Os tipos de violências naturalizados em nosso país têm trajetória longa. Os genocídios, cercamentos e usurpação de terras, exploração da natureza, assim como a utilização dos corpos das mulheres nesse processo, foram e são necessários para a continuação do modo de funcionamento capitalista.
Os tipos de violências naturalizados em nosso país têm trajetória longa
Por Renata Reis e Natália Blanco*
A formação política a partir da educação popular e feminista têm sido um dos espaços importantes para construção de memória e elaboração sobre a nossa história. Ao desenhar territórios, identificar quais pessoas estão presentes e quais lugares ocupam, criamos a possibilidade de politizar o cotidiano. Nesse movimento, as raízes dos dilemas vividos hoje aparecem com nitidez.
Os tipos de violências naturalizados em nosso país têm trajetória longa. Os genocídios, cercamentos e usurpação de terras, exploração da natureza, assim como a utilização dos corpos das mulheres nesse processo, foram e são necessários para a continuação do modo de funcionamento capitalista. Essas violações se apresentam de modo diverso e são sistematicamente postas como problemas individuais. Ao questionar coletivamente, estamos politizando essas relações e conectando as ameças vividas de diferentes formas e territórios.
O avanço das transnacionais sobre os bens comuns (como a água, a energia e a terra) se relaciona diretamente com a forma como também pretendem controlar os corpos e subjetividades das pessoas. Essa investida se intensifica em conjunturas em que a direita têm mais poder de decisão e presença no Estado. Retomar nossas memórias sobre os processos históricos que passamos na América Latina e como isso se relaciona com outros continentes é importante para compreender que se trata de um projeto de poder capitalista, patriarcal, racista e colonial.
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Esse processo contribui para entender como os caminhos feitos estruturam os territórios que vivemos, ou seja, que acontecimentos passados estão no presente mesmo quando não identificamos de imediato. Podemos visualizar melhor as diversas camadas nas ruas, vielas, roças e águas que atravessamos hoje. Isso também se estende para a história do corpo das participantes da formação política, pois é uma oportunidade de pensar as nossas origens, as migrações dentro dos territórios relacionando as conjunturas políticas e econômicas.
Esse exercício nos mobiliza a pensar com o corpo inteiro, não nos fragmentando em partes, relacionando corpo e território. Olhamos com mais atenção para as ameaças e possibilidades de resistências, identificando como a exploração e opressões se estabelecem onde vivemos, e assim podemos transformá-las. Dessa maneira, nos sentimos parte do movimento necessário para mudar a realidade, estabelecemos uma perspectiva de criatividade no presente, pensando também nos rumos do futuro.
Durante as oficinas de formação, desvendamos diversas dinâmicas que nos impedem de desfrutar de nossos territórios — a chegada de uma mineradora, a dificuldade de transitar entre bairros vizinhos nas periferias das cidades por falta de transporte e a impossibilidade de acessar a água, por exemplo. Impor essas lógicas de controle sobre os corpos e territórios é impor dinâmicas de violências e conflitos.
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As ameaças em São Paulo
No estado de São Paulo, o governador de extrema direita Tarcísio de Freitas (Republicanos) pretende dar continuidade aos desmontes das políticas sociais. A privatização dos serviços públicos faz parte desse pacote defendido por seu governo. O plano para privatizar a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e a Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae) se tornou um dos principais objetivos do governo de Tarcísio Freitas. A maneira como o tema das águas e energia é tratado pela mídia hegemônica também favorece a narrativa de que as saídas são sempre no campo das privatizações. Fazem propaganda da modernidade e eficiência, sobretudo utilizando a justificativa de não ter recursos financeiros suficientes para a gestão pública.
A Sabesp é responsável por distribuir água para mais de 28 milhões de pessoas. Em relação a coleta de esgotos, cerca de 25 milhões são contempladas. Em fevereiro de 2023 foi divulgada a autorização de elaboração de estudos sobre as condições de privatização da Sabesp e Emae. Com quem será que esse estudo vai conversar? Quais interesses serão defendidos durante essa pesquisa? Em territórios onde o acesso água ainda não é garantido pela Sabesp, como nas ocupações, a privatização se apresenta como um risco ainda maior na luta pelo direito à água.
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Temos o desafio de desnaturalizar essas formas de atuação do capitalismo para podermos ressignificar nosso entendimento sobre a natureza, sobre quem somos, sobre nossos corpos e territórios.
A defesa dos nossos bens comuns passa pelas resistências feitas durante a história. A noção de território e pertencimento, de comunidade, do chão e de si mesmo, foi reprimida devido ao passado-presente cheio de violências e processos de esfacelamento dos laços comunitários, perpetuados atualmente pelas dinâmicas do capitalismo neoliberal no Brasil.
Educação popular e as experiências das mulheres
Durante os processos de formação em grupos, aprendemos sobre as inúmeras situações vivencias das pelas mulheres. As experiências vividas guardam muitas informações de como o território se organiza, quais as faltas, quais os dilemas postos ali. Quando debatemos coletivamente sobre esse papel pensando na divisão sexual, racial e internacional do trabalho conseguimos entender a importância da organização das mulheres nas lutas territoriais.
Em nossas rodas de conversa, podemos trocar experiências sobre como a ausência de água, por exemplo, significa uma insegurança em relação à saúde de toda a comunidade. Coletivizando os dilemas, realizamos intercâmbios de conhecimentos. Ampliamos as estratégias de ação que transformam os lugares onde estamos e questionando as fronteiras impostas.
A defesa de que somos interdependes e ecodependentes nos ajuda a compreender que nós somos natureza, não estamos à parte dela, muito menos somos superiores. Com as visões das comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas, aprendemos que o território não é um pedaço de terra cercada. Os territórios são os caminhos que trilham os seres humanos, as sementes, plantas e animais. Tudo está em movimento. A natureza não é estática, tem muitas vidas acontecendo.
*Renata Reis é formada em Serviço Social e Natália Blanco é jornalista e comunicadora popular. Ambas são militantes da Marcha Mundial das Mulheres e integram a equipe da Sempreviva Organização Feminista.