Até 1987, sequer havia banheiro feminino no plenário da Câmara. Com base em dogmas religiosos, MP defendeu código de vestimenta que “distinguia os personagens”. Regras eram arbitrárias. Este ano, polêmica reviveu constrangimento às mulheres
Publicado 27/05/2024 às 16:41
Por Karla Gamba, na Pública
Era início da década de 1970 quando uma jovem advogada saiu do Rio de Janeiro rumo a Brasília para participar de um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Trajando roupa social, composta por blazer e calças compridas, a mulher vinha desempenhar um papel de destaque na sessão de que participaria. No plenário da corte, faria uma sustentação oral, isto é, quando advogados falam diante dos ministros para defender réus em um processo. Mas o julgamento teve início antes mesmo de ela entrar no plenário da Suprema Corte brasileira: a advogada teria sido barrada pelos seguranças por estar usando calças, e não vestido ou saia, que eram as vestimentas consideradas adequadas para mulheres que frequentavam o STF naquela época. Alguns funcionários mais antigos dizem que a mulher chegou a tirar as calças e entrar só de blazer e calcinha. Outros dizem que a afronta não atingiu tamanha proporção. A história foi virando uma lenda e, mesmo sem comprovações oficiais do episódio, pode ser ouvida nos corredores e gabinetes do Supremo.
Lenda ou não, nos anos que se seguiram ao suposto episódio até os dias atuais, o STF acumulou diversas outras situações de mulheres que foram impedidas de entrar por não estarem vestidas “de forma adequada”. A instituição não foi a única, nem o Judiciário o único poder da República que manteve a exigência de vestidos e saias para mulheres em suas dependências mesmo após décadas de aceitação da sociedade brasileira ao uso de calças compridas femininas.
O cenário só começou a mudar em 1997. Ao menos no papel.
Naquele ano, o então presidente do Senado Antônio Carlos Magalhães autorizou que mulheres usassem calças compridas no plenário, salas de comissões e outros locais de circulação da Casa.
Eleita senadora pelo PT no ano seguinte, em 1998, Heloísa Helena foi uma das primeiras parlamentares a colocar em prática a medida e tornar habitual o uso de calças femininas: “Antes tarde do que nunca”, respondeu ao ser indagada pela Agência Pública sobre o assunto. A ex-parlamentar lembra que 20 anos antes, em 1978, quando uma mulher assumiu pela primeira vez uma cadeira no Senado, nem sequer existia banheiro feminino no plenário, construído somente em 2016.
Na esteira do que acontecia no Legislativo e no Supremo, os anseios pela liberação do uso de calças para mulheres já não se ancoravam apenas em longínquas histórias ou lendas sobre as vestimentas femininas no local, mas na realidade das servidoras da corte, que decidiram se unir, no início do ano 2000, para pleitear a autorização da vestimenta. Um ofício assinado por 63 servidoras foi enviado ao gabinete do então presidente do tribunal, ministro Carlos Velloso.
Ata de 2000 documenta a solicitação da liberação do uso de calças para mulheres na Corte
Familiar de uma servidora da época, uma advogada – que preferiu não se identificar – contou que, curiosamente, naquele momento foi constatado que não havia de fato uma norma que proibisse mulheres de usar calças. “Uma regra oculta, não sei. Ninguém sabia explicar, mas o regramento oficial só previa normas sobre roupas masculinas”, disse a advogada. Ela relatou ainda que há poucos anos, quando ainda era estudante de direito, foi barrada em uma visita ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) por estar usando “calça muito justa, que parecia legging”. Segundo ela, a análise da roupa foi feita por um segurança que passava no segundo andar do prédio onde ocorrem os julgamentos.
A mobilização das servidoras ganhou força e foi endossada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No processo, as trabalhadoras do tribunal alegavam que a limitação do vestuário representava um “cerceamento do direito à liberdade das mulheres”, garantido pelo ordenamento jurídico e pela Constituição Federal. A OAB falava em “postura discriminatória”.
O Ministério Público Federal (MPF), por outro lado, se manifestou contra a liberação do uso de calças para mulheres. Ronaldo Bomfim dos Santos, subprocurador-geral que atuou no caso, defendeu que as roupas “distinguiam os personagens” e que a saia estava para a mulher assim como o terno e gravata estavam para o homem, a toga para o juiz, a batina para o padre e o uniforme para o militar. Em sua manifestação, o subprocurador recorreu ainda a dogmas religiosos cristãos para defender a permanência da obrigatoriedade de saias e vestidos: “Se Deus não fez o homem e mulher iguais, é porque não quer que os sejam iguais”.
Mas o apelo das servidoras foi atendido por maioria de votos. Assim, três anos após o Senado, em 2000, o STF autorizou que mulheres usassem calças compridas, além de vestidos ou saias, mas não sem o uso obrigatório de blazer compondo o dress code.
A decisão foi tomada em uma sessão administrativa, ocorrida em 3 de maio de 2000, na qual só ministros homens votaram. Isso porque, até aquele momento, em mais de um século de existência, nenhuma mulher tinha ocupado uma cadeira de ministra do Supremo – o que mudou meses depois, no final do mesmo ano, quando Ellen Gracie foi empossada ministra.
No meio jurídico, quando a Suprema Corte do Judiciário toma uma decisão, diz que se abre um precedente para que os demais tribunais do país sigam a mesma linha. Nesse caso, porém, isso não ocorreu. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pioneiro no tema, já não impunha que mulheres usassem só vestidos e saias. No Tribunal Superior do Trabalho (TST) e no STJ, a autorização ocorreu depois, mas o assunto ainda rende discussões e, de tempos em tempos, mudanças nas normas sobre vestimentas.
No STJ, a mudança mais recente no código de vestimentas foi aprovada em fevereiro deste ano e gerou muita polêmica. Entre as peças proibidas estavam calças justas do tipo legging, blusas sem manga e cropped (peça que deixa parte da barriga à mostra). A nova regra não durou muito. Dois meses depois, em abril, foi suspensa pelo corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, que também é ministro no STJ. Salomão alegou que as exigências poderiam constranger o público feminino.
Direito adquirido não foi direito garantido
Seis anos após o STF ter permitido que mulheres usassem calças compridas, além de vestidos e saias, trabalhadoras, jornalistas e até visitantes que chegavam ao local continuavam sendo barradas. Ex-assessoras e jornalistas que estavam frequentemente na corte contaram à Pública que as regras, por vezes, eram subjetivas e determinadas pela segurança ou cerimonial.
Em 2006, já senadora pelo PSOL, a mesma Heloísa Helena, citada no início da reportagem, causou desconforto no Supremo. Conhecida por usar calças jeans e camiseta no plenário do Senado, ela foi ao STF acompanhar o julgamento de uma ação proposta pelo seu partido. Vestindo seu look trivial de sempre, a parlamentar só não foi barrada por recomendação da ministra Ellen Gracie. Ao ser questionada por jornalistas, a senadora disse aos jornalistas que não sabia da regra sobre as roupas.
O episódio foi noticiado pela imprensa e efervescia outra vez a discussão sobre a patrulha das vestimentas de mulheres, que começaram a levar reclamações para ministros, em conversas informais. Meses após o episódio do jeans, a tradição foi quebrada.
Menos de um ano após sua posse como ministra do STF, ocorrida em 21 de junho de 2006, Cármen Lúcia – a segunda mulher a ocupar uma cadeira no tribunal – decidiu colocar em prática a regra deliberada sete anos antes. A ministra tinha ouvido queixas de mulheres que davam expediente na corte e as reclamações iam desde tamanho de vestido ou saia até a cor da roupa.
Segundo contou à Pública, em 14 de março de 2007 ela estava “determinada a quebrar com o protocolo arcaico e obsoleto”. Cármen Lúcia avisou aos pares que no dia seguinte iria para o trabalho de calças compridas. E assim o fez. O anúncio atraiu olhares e deixou a imprensa preparada para os registros. A ministra chegou ao plenário usando um terninho preto, e foi a primeira vez que uma mulher ministra participou da sessão e votou usando calças compridas.
Uma jovem advogada – com seus 30 e poucos anos – que assistia à sessão e testemunhou tudo, descreveu o momento como “um dia de muita emoção” e disse que algumas mulheres que lá estavam tiveram vontade de aplaudir Cármen Lúcia: “Com muita alegria eu estava lá quando a primeira mulher entrou vestindo uma calça comprida. Ela não foi a primeira ministra da Suprema Corte, mas foi a que fez a diferença. É sempre importante a gente tentar fazer a diferença nos espaços que atua. Naquele dia, a ministra Cármen Lúcia liberou as mulheres do Brasil todo para se vestirem de forma digna, mas de calça.
Uma coisa que chegou com cem anos de atraso”.
O gesto da ministra Cármen Lúcia entrou para a história e ilustrou capas de jornais. Mas, na prática, a ruptura com o antigo código de vestimenta foi sendo conquistada aos poucos, ao longo dos anos. A mesma advogada que foi espectadora daquele momento foi proibida, tempos depois, de entrar no plenário porque a manga curta do blazer deixava à mostra 4 centímetros do seu punho: “Fui barrada uma vez no plenário do Supremo porque minha calça era um pouco curta e aparecia o calcanhar, e meu blazer era curto e aparecia meu punho. E o segurança mediu e disse que aparecia mais de 4 centímetros do meu punho e eu não poderia entrar no tribunal. Tentei alegar que estava na moda, que a então presidente Dilma Rousseff usava um modelo parecido, mas não adiantou. Tive que trocar de roupa com minha estagiária porque eu ia fazer uma sustentação oral e não poderia faltar”.
Tentar fazer a diferença, no menor espaço que seja, foi o lema que conduziu a advogada Daniela em sua trajetória profissional até 2023, quando chegou a vez de ela ser protagonista da história. Passados 16 anos, o blazer e a calça, milimetricamente medidos, foram substituídos pela toga e Daniela Teixeira passou a ser ministra do STJ.
Daniela Teixeira, ministra do STJ, em seu gabinete
Congresso não estava preparado para receber mulheres
O fato de o Judiciário ter sido, de todos os três poderes, aquele que mais demorou para romper com a rigidez e exigências sobre o dress code feminino não deu às mulheres eleitas no Legislativo uma vida mais fácil.
Benedita da Silva (PT-RJ) conta que, quando chegou à Câmara para seu primeiro mandato como deputada Constituinte, não havia banheiros femininos. “A primeira dificuldade que nós encontramos foi no plenário da Câmara, que não tinha banheiro feminino. Isso era muito sério.”
O plenário da Câmara ganhou seu primeiro banheiro feminino somente em 1987, ou seja, 27 anos depois de sua inauguração. “Mas nós também tivemos dificuldade de ter a residência funcional, porque muitos deputados que não eram reeleitos já passavam o apartamento para outros homens recém-eleitos. Eu, por exemplo, levei um tempo para conseguir”, afirmou Benedita.
Ela ressalta que a presença de mais mulheres, sobretudo mulheres negras, foi mudando o cenário com o tempo e trouxe uma diversidade positiva para o Congresso. “Eu sempre procurei ter uma boa vestimenta, mas tudo era dentro das minhas condições financeiras. Hoje nós temos mais mulheres negras que se vestem igual a mim na Câmara. E [a mudança] vai do cabelo até o modo de se vestir, de andar e falar, porque temos diversidade.”
Deputada Benedita da Silva ressalta desafios e progressos para mulheres negras no Congresso
Ainda assim, a deputada, que já está em seu sexto mandato, conta que presenciou situações recentes em que colegas parlamentares foram barradas por não estar “se vestindo adequadamente”. “Vi mais situações fora, de nós irmos para o Supremo, e dizerem que mulher de calça e sem blazer não podia entrar. Eu vi uma cena com a Jandira Feghali [deputada federal pelo PCdoB do Rio] sendo barrada por estar sem blazer. Ela disse para o segurança que nunca tinha usado isso na vida, que nunca gostou, e a gente teve que fazer uma ‘guerrinha’ lá para conseguir entrar.”
Da construção do primeiro banheiro feminino à aceitação de calças
Plenário do Senado em obras em 2016 para construção de um banheiro feminino. Desde a inauguração do prédio do Congresso, em 1960, só existia no plenário banheiro masculino
• 1987: deputadas pressionam e conquistam a construção de um banheiro feminino no plenário e flexibilização nas regras de vestimentas;
• 1997: Senado passa a aceitar que mulheres usem calças no plenário e outros espaços da Casa;
• 2000: após processo movido por servidoras do STF, o tribunal também passa a aceitar o uso de calças compridas para mulheres, mas com a obrigatoriedade do uso de blazer;
• 2007: ministra Cármen Lúcia usa calças em sessão, tornando-se a primeira mulher da corte a usar a vestimenta no plenário;
• 2016: Sob a pressão de mulheres parlamentares, Senado instala o primeiro banheiro feminino em seu plenário.
Ministras do TSE: “Patrulha maior com mulheres negras”
As ministras Edilene Lôbo e Vera Lúcia, primeiras mulheres negras no Tribunal Superior Eleitoral, discutem como o rigor excessivo em normas de vestuário e aparência afeta desproporcionalmente mulheres negras
Edilene Lôbo e Vera Lúcia, ministras do TSE, alertam que a “patrulha da moda” atua de forma ainda mais rigorosa com mulheres negras. As duas foram as primeiras mulheres negras a assumir uma cadeira de ministra na corte eleitoral.
“Já me pararam na entrada do TJDFT [Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios], onde eu ia sempre, seja para checar a roupa, pelo jeito que estava o meu cabelo. Os seguranças me conheciam, mas não me viam como advogada”, contou à Pública a ministra Vera Lúcia.
A ministra Edilene Lôbo levanta a questão de que as regras rígidas sobre vestuário dificultam o acesso não somente das mulheres aos espaços de poder como também da população mais pobre.
A dificuldade citada pela ministra se revela em dados registrados por órgãos oficiais, que mostram a desigualdade e sub-representação. Em cargos eletivos, seja no Legislativo ou Executivo, dados do TSE mostram que de presidente da República a vereador, nenhum cargo atinge uma porcentagem equilibrada de homens e mulheres entre os ocupantes. O que mais se equilibra é o de segundo suplente de senador, com 44% de mulheres.
No Judiciário a situação se repete. A última pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros, em 2018, mostrou que em nenhum dos cargos do Poder Judiciário a quantidade de mulheres atingiu a porcentagem de 50%. O maior equilíbrio ocorre entre juízes substitutos, primeiro cargo da carreira, com 44% de mulheres no posto. À medida que a carreira evolui, a quantidade de mulheres diminui consideravelmente. Atualmente, a instância mais alta da Justiça brasileira, o STF, possui 11 ministros, sendo dez homens e apenas uma mulher.
O presidente Lula foi bastante cobrado nas duas últimas oportunidades em que teve de indicar novos membros para a corte – quando Ricardo Lewandowski e Rosa Weber se aposentaram. Movimentos sociais, diversas entidades, organizações da sociedade civil e até parte da base governista reivindicaram a indicação de mulheres, sobretudo de uma mulher negra – fato que seria inédito no Supremo. No entanto, Lula acabou optando por indicar homens para as duas vagas.
No último 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a ministra Cármen Lúcia foi categórica ao afirmar no plenário do Supremo que a possibilidade de construção conjunta muitas vezes foi negada às mulheres. A magistrada conclui com uma frase forte, em referência a diversas violências que a mulher ainda sofre na sociedade: “Dizem que fomos silenciosas historicamente. Mentira! Nós fomos silenciadas, mas sempre continuamos falando, embora muitas vezes não sendo ouvidas”.