Quase lá: Rita Lee : um talento em forma de mulher

Mulher que não se enquadra nos padrões sociais mais conservadores, Rita foi sobretudo livre e alegre. 

Maria Clara Bingemer

A luz dos cabelos ruivos e um par de olhos verdes foi subtraída de nossas retinas e sua voz de nossos ouvidos. Rita Lee partiu e faz o Brasil chorar de saudade.  Sobretudo as mulheres.  E por que o público em geral e muito especialmente o público feminino tem esse carinho e essa paixão pela cantora que hoje nos deixou?

A primeira razão seguramente é seu talento. No momento em que o rock se firmava no Brasil, ela começou a brilhar como cantora e compositora. Foi a primeira mulher a liderar uma banda de rock.   Originalidade, humor, crítica de bom gosto eram a tônica de suas músicas e performances.  E além disso, graça, beleza, simpatia. Talento para dar e vender foi fazendo Rita Lee subir no gosto do público e ser líder de vendas de discos no tempo em que ainda se ouviam discos nas vitrolas.

A segunda razão é sua paixão libertária, de perfil rebelde e ruidoso.  Rita Lee não teve medo de nada e não deixou de defender nenhuma liberdade.  Pode-se não aderir a algumas bandeiras que a ruiva desfraldou ao longo da vida.  Mas não se pode deixar de respeitar a coerência com que viveu.  Por trás desse compromisso com tudo que fosse humano havia uma consistência ética inegável.  A roqueira enfrentou várias ditaduras: a dos costumes, a do pensamento, a do patriarcalismo e não menos, a militar. 

Foi presa em casa, na Vila Madalena, por porte de maconha. Rita estava grávida e negou que a droga fosse sua, pois como alegou à polícia, havia  parado de fumar devido à gravidez.

O período em que isso aconteceu, com o País em ditadura militar e mergulhado em um obscuro conservadorismo, colaborou para sua prisão.  Ela simbolizava tudo que era rejeitado pelo regime que vigorava então no país.  Hippies e roqueiros eram tratados como bandidos.  Além disso, Rita Lee simbolizava a liberdade de gênero e a emancipação feminina.  Sua prisão era emblemática e representou uma espécie de troféu.  Foi um momento difícil, agravado pela gravidez. Depois de passar duas semanas na cadeia, a artista foi condenada a um ano de prisão domiciliar e multa de 50 salários-mínimos. Isso não impediu que continuasse com seu estilo crítico e irreverente, enfrentando todas as censuras e violências. 

A terceira razão – e para o público feminino talvez a mais importante – é a genialidade com a qual introduziu pautas feministas em suas criações musicais.  Ao cantar a mulher, Rita Lee imortalizou afirmações que traziam um feminismo bem-humorado e verdadeiro para dentro dos lares e das vidas daquelas que viviam sob o tacão do machismo da sociedade.

Foi ela quem nos ensinou que “nem toda feiticeira é corcunda” em clara alusão à suspeita milenar que paira sobre as mulheres de serem bruxas, e que já levou muitas à fogueira. E que há mulheres – entre as quais a mesma Rita – que “é mais macho que muito homem”.  Anunciou em alto e bom som “ que um dia resolveu mudar e fazer tudo que queria fazer”.

Mas é na canção Cor de rosa choque que se encontram as mais belas verdades do pensamento desta mulher livre e talentosa sobre seu próprio gênero.  Ali ela diz que a mulher é um bicho esquisito, que todo mês sangra e “tem um sexto sentido maior que a razão”. Desmitologizando a categorização do sexo feminino como sexo frágil, Rita afirmou que essa fragilidade toda não foge à luta homenageando assim todas as mulheres do Brasil e do mundo que cada dia se levantam ao mesmo tempo que o sol e saem em busca da vida para si e os seus. Com ela, os dias de luta das Gatas Borralheiras teve fim, porque são Princesas, e Dondoca é uma espécie em extinção.

Em suma, nas composições da roqueira, o rosa bebê foi banido da paleta de cores femininas como a cor por excelência para significar a mulher, pálido e desbotado.  Se for rosa, é rosa choque.  Cor viva, pujante, provocante, que não aceita provocações machistas e conservadoras, assim como a própria Rita com seu rosto brejeiro de sorriso alegre, olhos verdes encimado por uma cabeleira ruiva que brilha como o sol.

O feminismo de Rita não é da primeira onda e não trava lutas antiéticas com os homens.  Pelo contrário, eles foram sempre muito benvindos em suas criações e em sua companhia.  Sua vida foi povoada intimamente por essa espécie chamada homem que, ao lado de uma mulher forte, pode dar toda a sua medida.  Testemunho disso é seu casamento de quase 50 anos com Roberto, companheiro na alegria e na tristeza, na saúde e quão dedicadamente na doença até o fim.  Assim como os três filhos Antônio, Beto e João. Alegre e encantadoramente, ela proclamou a liberdade da mulher e deixou uma marca original e particular na história do feminismo. 

Mulher que não se enquadra nos padrões sociais mais conservadores, Rita foi sobretudo livre e alegre.  Seu legado é testemunho dessa liberdade e dessa alegria.  Seja de que credo for, de que proveniência, de que pertença, a liberdade é um dos pontos identitários mais constitutivos e dignos do ser humano.  A vida de Rita foi toda ela um canto à liberdade.  A alegria que vivia e espalhava ao seu redor era um dom cuja fonte mais originária é o Espírito que sopra sobre a argila e cria a vida.

Agora Rita vive a plenitude dessa liberdade e a alegria sem limites.

Agora Rita vive a plenitude dessa liberdade e a alegria sem limites.  Sua vida foi plena e bonita.  Sua morte é sentida com saudades.  Seu legado permanece.  Em todo lugar onde se cantar a justiça e a liberdade, sua presença ali estará,  fazendo “um monte de gente feliz”.


Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro desde 1982. Autora de Crônicas de cá e de lá (Editora Subiaco), Teologia latino-americana:raízes e ramos (Editora Vozes), entre outros livros.

Imagem: Rita Lee, 2004
Camille Kachani, Rita Lee
Placas de borracha e.v.a sobre mdf
Enciclopédia Itaú Cultural

 

 

fonte: https://ignatiana.blog/2023/05/12/mariaclara-11/


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