Legislação surgiu no Brasil em 2010 para proteger crianças em processos de separação. Segundo especialistas, porém, tem sido usada contra mulheres que denunciam homens por violência doméstica ou abuso sexual dos filhos. Conceito não tem lastro científico e foi proibido na Espanha e na Colômbia.
Por Isabel Seta, Isabela Leite
O que é a Lei de Alienação Parental e como ela está sendo usada; entenda
Desde 2010, o Brasil tem uma lei sobre alienação parental, criada para evitar possíveis abusos emocionais de crianças e adolescentes durante processos de divórcio.
A aplicação dessa norma, porém, tem sido contestada por peritos da Organização das Nações Unidas (ONU), do Ministério Público Federal (MPF), do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), além de especialistas e parlamentares.
Segundo os críticos, a lei tem sido usada contra mulheres que denunciam homens por violência doméstica ou abuso sexual dos filhos. O objetivo é deslegitimar a palavra das mães e, muitas vezes, tirar delas a guarda de crianças.
“A lei desconsidera os dados empíricos da realidade brasileira, de violência estrutural [1 mulher foi morta a cada 6 horas no Brasil em 2022, segundo dados do Monitor da Violência, e 45 mil menores de idade sofrem violência sexual no país por ano, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)], promovendo a entrega de crianças de tenra idade a pais agressores. Ignora o elevado peso cultural que o machismo e a misoginia possuem no Brasil”, diz Romano José Enzweiler, juiz do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Três projetos de lei foram protocolados nos últimos anos para revogar a Lei da Alienação Parental (lei 12.318/2010), única do tipo no mundo, segundo o Ministério Público Federal (saiba mais abaixo).
Embora a norma preveja que tanto o pai quanto a mãe podem ser considerados alienadores, é sobre as mulheres que essa acusação tem recaído com mais frequência e com mais peso, segundo a procuradora da República aposentada Ela Wiecko, que orienta pesquisas sobre o assunto na Universidade de Brasília (UnB).
“As sanções que [as mães] recebem são mais graves comparativamente aos casos em que os homens foram considerados alienadores, as análises que sobre elas incidem são bem mais depreciativas do que as que incidem sobre homens."
O g1 ouviu cinco mães que passaram ou estão passando por essas situações (leia a reportagem aqui).
Nesta reportagem, você vai ver:
- O que é alienação parental
- O que diz a lei brasileira sobre o assunto
- Como a lei tem sido usada no Brasil
- O que diz quem a defende
- Quais são os pedidos e projetos para revogar
Entidades pedem que seja revogada a lei de alienação parental — Foto: Reprodução/Fantástico
O que é alienação parental?
A ideia de uma "síndrome de alienação parental" foi criada pelo psiquiatra e perito judicial americano Richard Gardner, que já escreveu que “há um pouco de pedofilia em cada um de nós” e que mulheres com “sexualidade aumentada” reduzem o risco de pais abusarem das filhas.
Em casos de disputa de guarda, ele considerava frequente o uso de “campanhas de difamação” e acusações “falsas” de abuso, em geral por parte das mães contra os pais, para afastá-los dos filhos. Isso produziria na criança o que ele chamou de “síndrome de alienação parental”.
Na teoria do americano, o diagnóstico se basearia nos sintomas exibidos pela criança e exigiria diferentes respostas, inclusive do Judiciário, como ameaça de perda da guarda.
As observações de Gardner, no entanto, não eram revisadas por pares e não se baseavam em dados empíricos.
A síndrome, que jamais foi aceita pela Associação Americana de Psiquiatria, chegou a ser reconhecida como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que voltou atrás e a retirou da CID (Classificação Internacional de Doenças) em 2020.
No Brasil, as ideias de Gardner foram incorporadas em meados dos anos 2000 por organizações de pais e mães separados e integrantes do Judiciário, e o tema ganhou uma lei própria em 2010.
A justificativa do projeto que originou a lei brasileira traz o trecho de um artigo que cita Richard Gardner diretamente e afirma que a ruptura do casamento pode gerar nas mães uma “tendência vingativa”.
O que diz a lei brasileira sobre alienação parental?
A lei define alienação parental como a “interferência na formação psicológica” da criança ou do adolescente visando prejudicar o vínculo com o pai ou a mãe e a produção de repúdio contra um deles.
Conforme a justificativa da norma, a alienação parental "merece reprimenda estatal" por ser uma "forma de abuso no exercício do poder familiar, e de desrespeito aos direitos de personalidade da criança em formação".
Além de atos declarados pelo juiz ou constatados em perícia, são entendidos como alienação:
- dificultar o contato dos filhos com pai/mãe ou o direito de visita;
- “realizar campanha de desqualificação da conduta” de um dos pais no exercício da paternidade/maternidade;
- “omitir deliberadamente informações pessoais relevantes” sobre os filhos;
- “mudar o domicílio para local distante, sem justificativa”;
- e “apresentar falsa denúncia” contra um dos pais para “dificultar a convivência”.
Em casos de indício de alienação, o juiz pode determinar uma perícia psicológica e social, que envolve entrevistas com os envolvidos e avaliações psicológicas e psiquiátricas.
Constatados tais atos de alienação, o juiz pode, a depender da gravidade do caso:
- fazer uma advertência ou estipular multa ao alienador;
- ampliar o regime de convivência em favor da parte considerada alienada;
- determinar acompanhamento psicológico;
- mudar o regime de guarda -- seja invertendo totalmente a guarda ou determinando guarda compartilhada;
- determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou do adolescente.
Segundo o autor do texto, Régis de Oliveira, então deputado federal pelo PSC e hoje professor da Universidade de São Paulo (USP), o objetivo é proteger crianças de serem usadas por qualquer um dos pais como instrumento de vingança.
"A lei deu instrumentos ao juiz para que em casos específicos de pais que tentam usar seus filhos, ele possa tomar a decisão adequada. Agora, se a lei está sendo mal utilizada, isso é outra coisa", afirmou Oliveira, que admite ajustes, mas é contra a revogação da lei.
Como a lei de alienação parental é usada no Brasil?
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 4,5 mil ações de alienação parental foram apresentadas à Justiça a cada ano nos últimos 5 anos. O volume cresceu durante a pandemia de Covid (veja no infográfico abaixo). Em 2023, até outubro, foram 5.152 processos de alienação -- casos de divórcio litigiosos somam 148.995 no período.
Pesquisas feitas em tribunais do país mostram que, em regra, o alvo da acusação de alienação parental é a mãe.
As pesquisadoras da USP Fabiana Severi e Camila Villarroel avaliaram 1.478 processos de alienação dos tribunais de Justiça de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Elas descobriram que a mãe foi o alvo da acusação de alienação em 80% dos processos que envolvem violência doméstica contra a mãe e em 70% nos que envolvem abuso sexual contra as crianças.
Os casos de alienação parental têm tramitação prioritária. Assim, a mãe pode perder a guarda do filho para o pai denunciado por ela antes de uma eventual investigação criminal sobre os abusos ser concluída.
O coletivo Mães na Luta, que reúne mulheres que já passaram ou estão passando por processos de litígio de guarda, estima ter atendido desde 2016 ao menos 700 mães que tiveram a guarda de seus filhos ameaçada com base nessa acusação.
Em 2019, um levantamento das situações processuais de mães atendidas pelo grupo mostrou que a guarda foi revertida em prol do pai acusado em 81% dos casos com denúncias de abuso sexual.
“Os tribunais de família rejeitam regularmente as alegações de abuso sexual das crianças apresentadas pelas mães contra pais ou padrastos, desacreditando e punindo as mães, incluindo através da perda dos direitos de custódia dos seus filhos”, afirmaram os peritos da ONU em carta enviada ao governo brasileiro em 2022 pedindo a revogação da lei.
De acordo com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, os depoimentos das mulheres são cruciais, pois situações de abuso — que não têm testemunhas e não deixam vestígios — "dificilmente serão provadas judicialmente”.
“Para esses casos, o relato das mães, das crianças e dos adolescentes vítimas pode ser ferramenta útil na tomada de decisão de medidas para a interrupção e reparação dos efeitos do abuso. A Lei da Alienação Parental se mostra, então, como uma ameaça para essas providências, pois formaliza a desconfiança frequente que paira sobre as denúncias de mulheres”, escreveu a Procuradoria em nota técnica de 2020.
O fato de, em geral, os processos correrem em sigilo (por envolverem menores de idade) joga contra as mães e as crianças, avalia a procuradora da República aposentada Ela Wiecko.
“Paradoxalmente, o sigilo previsto para preservar o direito à intimidade de crianças, adolescentes e de mulheres pode operar em desfavor delas ao acobertar também violências institucionais”, diz Ela.
Atualmente, o CNJ está elaborando um protocolo para a realização da escuta de crianças e adolescentes envolvidos em ações de alienação parental.
Em entrevista por escrito ao g1, a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi, coordenadora do grupo responsável pelo protocolo, afirmou que o objetivo do trabalho é dar uma resposta concreta a essas críticas e “definir um protocolo que venha a ser observado, de forma uniforme, pelos juízes, juízas e demais atores do sistema de justiça, com o escopo de evitar eventuais revitimizações”
Pai abusador usa Lei de Alienação Parental para tomar guarda de filho
Como é em outras partes do mundo?
Uma análise de processos judiciais nos Estados Unidos envolvendo denúncias de abuso e alienação ao longo de um período de 10 anos (2005-2014) mostrou que, quando acusadas de alienação, as mães têm o dobro de chance de perder a guarda de seus filhos na comparação com pais acusados de praticarem alienação.
Em 2023, a relatora especial da ONU sobre violência contra mulheres e meninas colheu exemplos em vários países, com casos de separação dos filhos das mães e entrega a pais considerados abusivos na Colômbia, Austrália, Áustria, Alemanha e Reino Unido -- além do Brasil.
A gravidade da aplicação do conceito de alienação parental em casos envolvendo violência já levou países a barrarem totalmente seu uso.
Em janeiro, a Suprema Corte da Colômbia proibiu a utilização do termo “ferir os direitos de crianças e adolescentes, reproduzir estereótipos de gênero e gerar eventos de discriminação”.
Na Espanha, a legislação também impede que a teoria da "síndrome de alienação parental" seja levada em consideração pelo poder público.
O que diz quem defende a lei?
Na avaliação da advogada Renata Nepomuceno e Cysne, diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), "eventuais deficiências e má aplicação da lei" devem ser identificadas e corrigidas, mas revogá-la significaria enfraquecer a rede de proteção infantil.
"É primordial identificar as omissões que a eventual revogação da lei deixará", disse ela em entrevista ao portal do IBDFAM, que apoiou a criação da legislação. Procurada, Cysne aceitou dar entrevista, mas depois não respondeu mais às tentativas de contato da reportagem.
Regis de Oliveira, autor do texto em 2010, também é contra a revogação. Segundo ele, a lei atendeu a uma determinada situação em determinada época, mas se hoje ela se mostra insuficiente, o texto poderia ser reformulado. "A essência da lei que não pode ser mudada, de despir do pai e da mãe qualquer instinto vingativo", disse.
Como estão as discussões no Congresso?
Atualmente, três projetos pela revogação da lei brasileira estão sob análise de comissões no Congresso, dois no Senado — um de iniciativa popular e outro do senador Magno Malta (PL-ES) — e um na Câmara dos Deputados, proposto pelas deputadas do PSOL Fernanda Melchionna (RS), Sâmia Bomfim (SP) e Vivi Reis (PA).
“Nós temos hoje mais de 40 mães escondidas com ordens judiciais para devolver os filhos aos abusadores”, afirmou o senador Magno Malta, em agosto do ano passado, na Comissão de Direitos Humanos, ao defender seu projeto.
Em setembro, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil se posicionou pela revogação da lei brasileira em uma audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos -- um dos órgãos do Sistema Interamericano, da Organização dos Estados Americanos (OEA), que visa garantir os direitos humanos nas Américas.
Órgãos como o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) também já se manifestaram pela revogação da norma.
Para o juiz Romano José Enzweiler, organizador de um livro sobre o assunto, e para a procuradora da República aposentada Ela Wiecko, não há necessidade de uma lei específica sobre alienação parental. Na avaliação deles, o Código Civil já é suficiente para resolver eventuais conflitos entre os pais a respeito dos filhos durante processos de divórcio.
"Ele [o Código Civil] fornece uma série de alternativas, conferindo ao juiz amplos poderes para resolver o litígio de maneira equânime, de modo a preservar especialmente os filhos do casal", explicou Enzweiler.
Na avaliação dele, além de revogar a lei, o Brasil precisaria de uma providência como a da lei espanhola.
“A ideia da alienação parental já se instalou. É difícil bani-la, porque ela atende a interesses poderosos e ao populismo punitivo”, afirmou Wiecko.
Outra providência destacada é a implementação efetiva do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, publicado pelo CNJ em 2021, que alerta para o uso da alegação de alienação parental como “uma estratégia utilizada por homens que cometeram agressões e abusos”.
“A tese de legítima defesa da honra não existe no nosso ordenamento jurídico desde 1830 e mesmo assim nós tivemos que ir ao Supremo Tribunal mostrar que algo que não existe desde o século 19 continuava sendo contra mulheres no Judiciário”, explica a jurista e advogada Soraia Mendes.
“A inexistência de uma norma não significa que não exista a cultura. Precisamos mudar a cultura jurídica”, disse ela.
'Meu filho é órfão de mãe viva': veja relatos de 5 mulheres acusadas de alienação parental após denunciar homens por violência ou abuso
Lei brasileira criada para proteger crianças em casos de separação dos pais é criticada por especialistas por ser usada contra mães que denunciam violência doméstica ou abuso sexual dos filhos.
Por Isabel Seta, Isabela Leite
O que é a Lei de Alienação Parental e como ela está sendo usada; entenda
Cristiane foi obrigada a ficar sem contato com a filha e entregá-la ao pai por 90 dias. Isabela* foi ameaçada pelo companheiro. Jéssica* e o filho foram vítimas de violência física por parte do ex-marido. Juliana* e Soraia* denunciaram os pais de seus filhos por abusarem sexualmente das crianças.
(*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos menores de idade e de suas mães. Cristiane é a única cuja história já é pública e, por isso, concordou em dar seu nome verdadeiro.)
Todas elas foram acusadas por esses homens de promoverem alienação parental - prática prevista numa lei brasileira de 2010 criada para proteger as crianças em processos de separação, mas criticada por especialistas, que veem nela uma ameaça aos direitos de mulheres, crianças e adolescentes. Peritos da Organização das Nações Unidas já apelaram ao governo brasileiro para que elimine a lei -- a única do tipo no mundo, segundo o Ministério Público Federal (MPF).
O Judiciário acatou, em parte ou totalmente, os pedidos dos homens contra Cristiane, Isabela, Jéssica, Juliana e Soraia.
Os filhos de Isabela foram assassinados pelo pai, que se suicidou na sequência. Sob cuidados do pai, a filha de Cristiane também morreu, após maus-tratos. A criança de Jéssica fica sozinha com o pai violento. Soraia perdeu a guarda do filho para o ex-marido – à época, investigado por abuso sexual contra a criança. O filho de Juliana foi obrigado a estar reiteradas vezes na presença do pai, investigado pelo mesmo motivo (os inquéritos policiais acabaram arquivados).
Leia mais sobre cada caso abaixo.
“A guarda é minha, mas com muito peso”
“O único argumento que ele tem contra a mim é alienação parental, porque é algo subjetivo”, diz Jéssica que há seis anos enfrenta a acusação na Justiça, sem que o ex-marido tenha conseguido prová-la.
Ela -- que obteve duas medidas protetivas contra o ex-companheiro por conta de violência doméstica --, o filho e o pai da criança já foram submetidos a três perícias, e nenhuma delas constatou a alegada alienação por parte dela.
Nas três análises, o filho relatou o comportamento imprevisível do pai, que passa, rapidamente, de uma pessoa divertida a alguém violento, contou sobre as agressões que sofreu e expressou medo de ficar sozinho com ele.
A última perícia recomendou que o pai tenha acompanhamento psiquiátrico e psicológico. Segundo Jéssica, nada disso foi considerado pelo Ministério Público e nem pela Justiça, que mantém a guarda com ela, mas também um regime de visitas regulares ao pai, sem supervisão.
“Meu filho precisa ter um pai, sim, mas a única coisa que eu peço é proteção. Não quero um filho traumatizado a ponto de ser um adulto com problemas”, diz ela. Ao longo dos últimos anos, o menino desenvolveu crises de ansiedade e passou a tomar medicamentos.
“Meu filho chegou a me dizer que eu havia escapado da violência. Em seguida, me perguntou: ‘e eu?’”, conta a mãe.
“Alguém tem que parar ele”
Acusada de alienação parental pelo ex-companheiro, Isabela diz que nunca impediu que ele visse as crianças, mas se sentiu forçada a ceder a uma convivência muito maior para não perder a guarda.
Segundo ela, os relatos de violência doméstica e ameaças não foram analisados pela Vara da Família, que determinou o acompanhamento da família por um centro de assistência social. Nem quando o pai picotou as roupas das crianças na frente dos filhos esse órgão se sensibilizou.
“Como ele me acusava de ser alienadora, nada do que eu e as crianças dizíamos era prova”, afirma Isabela.
Em uma das sessões, Isabela relata ter dito à assistente social que “alguém tem que parar ele”, em referência ao ex-marido. Dias depois, o ex-companheiro assassinou as crianças com um tiro na cabeça de cada uma, e na sequência, suicidou-se.
“Nós vemos dois pesos e duas medidas”, diz a cientista social Vanessa Hacon, integrante dos coletivos Mães na Luta e Voz Materna. “Quando a criança diz: ‘não quero ver a mamãe’, o desejo dela vale. Já no sentido inverso, mesmo em casos de violência comprovada, impera o mito do bom pai. Há, nesses casos, um sobre esforço para a manutenção do vínculo com o pai em oposição a uma desconfiança quanto às denúncias das crianças e das mulheres-mães.”
“Meu filho é órfão de mãe viva”
Soraia não vê o filho desde 2016, quando ele, aos 5 anos, foi totalmente afastado dela e entregue ao pai, que, segundo ela, abusou sexualmente da criança. Naquele ano, o menino ainda dormia quando policiais, conta ela, invadiram a casa em que moravam para levá-lo.
Tudo começou quando o ex-marido entrou na Vara da Família com uma ação de guarda e regulamentação de visita, acusando Soraia de cometer alienação parental. À época, Soraia relata que já tinha feito um boletim de ocorrência por agressão física contra si e já tinha flagrado uma cena de abuso contra o filho.
“Um dia, depois de visitar o pai [enquanto a ação corria], meu filho chegou em casa muito machucado [no ânus]. Levei no Conselho Tutelar, fomos na delegacia fazer exame de corpo de delito e a própria delegada me disse: ‘você não vai mais entregar seu filho para esse homem’”, diz a mãe.
Na ação de guarda, Soraia foi diagnosticada com um distúrbio psiquiátrico (esquizofrenia paranoide) por uma psiquiatra indicada à Justiça, segundo ela, pelo ex-marido. Já o filho foi apontado como possível vítima de alienação parental.
Foi o que bastou para que a palavra dela deixasse de ser considerada no Judiciário -- os vários laudos que descartavam qualquer distúrbio psiquiátrico ou doença mental não foram suficientes para reverter essa situação.
Também não foi levado em conta um laudo psicológico indicando a influência inadequada de erotismo sobre o menino, nem o parecer psicológico, realizado na investigação policial contra o pai, que, apesar de inconclusivo, apontou que a criança havia apresentado um relato organizado e detalhado de abuso. O inquérito contra o pai foi arquivado.
O caso dela foi tema de uma reportagem do Fantástico em 2018, quando fazia pouco mais de um ano que ela estava sem ver o filho por ter sido considerada uma alienadora de grau severo. De lá pra cá, essa situação não mudou. Soraia levou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ainda não se manifestou se aceita ou não a denúncia.
“Meu filho é órfão de mãe viva. Ele pediu ajuda e entregaram ele para a pessoa que estava sendo investigada por abuso. Já eu fui considerada como uma pessoa ‘em surto’, a mãe que inventou uma denúncia para incriminar o pai”, diz Soraia.
Segundo a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, situações de abuso sexual contra crianças “que não têm testemunhas e não deixam vestígios, dificilmente serão provadas judicialmente”. Por isso, os relatos das mães, na visão do MPF, precisam ser levados em conta.
“Para esses casos, o relato das mães, das crianças e dos adolescentes vítimas pode ser ferramenta útil na tomada de decisão de medidas para a interrupção e reparação dos efeitos do abuso. A Lei da Alienação Parental se mostra, então, como uma ameaça para essas providências, pois formaliza a desconfiança frequente que paira sobre as denúncias de mulheres”, escreveu a Procuradoria em nota técnica de 2020.
“É como morrer em vida”
Quando seu filho ainda bebê mostrou, com bonecos, que o pai havia tirado sua roupa e colocado a cabeça entre suas pernas, o primeiro instinto de Juliana foi fazer um boletim de ocorrência -- na ocasião, ela já tinha deixado a casa onde morava com o pai do menino e estava tentando resolver a separação fora da Justiça.
“Meu advogado falou: ‘tem a questão da alienação parental. Você tem que agir com cautela’”, conta. O medo era de que a denúncia viesse a ser usada contra ela, que seguiu o conselho e não levou o caso às autoridades.
O ex-companheiro, no entanto, entrou com uma ação para divórcio e regulamentação de visitas, acusando-a de alienação, conforme Juliana.
No retorno de uma dessas visitas ao pai, a criança voltou a relatar que o pai o segurava e se esfregava nele. O menino pediu ajuda à mãe e à professora: queriam que elas falassem com o pai para que parasse.
“Eu pensava: se eu for na delegacia denunciar, vou perder a guarda. Me sentia uma inútil, porque não conseguia proteger meu filho”, diz Juliana.
Convencida pelo conselho tutelar, ela fez um boletim de ocorrência e a polícia começou a investigar. Com um laudo compatível para a hipótese de abuso sexual, a polícia pediu o indiciamento do pai da criança, mas o Ministério Público se manifestou pelo arquivamento.
O ex-companheiro, então, voltou a acionar a Vara da Família, acusando-a de alienação e requisitando a guarda da criança. As visitas aos finais de semana, suspensas quando a investigação policial começou, foram liberadas, sob pena de multa e de realização de busca e apreensão caso ela não entregasse o menino, conta Juliana.
Ela começou a gravar as recusas do filho de ir com o pai, relata. Acionado, o Conselho Tutelar não permitiu, em uma dessas ocasiões, que a criança fosse levada pelo pai -- ele, então, chegou a ameaçar telefonar para “seus contatos” na delegacia.
A Vara da Família novamente cortou as visitas, determinando, no entanto, encontros assistidos no fórum.
“Expuseram meu filho de novo a isso. E ele chorou, gritou, não quis entrar na sala de jeito nenhum”, conta Juliana.
Com a recusa explícita da criança, as visitas foram interrompidas, e os dois pais, submetidos a avaliações psíquicas. O laudo resultante afirma que ela não possui transtornos mentais, já ele foi apontado como alguém com falta de empatia e propenso a comportamentos violentos.
Segundo Juliana, depois disso, o Ministério Público pediu mais um laudo psicológico para saber se o menino, que passou a tomar medicamentos e em depoimento recente expressou repulsa ao pai, pode voltar a conviver com o pai.
“É uma tortura, é como morrer em vida. Eu vivo apenas para cuidar do meu filho, mas me sinto de mãos atadas”, diz ela.
“Prometi que ficaria viva para ver Justiça”
Joanna Marcenal morreu em agosto de 2010 — Foto: Marcelo Carnaval/Agência O Globo
Pouco antes de a lei sobre alienação parental ser sancionada pelo então presidente Lula, em 2010, a filha de Cristiane Marcenal, Joanna Marcenal, de apenas 5 anos, morreu depois de, por decisão judicial, ser afastada da mãe e entregue para ficar 90 dias sob cuidados do pai.
“[A decisão] foi baseada em um laudo psicológico feito por três peritas que não ouviram nem a mim, nem a Joanna; apenas o pai, a madrasta e os avós paternos. O laudo dizia que eu praticava alienação parental e sugeria esse tipo de inversão de guarda”, conta Cristiane.
Semanas depois, ela soube que a filha estava internada no hospital com meningite. O laudo do IML confirmou que a menina sofreu maus-tratos, o que agravou seu estado de saúde -- Joanna tinha queimaduras nas nádegas, além de cicatrizes e feridas pelo corpo.
O pai da menina, André Marins, foi indiciado pela polícia por tortura -- à época, ele se disse surpreso com o resultado do inquérito -- e denunciado pelo Ministério Público pelos crimes de tortura e homicídio qualificado por meio cruel. Ele chegou a ser preso e foi solto meses depois. Em 2020, a Justiça determinou que ele não irá a júri popular.
“Prometi para a Joanna no túmulo que eu ficaria viva todos os dias para ver a Justiça pra ela”, diz Cristiane. “Estou viva e esperando Justiça, sempre”.