“Reconhecer a dor sem se tornar refém dela” é uma das respostas ao racismo, segundo Fernanda Silva e Sousa; doutora em Teoria Literária pela USP participa do Festival Serrote, no Instituto Moreira Salles
Texto: Tabita Said*
Imagem gerada com uso de IA no Copilot
Organizado pela revista de ensaios do Instituto Moreira Salles, o Festival Serrote chega à sétima edição nos próximos dias 3 e 4 de maio – sexta e sábado – no Instituto Moreira Salles (IMS). O evento reunirá escritores, pesquisadores, jornalistas e artistas para apresentações e debates sobre temas como as literaturas periféricas e as narrativas de experiências negras. Todos os eventos são gratuitos, abertos ao público e contam com interpretação em Libras.
Entre os nomes confirmados para o evento, está o de Fernanda Silva e Sousa, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e editora de livros no selo Zahar, do grupo Companhia das Letras. Fernanda ficou em primeiro lugar na seleção de ensaios da edição 45 da Revista Serrote, do IMS, no qual defendeu a valorização de “elementos banais e ordinários, que animam e sustentam a vida”.
“Não se trata exatamente de narrar nossa história sem as marcas da violência e da dor, pois estas marcas constituem o passado. Mas, de que modo podemos reconhecê-las sem nos tornarmos refém delas. Diante da tremenda naturalização da violência contra a população negra e a desumanização que recai sobre nós, eu penso que o caminho é olhar para aquilo que escapa a uma noção estrita de resistência”, aponta a crítica literária. Nascida no bairro do Itaim Paulista, extremo leste da capital, Fernanda é a segunda pessoa da família a ingressar na Universidade, onde fez carreira como pesquisadora.
Em seu artigo selecionado para a revista Serrote, intitulado Dos pés escuros que são amados, Fernanda aproxima um arquivo da escravidão, uma poesia e um diário de Carolina Maria de Jesus, em sua obra Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. Para Fernanda, a possibilidade de sobreviver não está apartada da possibilidade de criar momentos, ainda que precários e fugazes, de cuidado e amor.
Fernanda Silva e Sousa é doutora em Teoria Literária pela USP - Foto: IMS
Sapatinho em meio ao lixo
“15 de julho de 1955 – Aniversário de minha filha Vera Eunice.
Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela.
Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente, somos escravos do custo de vida.
Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.”
(Trecho de abertura do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus, 1960)
O gesto de Carolina é geralmente interpretado pela chave da miséria, mas Fernanda propõe uma leitura baseada no afeto, no cuidado e na ação do amor.
Escravidão e um saco de algodão
“Minha bisavó Rose
mãe de Ashley deu pra ela esse saco quando
ela foi vendida aos 9 anos na Carolina do Sul
Tinha um vestido esfarrapado 3 punhados de
nozes e uma trança do cabelo de Rose. Disse pra ela
Estará preenchido com meu Amor sempre
ela nunca a viu de novo
Ashley é minha avó.”
(Ruth Middleton, 1921)
O relato de Ruth foi resgatado no livro All That She Carried: the Journey of Ashley’s Sack, a Black Family Keepsake (Tudo o que ela carregou: a jornada do saco de Ashley, uma lembrança de família negra, em tradução livre).
Uma quadrilha para a chacina
“Maria não amava João,
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM,
Maria guardou todos os seus sapatos.”
(Poema Quadrilha, de Lívia Natália. Do livro Correntezas e Outros Estudos Marinhos, Ed. Ogum´s Toques, 2015)
Fernanda explica que a poeta soteropolitana Lívia Natália escreveu o poema acima no contexto da chacina do Cabula, bairro de salvador, em 2015, na qual uma ação da Polícia Militar deixou 12 mortos. O caso ocorreu há nove anos e permanece sem julgamento.
Na história de Rose, uma mulher escravizada em Charleston, na Carolina do Sul, diante da iminente venda de sua filha de 9 anos para outra fazenda, entrega a ela um saco de algodão no momento da despedida. “Esse gesto foi documentado e não se perdeu, no abismo de tantos gestos de amor que também existiram durante a escravidão, porque a bisneta de Rose bordou a história dessas mulheres no saco de algodão”, afirma Fernanda. Ela conta que o saco de algodão foi encontrado por acaso em 2007 em um antiquário, e hoje se encontra no International African American Museum, nos Estados Unidos.
A pesquisadora reforça a necessidade de se buscar novas formas de narrar a experiência de vida das pessoas negras de forma que ela não seja confinada aos finais trágicos. Porém, reconhece que as relações de afeto e de amor continuam sendo brutalmente interrompidas pela violência em diferentes momentos da história, como mostram os poemas de Carolina, Ruth e Lívia.
Esses sapatos, de João e Vera Eunice, poderiam ter sido todos guardados neste saco de algodão"
“De todo modo, fica alguma coisa. Ficam os sapatos. Então, a ideia é pensar nesses sapatos como um dado que remete a esse morto que andou, caminhou, dançou; a tudo o que ele poderia ter feito, os caminhos que poderia ter trilhado. Estes pés que talvez tenham sido beijados, cuidados, inseridos em uma rede de afetos. E pensar que esses sapatos, de João e Vera Eunice, poderiam ter sido todos guardados neste saco de algodão, que reúne o amor”, afirma Fernanda.
Festival Serrote
A sétima edição do Festival Serrote, no IMS Paulista, acontece nos dias 3 e 4 de maio, com a presença de escritores, artistas, jornalistas e ativistas. Com entrada gratuita, a programação inclui bate-papos e apresentações de leituras, performance e música ao vivo.
Entre os convidados, está o escritor chileno Alejandro Zambra, um dos principais nomes da literatura latino-americana contemporânea, o escritor Mário Augusto Medeiros da Silva, professor de sociologia da Unicamp, a roteirista e ativista Triscila Oliveira, coautora das HQs Confinada e Os Santos, a crítica literária e tradutora Fernanda Silva e Sousa e a jornalista e ensaísta Thaís Regina, entre outros convidados.
A programação começa no dia 3 de maio, às 20h, com a Serrote ao Vivo, uma edição especial da revista concebida para o palco, com leituras, música, performances e artes visuais. Esta edição terá apresentações de Zambra, Triscila Oliveira, da artista transdisciplinar e crítica de arte Padmateo, da escritora e editora Yasmin Santos e dos artistas Thiago Rocha Pitta, Vivian Caccuri e Thiago Lanis. A banda Hurtmold é responsável pelo acompanhamento musical.
No dia 4 de maio, o evento inclui três debates. Às 15 horas, Fernanda Silva e Sousa e Thaís Regina, conversam com a jornalista Bianca Santana sobre o desafio de narrar o passado e o presente das populações negras no Brasil sem se limitar às marcas da violência e da dor. Em seguida, às 17 horas, será a vez de Mário Augusto Medeiros da Silva e Triscila Oliveira discutirem a representação de personagens e cenários periféricos na literatura brasileira. O bate-papo será mediado pela escritora, ensaísta e livreira Juliana Borges.
A programação se encerra às 19 horas, com um encontro do público com Alejandro Zambra. O escritor chileno fará um passeio por sua obra, em uma conversa mediada por Ana Lima Cecilio, curadora da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
Serviço – Festival Serrote
3 e 4 de maio (sexta e sábado)
Cineteatro do IMS Paulista – Avenida Paulista, 2424 – São Paulo
Entrada gratuita, com distribuição de senhas
Evento com interpretação em Libras
Mais informações: tel. 11 2842-9120 |
* Com informações de Mariana Tessitore e Robson Figueiredo da Silva, do IMS
Festival comemora os 15 anos da revista Serrote - Imagem: capa da edição 46 / IMS