Quase lá: Dia Internacional da Mulher: Palestina e armas de gênero e sexualidade

Para muitas mulheres, o Dia Internacional da Mulher é um espaço de encontro e reflexão sobre suas experiências e formas de resistência

 
Por Samreen Mushtaq, com tradução de Waldo Mermelstein, do Esquerda Online
 
 

Não há como fugir das imagens e vídeos angustiantes que saem da Palestina todos os dias. Em um desses vídeos, não explicitamente “brutal” como os demais, um soldado israelense mostra um par de saltos altos pertencentes a uma mulher palestina. Ele se gaba dizendo como eles são bonitos e que vai ser um presente para sua festa de noivado. Uma lembrança de uma casa arruinada e desolada. Nesse contexto, que discursos e silêncios marcam o dia da mulher? Quais mulheres, cuja opressão e cujas resistências compõem as conversas nas revoluções feministas globais e sua definição de vidas dignas?

“Celebrando” o Dia Internacional da Mulher

Nos últimos dias, tenho me perguntado como pensar no Dia Internacional da Mulher ou se faz sentido escrever sobre ele. Não que nunca tenha sido enorme na agenda onde cresci, ou em outros contextos. Especialmente considerando que, para muitas mulheres em todo o mundo, em várias frentes, múltiplas batalhas estão em andamento a cada dia e para as muitas marginalizadas, a ideia de um dia da mulher para celebrar é “distante”. Destacar um dia para falar dessas questões ou refletir sobre elas parece simbólico ou inadequado.

Isso sem esquecer que, para muitas mulheres, o Dia Internacional da Mulher é um espaço de encontro e reflexão sobre suas experiências e formas de resistência. Mas especialmente agora, nos tempos em que vivemos, onde a violência inimaginável sobre corpos, casas, memórias palestinas está em curso, como se fala especificamente de gênero? Enquanto luto com esses pensamentos, Israel cometeu o que os comentaristas estão chamando de “massacre da farinha“. Dezenas de palestinos em Gaza foram mortos depois que tanques israelenses abriram fogo contra pessoas reunidas para receber ajuda alimentar, enquanto enfrentam fome. Mais de uma centena de pessoas morreram, e muitas outras ficaram feridas, algumas delas perderam os membros do corpo.

Vimos todo um sistema de saúde desmoronar. Bebês mortos abandonados na seção pediátrica de um hospital após a evacuação forçada. Gestantes saíram sem assistência médica. Mulheres submetidas a uma cesariana para dar à luz sem anestesia. Cirurgiões operando-os sem água disponível para sequer lavar as mãos. Grupos de direitos humanos e agências humanitárias têm abordado isso em seus apelos para pedir um cessar-fogo.

A invocação repetida de mulheres e crianças palestinas suscita uma condenação generalizada, embora em nada afete ao sistema que permite que uma força violenta continue com um terror inimaginável. O que também mostra é a invisibilidade dos homens palestinos – a ausência de qualquer luto público, como se eles não fossem merecedores de uma vida ou morte digna. Os palestinos, independentemente de gênero e identidade sexual, continuam sendo mortos, feridos, mutilados e passando fome. O que resta do sistema humanitário depois disso e suas promessas de direitos para todos? Como se fala do Dia Internacional da Mulher em meio a um genocídio?

Utilizando o gênero e a sexualidade como uma arma

Há maneiras pelas quais gênero e sexualidade foram especificamente implantados para justificar os crimes em andamento. O que temos testemunhado como parte desse genocídio e sua guerra narrativa é feminismo de segurança em exibição– mulheres que se unem à linha de frente do violento aparato de segurança como parte das Forças de Defesa de Israel. Elas estão sendo apresentadas como “símbolos de progresso e igualdade” e “conquistando novos limites”. De muitas maneiras, torna-se uma forma de reforçar a imagem do exército, pois a presença de mulheres busca fazer com que o exército pareça mais humano – afinal, as mulheres são ostensivamente gentis, carinhosas e carinhosas e, portanto, a instituição que representam é uma projeção da mesma natureza benevolente.

É também uma forma de apelar às reivindicações de igualdade de gênero – que as mulheres sejam participantes em condições de igualdade, tenham oportunidades iguais e invistam igualmente na luta “justa” contra o Outro “terrorista”. Isto se remete {à utilização dessas mulheres como uma utilização do gênero e da sexualidade como uma arma, onde essas mulheres “corajosas” que lutam por seu direito de propriedade sobre a terra palestina são mostradas como representando a forma perfeita de subjetividade feminina, em oposição às mulheres palestinas transformadas em Outras.

Somado ao espetáculo de imagens de conquistas, também vimos imagem após imagem de soldados israelenses segurando alegremente lingeries encontrada nas casas que eles destruíram ou de onde expulsaram os palestinos. Roupas pertencentes a mulheres que podem ter sido mortas ou deslocadas. Nas casas em ruinas, nos escombros do que já foi o espaço pessoal de alguma família, encontrar e exibir objetos íntimos como um desempenho da masculinidade militar de alguma forma traz à tona uma emoção de total alegria, aliada à humilhação e desumanização a que procuram submeter os palestinos.

É como se os colonizados não tivessem uma vida de intimidade, e como se essas imagens fossem uma exposição da vida pessoal dos palestinos, seus desejos e intimidades. Esta violência visual, com o objetivo de reivindicar o poder, desumanizar e humilhar os palestinos, é uma dimensão constitutiva da ocupação militar e mostra como ela se deleita com seu controle sobre os espaços públicos e privados.

Urgência das Solidariedades Globais

Quando pensamos nos direitos das mulheres hoje, é importante entender como gênero e sexualidade são utilizados como arma para a dominação colonial que produz vieses negativos de gênero, mesmo que essas identidades específicas não funcionem para diferenciar a vulnerabilidade em um genocídio. Como nos lembra Abeera Khan, “nem a sexualidade nem o gênero oferecem proteção contra ocupação, colonização e genocídio”. O discurso dos direitos das mulheres não pode nem deve distanciar-se das conversas e da indignação sobre o genocídio em Gaza. A necessidade  de solidariedades globais contra formas de opressão interseccionadas nunca foi tão urgente.

No Dia Internacional da Mulher (8 de março), enquanto ativistas se reúnem em todas as plataformas duramente lutadas e conquistadas por defensores dos direitos das mulheres após décadas de lutas, devemos ver como uma responsabilidade urgente levantar nossas vozes contra a ocupação militar e sua violência inimaginável. Caso contrário, os gritos e silêncios ensurdecedores da Palestina nos assombrarão para sempre.

Samreen Mushtaq é indiana, pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Estudos de Desenvolvimento. Sua pesquisa se baseia em suas experiências vividas como uma mulher muçulmana da Caxemira e seu trabalho etnográfico na Caxemira nas interseções de gênero, nacionalismo, violência e militarismo.
Texto original em Institute of Development Studies.

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