Na esquerda tornou-se comum dizer que o feminismo e outros movimentos da New Left colaboraram com o neoliberalismo.
Nos anos 60, o sistema saiu em defesa desta instituição: desmontar o Estado exigia que ela assumisse o ônus do bem-estar social e de dívidas individuais, transmitidas entre gerações. Movimentos, hoje, a contestam: seria frente de luta anticapitalista?
Os valores da família: entre o neoliberalismo e o novo social-conservadorismo, livro de Melinda Cooper (Sydney, 52 anos), é fundamental para entender por que razão o neoliberalismo defende a instituição familiar. Cooper é professora de sociologia na Universidade Nacional Australiana em Camberra e pesquisa políticas neoliberais e finanças públicas. Esta entrevista é um resumo da recente apresentação de seu livro em Madri.
Os valores da família: entre o neoliberalismo e o novo social-conservadorismo, de Melinda Cooper (Foto: Divulgação)
A entrevista é de Nuria Alabao, publicada por CTXT e reproduzida por Outras Palavras, 05-04-2024. A tradução é de Rôney Rodrigues.
Eis a entrevista.
Você poderia explicar as teses do livro e por que é importante levá-las em consideração hoje para compreender o funcionamento tanto do neoliberalismo quanto do conservadorismo que ressurge em todo o mundo?
Na esquerda tornou-se comum dizer que o feminismo e outros movimentos da New Left colaboraram com o neoliberalismo. A filósofa feminista Nancy Fraser disse, por exemplo, que havia uma afinidade subterrânea entre o feminismo de segunda onda e o neoliberalismo, uma vez que ambos minaram as formas de segurança social – íntimas e econômicas – que tinham sido construídas na ordem social keynesiana: o salário familiar [o homem ganhava o suficiente para sustentar toda a família e as mulheres da classe média não trabalhavam]. Mas se esta premissa for aceita, a conclusão lógica é extremamente perigosa: que para resistir ao capitalismo neoliberal é necessário restaurar as fronteiras sociais ou de gênero – ou mesmo raciais ou nacionais. Então pensei que era importante ver o que aconteceu naquele momento decisivo entre as décadas de 1960 e 1970.
Concentrei-me em investigar um movimento que talvez não seja tão espetacular quanto outros mais conhecidos: o que defendia os direitos do Estado social e também questionava os efeitos do Estado social keynesiano; atacava a ordem de gênero que o keynesianismo deu origem e as suas hierarquias internas como, por exemplo, o salário familiar. E, ao mesmo tempo, não abandonava a ambição de uma redistribuição mais justa da riqueza social. A proposta era radicalizar a distribuição da riqueza para além dos limites toleráveis pelo Estado capitalista. Este movimento pela expansão dos direitos do Estado de bem-estar social fez parte da ascensão dos movimentos radicais de esquerda, o que incluiu a esquerda do movimento sindical. Eles pressionaram abertamente por aumentos salariais para além da sua associação com o crescimento. Tentavam recuperar para os trabalhadores uma parcela maior dos benefícios da renda nacional. Foi radical no nível salarial, mas também para quem se incluia nesta luta: trabalhadores migrantes, negros, jovens, mulheres e trabalhadores do setor público.
Este foi um momento perigoso do ponto de vista dos capitalistas, que até então eram a favor do consenso keynesiano. Economistas como Milton Friedman, que tinha feito parte do consenso do New Deal face a esta militância da década de 1960, decidiram que este pacto tinha que acabar. Acho que é muito importante não perder o que realmente eram o feminismo e os movimentos antirracistas e trabalhistas daquele momento. Então, entram em cena os economistas neoliberais que queriam desmantelar todo o aparelho de bem-estar social: “Se o Estado de bem-estar social faz as pessoas se sentirem tão empoderadas ou legitimadas para lutar e, além disso, está aumentando os seus desejos revolucionários, então é hora de pôr fim a isto.”
Por outro lado, havia os neoconservadores que veem a ruptura da família não apenas como o sintoma, mas como o catalisador da crise capitalista de 1970. O interessante é que os neoliberais da época disseram algo muito semelhante: o ataque na estrutura econômica da família keynesiana representava uma ameaça real ao capitalismo estadunidense. Por que eles se preocupavam com a família? Eles compreenderam que a família tinha uma função econômica e pensaram que poderiam restaurar a ordem capitalista se desmantelassem o estado de bem-estar social, por isso pressionaram para que as pessoas regressassem a algumas formas de parentesco – voluntário, forçado, normativo, não normativo… – porque isso funcionaria como um substituto do bem-estar social. Portanto, neste momento, os neoliberais e os novos conservadores encontram este estranho ponto de convergência onde veem a crise econômica em relação à desagregação da família e da ordem de gênero, e concordam que esta deveria ser restaurada. Não vamos voltar ao chefe de família masculino de meados do século XX, mas vamos voltar a uma ideia de responsabilidade familiar privada pelos seus membros.
Entendo que as críticas de Nancy Fraser querem influenciar a forma como se criou uma hegemonia dentro do Partido Democrata em que se assume o reconhecimento das minorias e certas reivindicações, mas não estão associadas à redistribuição da riqueza como os movimentos pela expansão do bem-estar social do que você diz.
Há uma parte do argumento de Fraser contra o neoliberalismo progressista com a qual concordo, mas não como ela o define. Significa que parte da esquerda foi absorvida pelas exigências neoliberais de reconhecimento de identidade e de inclusão legal ou de expansão de certos direitos, desvinculando-os de uma questão mais ampla de redistribuição econômica.
É evidente que há um progresso real no reconhecimento de relações não normativas, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas poderíamos ver isso como um exemplo de neoliberalismo progressista. O que está acontecendo é que o impulso radical dos movimentos da década de 1970 foi canalizado de volta para o parentesco, na forma de casamento e família. Existe uma razão econômica que é totalmente compatível com as ideias neoliberais sobre o papel da família no bem-estar. Quando examinamos a jurisprudência em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo, vemos que o argumento era permitir que os gays se casassem porque a unidade conjugal serviria como um substituto para a assistência social e não seria um fardo para o Estado. Este argumento foi forjado em plena crise da aids, quando as autoridades públicas não quiseram arcar com os custos hospitalares decorrentes desta enfermidade. O economista neoliberal Richard Posner foi o primeiro a recomendar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Ele não tinha nenhum tipo de oposição moral à sexualidade não normativa, mas ao mesmo tempo pensava que os direitos à sexualidade não normativa deveriam ser reconhecidos desde que as pessoas estabelecessem algum tipo de relação familiar com reconhecimento legal.
Algo semelhante aconteceu com a reforma da assistência social que ocorreu sob a administração Clinton, uma espécie de apogeu do neoliberalismo progressista. Esta reforma reviveu a forma mais atávica e punitiva do welfare, porque implicava que uma mulher tinha que depender do cônjuge no casamento em vez do Estado. O que esta reforma fez foi investir o dinheiro da assistência social na localização dos pais genéticos dos filhos de mães solteiras para que pudessem cuidar da família.
Nancy Fraser não aproveita esta reforma política histórica do neoliberalismo progressista para perguntar: o que isto nos diz sobre o neoliberalismo? Está claro que quando se trata de cuidados e dependência, o neoliberalismo não se contenta apenas com o reconhecimento da família, mas inventa ativamente relações familiares que não são emocionalmente reais ou consensuais e força as pessoas nestas relações a subsidiarem-se mutuamente para substituir o Estado. Assim, a responsabilidade familiar é um pilar absoluto da ideia neoliberal progressista.
Resumindo: concordo que grande parte da esquerda está próxima do pensamento neoliberal, mas não acredito que o pensamento neoliberal seja de forma alguma anti-família ou anti-hierarquia de género. Este é o paradoxo do nosso tempo: assistimos a uma expansão das formas de expressão sexual e de parentesco permitidas, mas isso não significa que o próprio parentesco tenha deixado de ser central para o estado de bem-estar social neoliberal, de modo que mesmo ele seja ativamente imposto por o Estado como uma obrigação.
Em geral, a esquerda também reivindica a instituição familiar, diz-se mesmo que é um baluarte da resistência ao neoliberalismo ou ao capitalismo. Porque isto ocorreu e porque é necessário questionar ou desafiar esta instituição?
Penso que é uma mitologia tanto da esquerda como dos liberais econômicos. Se olharmos para a história do liberalismo econômico, os liberais sempre tiveram problemas em encaixar o papel da família na sua visão da dinâmica econômica porque são a favor da responsabilidade individual e pessoal e a contradição mais óbvia aqui é a questão da herança. O liberalismo econômico lutou contra isso desde a Revolução Francesa porque a herança ou certas formas de herança – como a primogenitura – aparecem como o último baluarte da ordem aristocrática feudal. Contudo, os economistas liberais não pedem o fim da herança, eles precisam dela, mas veem a contradição porque falam de meritocracia e presumem igualitarismo formal no contrato econômico. Mas enquanto existe herança, é preciso admitir que os indivíduos não celebram o contrato como iguais.
Então a família apresenta sempre este inconveniente, mas é absolutamente fundamental, porque para proteger a riqueza privada é necessário proteger a transmissão da riqueza dentro da família. Portanto, a família nunca foi uma forma de resistência ao capitalismo. É a forma como a riqueza privada é reproduzida ao longo do tempo. Isto não significa que a forma da família permaneça estática, ela muda radicalmente em diferentes épocas e não tem a mesma função para diferentes classes, mas ela é absolutamente essencial. Portanto, a resistência à família é fundamental para o anticapitalismo. Não se pode criticar ou confrontar o capitalismo sem abordar a instituição da herança.
Você costuma dizer que não existe uma “família tradicional”, mas que esta figura é uma produção histórica. A que se refere?
Algo que me incomodou nas resenhas de Os valores familiares é que mesmo pessoas que simpatizaram com sua tese disseram que o livro era uma crítica à família nuclear patriarcal normativa. É isso, claro, mas é também uma crítica à família não normativa ou à família alargada. As pessoas acreditam que se as famílias fossem ampliadas seriam muito melhores. Se olharmos para a formação familiar no século XX, a família nuclear foi um produto da família fordista e do salário familiar: a capacidade de uma unidade familiar viver junta numa casa sem família alargada e sem ajuda doméstica – a classe média Para substituir o serviço doméstico, o trabalho doméstico não remunerado das mulheres foi parcialmente subsidiado pelo Estado. Todos estes tipos de ajuda social criaram e apoiaram a individualização da família.
Hoje, penso que em muitos países estamos voltando a uma forma de família alargada. O exemplo da Austrália é muito claro porque não existe um sistema em que o trabalho migrante substitua o trabalho doméstico. O que acontece é que as mulheres casadas ou com filhos continuam trabalhando, mas é a família alargada que cuida dos filhos. O aumento dos preços da habitação faz com que as pessoas vivam cada vez mais juntas em lares multigeracionais. As crianças vivem na casa da família até aos vinte ou trinta anos, e mesmo mais, e os avós muitas vezes vivem com elas. No melhor dos casos, isto implica uma distribuição da riqueza familiar; no pior, uma distribuição da dívida. Quando eu era jovem, as pessoas saíam de casa aos dezesseis anos e viviam de forma independente. Isto mudou e acredito que a tendência neoliberal é no sentido da família alargada. É aqui que não guardo romantismo para as famílias tradicionais. E acho que temos que ser muito céticos quando as pessoas evocam essas ideias ou as romantizam.
Em The asset economy – juntamente com Lisa Adkins e Martijn Konings – vocês explicam como desde a década de 1980 temos entrado numa fase de “bem-estar baseado em ativos”. A financeirização (especialmente a da habitação) substituiu o Estado de bem- estar. Que consequências isso tem para a configuração das classes sociais?
Isto é algo que os neoliberais progressistas da terceira via apostaram. Eles pensaram: “Se conseguirmos empurrar o maior número possível de pessoas para a aquisição de casa própria e apoiarmos o aumento dos valores das casas, atrairemos esses eleitores para a economia da transmissão da riqueza familiar”. Por vezes, o argumento era “vamos criar uma geração de pequenos conservadores: pessoas que querem proteger a sua propriedade e a riqueza familiar”. Penso que, em muitos aspectos, foi uma proposta muito exitosa. As casas tornaram-se os ativos financeiros da classe média. O problema aqui é que chega um momento em que já não é possível incorporar as pessoas nesta economia porque os preços da habitação e os níveis de dívida disparam.
Há muito tempo ultrapassamos aquele momento em que existia uma espécie de neoliberalismo aspiracional e estamos começando a ver novamente as linhas divisórias. Há uma fratura entre as pessoas que possuem propriedades ou cujos pais têm propriedades que irão herdar – mesmo mais tarde na vida – e aquelas que nunca herdarão e que estão presas no aluguel e em trabalhos precários. Isso transforma a forma como as classes são organizadas. Podem ser duas pessoas, ambas com empregos profissionais relativamente bem remunerados, mas numa cidade com preços imobiliários muito elevados, elas estão, na verdade, em posições de classe completamente diferentes. Não é necessário preocupar-se com os custos da habitação ou com o crédito ao consumo porque a habitação pode respaldar esses créditos. Assim, no livro tentamos estabelecer uma tipologia alternativa de classe que levasse em conta as posições das pessoas em relação aos ativos financeiros, incluindo a habitação. No topo estão as pessoas que possuem e comercializam ativos financeiros não residenciais – capital de investimento, propriedade intelectual… –, e depois uma classe média alta cujo principal ativo é a habitação. Aqueles que têm propriedades de investimento e aqueles que possuem apenas uma residência já estão numa posição de classe diferente, mas depois há todo um grupo de pessoas que têm hipotecas e que são, na verdade, proprietários de uma forma diferida, aspiracional, estão simplesmente endividados, o que é uma situação perigosa, tendo em conta a precariedade geral do trabalho. Portanto, também matizamos nossa análise de turma em termos de trabalho inseguro. Mas ter um emprego inseguro e uma casa como garantia por trás de você é muito diferente de estar na mesma situação, mas sem ativos.
O que isto significa em termos de família é que regressamos a uma espécie de economia dinástica. As oportunidades sociais são determinadas pelos seus pais e pelo bem-estar dos pais. E o outro lado disto são as economias do trabalho forçado por dívida, que envolvem gerações inteiras. Um exemplo muito claro disso é a economia dos empréstimos estudantis nos Estados Unidos. Muitas vezes, são os avós e os pais que se endividam para permitir que um filho faça faculdade, na esperança de que esse filho consiga um emprego bem remunerado o suficiente para saldar uma dívida que envolve várias gerações da família. Esta é uma forma de trabalho forçado por dívida. Não se trata de dívida pessoal, mas de formas de dívida familiar intergeracional.
Assistimos também ao ressurgimento de formas familiares de empresas capitalistas em todo o mundo. É óbvio quando você olha para pessoas como Donald Trump, Coke Industries… Essas empresas familiares privadas sempre existiram, mas assumiram uma nova proeminência e centralidade no capitalismo estadunidense que não tinham na década de 1970. Então eu acredito que este regresso da família como vetor de transmissão de riqueza está ocorrendo em vários níveis diferentes simultaneamente.
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