necessário incorporar uma perspectiva completa a partir da reprodução social e abrir a “caixa preta patriarcal”. A violência contra as mulheres é intrínseca ao sistema neoliberal e tem se intensificado, adotando formas que se fundiram com as estruturas emergentes do patriarcado capitalista, tornando-as as principais vítimas da degradação ambiental e dos conflitos socioambientais.

Nos desastres ambientais causados pelos humanos, como a desertificação, o desmatamento ou a perda de biodiversidade, as mulheres são as mais afetadas. Além disso, a economia de mercantilização também cria uma cultura de mercantilização e a crescente cultura da violação é uma externalidade social das reformas econômicas neoliberais. Por tudo isso, o corpo feminino e a natureza travam uma luta comum, ou seja, a luta para se libertarem da dominação e da violência patriarcal, e entende-se a necessidade de uma abordagem ecofeminista para visibilizar alternativas sustentáveis capazes de manter a agrobiodiversidade através da resiliência, promovendo modelos de justiça social e territorial.

A perspectiva ecofeminista é transversal, por isso é importante destacar o papel das mulheres na reprodução social, e na construção da sustentabilidade real, que aqui consideramos como a “sustentabilidade da vida”. Neste sentido, o desenvolvimento de projetos intelectuais alternativos deve necessariamente incluir a igualdade entre todos os seres, bem como o respeito aos territórios e aos seres vivos.

O ecofeminismo é uma prática filosófica que se baseia no ativismo e na ação política, contribuindo para a criação de uma abordagem crítica que visibiliza a ligação opressiva entre a sociedade e o ambiente e entre as mulheres e os homens, ao mesmo tempo que aumenta a participação na luta ecológica das mulheres marginalizadas, como as camponesas e as indígenas, historicamente invisibilizadas.

Embora no final da década de 1970 a palavra ecofeminismo tenha despertado certa rejeição no movimento feminista, por ser associada a abordagens essencialistas que reforçavam o estereótipo mulher-natureza, esta perspectiva tem dado a possibilidade de promover a urgência de uma revisão crítica do processo de desenvolvimento da ciência e da tecnologia ocidentais como elemento chave no processo de dominação, colonização e expansão do capitalismo patriarcal.

Do ponto de vista teórico, a perspectiva ecofeminista tem uma história de crescimento e aprendizagem, demonstrada ao longo dos últimos quarenta anos, através de reflexões que enriqueceram as análises da crise ecológica e econômica a partir de uma perspectiva de gênero. Na verdade, as abordagens ecofeministas convergem em alguns pontos com outras perspectivas críticas, como a economia feminista e a ecologia política: com a primeira partilha uma visão sobre reprodução e sustentabilidade, enquanto com a segunda converge na tentativa de visibilizar as lutas sociais e culturais e delimitar as formas de poder entre o Estado, as multinacionais e as comunidades locais.

Do ponto de vista prático, a atuação ecofeminista é plural e embora o termo seja relativamente “novo”, é utilizado para definir um “conhecimento antigo”. Portanto, não existe um único ecofeminismo, mas vários que dialogam e aprendem uns com os outros, contribuindo para uma pluralidade ecofeminista, de acordo com o contexto histórico, geográfico, cultural e político a partir do qual se afirma, ou seja, propondo alternativas baseadas na identidade e na proteção do próprio território.

Ao considerar as especificidades dos territórios, os ecofeminismos promovem práticas de resistência que representam desafios sociais de mudança e permitem um diálogo entre diferentes epistemologias, como a rural e a urbana, e entre o Norte e o Sul globais; eles se unem para se opor a um sistema violento e desconstruir a realidade neoliberal. Tanto no meio rural como no urbano, o ecofeminismo promove a recuperação das identidades culturais que o sistema neoliberal esmaga (conhecimentos rurais, trocas, receitas tradicionais, etc.) e a proteção do território e dos bens comuns.

No entanto, deve-se reconhecer que nas áreas metropolitanas a recuperação da memória biocultural é muito difícil, dado que o “estilo urbano” é resultado do sistema neoliberal, ao passo que nas áreas rurais é possível manter vivas as visões de mundo locais. Na verdade, muitas vezes existe uma tendência comum a acreditar que as zonas rurais são “retrógradas”, mas na realidade são os locais onde se manifesta a máxima vanguarda graças ao processo de consciência social e política e à recuperação da perspectiva comunitária. Portanto, apesar da estigmatização do mundo rural, os ecofeminismos rurais do Sul estão inspirando muitas ações e construindo pontes a nível global. As iniciativas de luta das Jornaleras en Lucha de Huelva (Andaluzia), bem como a sua denúncia simultaneamente feminista, ambientalista e antirracista, são uma exigência de um modelo produtivo alternativo, mas também de igualdade para as mulheres do campo, de solidariedade e justiça social.

Os ecofeminismos, em geral, denunciam o ecocídio do sistema neoliberal que em menos de dois séculos conseguiu devastar a biodiversidade do nosso planeta e extinguir mais espécies animais do que em toda a história da humanidade e, ao mesmo tempo, que exerce uma violência patriarcal perversa contra as mulheres, e especialmente contra as mulheres racializadas. No âmbito global, os ecofeminismos destacam que as mulheres são as principais vítimas da degradação ambiental causada pelas mudanças climáticas e pelos conflitos socioambientais. Nos desastres ambientais, as mulheres são as mais afetadas pela dificuldade de obter alimentos, água potável ou de cuidar dos filhos, filhas e idosos ou pessoas não autossuficientes; e são sempre as mulheres que sofrem violências sexuais e violações quando as multinacionais expropriam territórios do Sul global.

O ecofeminismo, como projeto intelectual, propõe a transformação da realidade rompendo com a estrutura do pensamento dicotômico moderno e construindo uma perspectiva alternativa que coloque a vida e o cuidado no centro. Ao mesmo tempo, procuram propor a organização em redes da sociedade civil, com o objetivo de construir sociedades sustentáveis do ponto de vista comunitário, ecológico, social, intercultural e de gênero.

A proposta dos ecofeminismos é uma abordagem intelectual crítica em vista da desconstrução do sistema e da construção de práticas alternativas para que a existência das comunidades seja digna. Por um lado, reivindicam o papel histórico da mulher no que diz respeito ao cuidado, em sentido amplo, graças ao qual tem sido possível a manutenção dos agroecossistemas, bem como a reprodução social; por outro lado, apontam que o cuidado não é responsabilidade exclusiva das mulheres e, portanto, propõem o cuidado como uma corresponsabilidade coletiva.

Devido à sua pluralidade de visões, objetivos e estratégias, a perspectiva ecofeminista é capaz de integrar simultaneamente múltiplas abordagens e explicar os vínculos históricos entre o capitalismo neoliberal, o mito do progresso moderno, a violência contra as mulheres, o extrativismo, as mudanças climáticas, entre outros.

Em suma, a abordagem ecofeminista é fundamental na proposição de um paradigma para um novo horizonte ecossocial devido à sua capacidade de promover soluções sinérgicas.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/641710-o-ecofeminismo-numa-perspectiva-ecossocial-artigo-de-giulia-costanzo-talarico

 


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