Quase lá: ‘Um passo gigantesco em termos civilizatórios’: entenda o fim do uso de ‘legítima defesa da honra’

Em julgamento recente, o STF confirmou que a tese é inconstitucional em crimes de feminicídio e agressões contra mulheres

Fernanda Nascimento - SUL21
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Arte: Matheus Leal/Sul21
 
 

A confirmação de que a tese de “legítima defesa da honra” em crimes de feminicídio e agressões contra mulheres é inconstitucional, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 30 de julho, fez muita gente se questionar como a utilização desse argumento ainda era permitida. Na verdade, a defesa da honra costumava aparecer de maneira indireta no julgamento, com alusão ao comportamento das vítimas, por exemplo, o que muitas vezes acabava inocentando ou reduzindo a pena dos réus.


Soraia Mendes. Foto: Arquivo pessoal

Referendada pelo julgamento do pleno do STF, a inconstitucionalidade já estava garantida desde 2021, quando o ministro Dias Toffoli concedeu uma liminar sobre o assunto. E para compreender o impacto dessa decisão, especialmente em julgamentos no tribunal do júri, o Sul21 entrevistou advogadas e pesquisadoras feministas.

Uma das especialistas é Soraia Mendes, advogada feminista e doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas. Com longa trajetória no Direito Criminal e Gênero, Soraia atuou no processo e acredita que a vitória é um dos marcos dentro do movimento feminista brasileiro. – O que a gente tem é um marco zero. E isso é um passo gigantesco em termos civilizatórios. A gente não pode admitir que um homem possa julgar-se no direito de dispor da vida de uma mulher e alegar que sua honra foi ferida. As consequências jurídicas virão. E qualquer tentativa de aludir a honra deve ser imediatamente proibida pelo Judiciário, em qualquer instância do processo.

A decisão do STF foi motivada por uma ação movida pelo PDT, em 2021, logo após a absolvição de um réu confesso de tentativa de feminicídio ser confirmada pelo mesmo tribunal, causando indignação nacional.


Andréia Souza. Foto: Arquivo pessoal

O caso ocorreu em 2016, em Minas Gerais: um homem tentou assassinar a ex-companheira a facadas e alegou como motivação uma suposta traição antes do término da relação. Na delegacia e no julgamento do tribunal do júri, ele confirmou ter tentado matar a ex-companheira e se justificou: “sou trabalhador e não posso aceitar uma humilhação dessas”.

O tribunal do júri absolveu o réu. O Ministério Público recorreu ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais pedindo a anulação do júri e foi atendido. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a anulação. Mas, quando o caso chegou ao STF, a maioria dos magistrados entendeu que o tribunal do júri era soberano. E mesmo tendo confessado o crime, o homem manteve sua absolvição e segue em liberdade. Gabriela Souza, advogada feminista de Porto Alegre, explica a importância de garantir a nulidade desse tipo de argumento.

“O júri popular julga crimes contra a vida. E, nesse júri, não são magistrados atuando, os debates são livres. Tudo que é dito ali causa um impacto nas pessoas que vão condenar ou absolver. Mesmo que não exista a previsão legal da “legítima defesa da honra”, a defesa ainda usava estereótipos de gênero para dizer que a mulher havia causado a própria morte ou motivado a sua agressão”, explica.

A advogada Soraia completa: “As mulheres são violentadas dentro do sistema de justiça, seja em casos de feminicídio, seja em casos de violência, a responsabilidade acabava sendo colocada sobre as costas da vítima. Ou seja: a vítima provocou ou deu a oportunidade para que o crime acontecesse”, afirma.

A utilização desse tipo de argumento no tribunal do júri foi estudada pela professora e advogada Andréia Aparecida Souza. A pesquisadora acompanhou processos e julgamentos no Paraná, estado onde reside, e afirma que há uma característica utilizada pela defesa dos acusados: o tom vitimista dos homens, que usam discursos de ordem moral para acusar as mulheres de serem responsáveis pelos crimes que eles mesmos cometeram.

“Isso está muito relacionado a linguagem. A forma como se tenta justificar o comportamento do acusado e imputar à vítima o crime. Em um dos casos que analisei, o réu dizia que tinha proferido 20 facadas, mas só fez isso porque se sentiu agredido. Os discursos são semelhantes: eles só agem porque foram provocados”, afirma.

Em outro caso acompanhado por Andréia e com repercussão nacional, o assassinato de Tatiane Spitzner – agredida e atirada do quarto andar do apartamento em que morava pelo marido, Luis Felipe Manvainer, em 2018 – o argumento também seguiu a mesma linha. Neste caso, inclusive, o júri foi composto apenas por homens, pois a defesa pediu a mudança de quatro mulheres sorteadas para compor o júri – o que é um direito, mas explicita também uma estratégia na atuação.

“E o que se vê é sempre uma defesa de uma honra: a honra do homem, que é atrelada ao comportamento da mulher. A vida da mulher não importa. A honra da mulher não existe”, afirma Andréia.

Uma questão apontada pelas advogadas é que, ainda que a decisão do STF tenha sido motivada por casos envolvendo o tribunal do júri, a proibição da utilização de teses relacionadas à legítima defesa da honra se estende a todo o rito processual. Assim, o Código Penal não pode ser interpretado de modo a aludir uma suposta defesa da honra no âmbito da ideia de legítima defesa. E isso se estende à acusação, defesa, autoridades policiais e juízo. Em caso de utilização do argumento, o ato deverá ser anulado – e isso inclui julgamentos nos quais os réus sejam absolvidos a partir de teses diretas ou indiretas relacionadas à honra.

A ideia de legítima defesa da honra não é recente. Até o início do século XIX, no Brasil Colônia, as Ordenações Filipinas regulavam as situações de infidelidade e garantiam o direito do marido traído de matar a esposa e o amante. O texto é explícito também quanto às questões de classe que perpassam a sociedade: “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matá-la, como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador ou pessoa de maior qualidade”. As Ordenações Filipinas garantiam ainda que, em crimes desse tipo, os assassinos seguissem “livres, sem pena alguma”.


Gabriela Souza. Foto: Arquivo pessoal

No Brasil Império, o assassinato de adúlteros deixou de ser permitido, mas o adultério seguiu crime. Com uma diferença de gênero: o adultério dos homens era previsto somente em relações duradouras e para as mulheres bastava qualquer presunção de que havia ocorrido. Na República, a legítima defesa como excludente de ilicitude entrou no Código Penal de 1890, não somente no caso de defesa da vida: “ela compreende todos os direitos que podem ser lesados”. O Código de 1940 manteve a previsão de legítima defesa.

E a ideia de que a honra supostamente ferida dos homens autorizava crimes contra mulheres se fez presente de diferentes maneiras. A historiadora Magali Engel pesquisou os crimes contra mulheres no começo do século XX, no Rio de Janeiro, e constatou a forte presença de argumentos relacionados ao “amor em excesso”, e à ideia de “crime passional”.

“A gente tem decisões calcadas em estereótipos de gênero desde que o mundo é mundo. Crimes de gênero não envolvem amor, crimes de gênero envolvem ódio. E todos os dias, em todos os processos, sempre que há uma oportunidade se coloca em dúvida a honra da mulher”, afirma Gabriela Souza.

Para Soraia Mendes, o julgamento da inconstitucionalidade pelo STF é uma vitória do feminismo e que remete à um dos importantes momentos do movimento no Brasil: o julgamento de Doca Street pelo assassinato de Angela Diniz. Doca foi condenado inicialmente a apenas 18 meses de prisão, em um julgamento em que a defesa afirmou que Doca matou porque era um “homem ofendido na sua dignidade masculina” provocado “pela sedução de uma mulher fatal, de uma Vênus lasciva”. A defesa recorreu e a pressão do movimento feminista contribuiu para que o julgamento fosse anulado. Em novo júri, a tese não convenceu os jurados e Doca foi condenado a 15 anos de prisão.

“Desde os anos 70, do feminicídio cometido por Doca Street, que existe a consigna de ‘quem ama, não mata’. Não existe alguém doente de amor e que por essa doença elimine o ser amado. Não se pode admitir que a honra seja citada como elemento de um homem que se julga no direito de dispor da vida em razão de seu desejo”, diz Soraia.

 
 

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