Quase lá: Linguagens que odeiam as mulheres. Artigo de Michela Marzano

"A inexorável perpetuação da violência contra as mulheres tem as suas raízes nesse desejo obstinado de não ver que as violências extremas são a continuação daquelas cotidianas; e que começa sempre a partir do momento em que nos permitimos dizer a uma garotinha “cala a boca” ou “você não entende nada” que lhe se impede ter acesso à consciência do seu próprio valor e, portanto, à confiança em si mesma e, portanto, àqueles recursos internos necessários para rejeitar abusos e a humilhações", escreve Michela Marzano, filósofa italiana e professora da Universidade de Paris V - René Descartes, na França, em artigo publicado por La Repubblica, 16-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

A violência contra as mulheres é bastarda: insinua-se na sua existência, destruindo-as por dentro, apagando a sua identidade e reduzindo a farrapos a pouca confiança que ainda têm em si mesmas.

Quando é percebida, muitas vezes já é tarde demais. Já fez terra arrasada, já agiu: a violência física quase sempre vem depois da violência psicológica e verbal. Depois do acúmulo de palavras lançadas como pedras, uma mistura de súplicas, ameaças, controles e olhares de comiseração: você viu a que se reduziu? E agora o que você vai fazer, responda? Como você ousa? Quem você acha que é?

Quase sempre começa assim, a bastarda: uma humilhação contínua, à qual se somam o ciúme, a posse, às vezes até a inveja. Se eu não consigo, você também não deveria conseguir. Você ficou ofendida? Pare de bancar a vítima! Você também sabe bem como olhou para ele: a mesma vagabunda de sempre, a mesma vadia de sempre, a mesma nulidade.

A violência de gênero muitas vezes avança mascarada, escondida por trás de frases cheias de boas intenções e propósitos louváveis. Se ele está com ciúmes, me ama. Se ele grita, me ama. Se ele me corrige, me ama. Quantas vezes ouvimos repetir isso ou nós mesmas o repetimos, convencendo-nos de que era ele quem tinha razão, que éramos nós que não valíamos nada. Como se a existência precisasse de uma justificativa, e o valor de uma mulher dependesse sempre e somente de como os outros se comportam com ela. Enquanto o amor, com os ciúmes e os gritos, não tem nada a ver. Exatamente como não tem a ver com as censuras e as humilhações, com todas aquelas justificativas inúteis e absurdas: eu faço isso para o seu bem.

Que bem pode haver quando alguém pretende saber melhor do que nós e, no nosso lugar, o que devemos (ou não) fazer? Em nome de que bem um pai, um irmão, um namorado ou um marido, ousam tomar decisões por nós e querem nos impor a sua vontade? Dizem: faço isso por você. Dizem: um dia você me agradecerá. Dizem: agradece ao céu por ter encontrado alguém como eu que te suporta. Dizem: pare de reclamar, pense em todas aquelas que gostariam de estar no seu lugar. Os homens violentos, que quase sempre são perversos, narcisistas e manipuladores, sabem perfeitamente que existem frases que matam antes mesmo de terem levantado a mão contra a sua mulher. Antes dos gestos violentos que, mais cedo ou mais tarde, acabam chegando. Deixando rastros que ninguém, naquele ponto, pode fingir que não vê: hematomas, ossos quebrados, sangue, cadáveres.

Há quem, mesmo depois do feminicídio de Giulia Cecchettin e das palavras de sua irmã, Elena (que pediu a todas e a todos que se empenhassem para que se chegue a uma revolução cultural), continua a questionar a noção de continuum, ou seja, a ideia segundo a qual o feminicídio representaria o polo extremo de um espectro que inclui uma ampla variedade de abusos físicos, sexuais, psicológicos e verbais.

Há quem insista na inutilidade do conceito de cultura do estupro, argumentando que não tem sentido falar de uma continuidade da violência que iria dos comentários sexistas até apalpadas no metrô ou na rua, até o assédio físico, o estupro e o feminicídio, afirmando que, se tudo é violência, então corre-se o risco de não reconhecer mais a verdadeira violência.

Exatamente como, ao chamar de estupro todo ato sexual que não seja por consentimento, haveria o perigo de banalizar os verdadeiros estupros, isto é, aqueles atos horrendos cometidos por homens brutais, ainda melhor se desconhecidos. E se, em vez disso, ele não for um desconhecido? E se ela o conhecesse bem e o tivesse beijado? Se ela aceitou dormir com um cara, e talvez até fazer amor com ele, e depois, na manhã seguinte, for penetrada sem o seu conhecimento, talvez enquanto ainda está adormecida?

A inexorável perpetuação da violência contra as mulheres tem as suas raízes nesse desejo obstinado de não ver que as violências extremas são a continuação daquelas cotidianas; e que começa sempre a partir do momento em que nos permitimos dizer a uma garotinha “cala a boca” ou “você não entende nada” que lhe se impede ter acesso à consciência do seu próprio valor e, portanto, à confiança em si mesma e, portanto, àqueles recursos internos necessários para rejeitar abusos e a humilhações.

Realmente não dá para aguentar mais. Porque depois, infelizmente, são sempre as mulheres que pagam pela perpetuação dos estereótipos de gênero, a falta de coragem por parte de políticos e intelectuais, o imobilismo diante de um patriarcado que ainda não foi desmantelado. E enquanto houver quem se arrogar o direito de decidir quem é (ou não) vítima, as vítimas de violência não serão protegidas, os culpados continuarão a cometer crimes e a gramática das relações afetivas não será reescrita.

Embora seja precisamente essa gramática errônea que legitima as relações tóxicas e desculpa as famílias disfuncionais.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/636166-linguagens-que-odeiam-as-mulheres-artigo-de-michela-marzano

 


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