Quase lá: É hora de dar voz às que sentem na pele o peso das desigualdades

Desde o século 19, as mulheres começaram a se organizar em torno de suas lutas por melhores condições de trabalho, pelo direito de votar e de participar da vida política.

Congresso em Foco - 6.3.2024

Amarílis Costa *

Amarilis Costa Na esteira da Revolução Industrial, as mulheres – e até as crianças – começaram a dividir com os homens as linhas de produção nas fábricas, em jornadas de até 16 horas por dia. Desde o início deste novo ciclo econômico, elas ganharam menos do que os homens e ainda continuaram com a responsabilidade de cuidar da casa e dos filhos. A acumulação de funções, a subvalorização e o assédio moral e sexual fizeram parte da trajetória feminina no mercado de trabalho desde sempre.

Desde o século 19, as mulheres começaram a se organizar em torno de suas lutas por melhores condições de trabalho, pelo direito de votar e de participar da vida política. Mas havia um grupo social que encarava uma batalha ainda mais antiga e perversa, as mulheres negras. Elas lutavam por dignidade, pelo direito fundamental de serem consideradas como seres humanos.

Não foi por outro motivo que a norte-americana Sojourner Truth, ex-escravizada, abolicionista e ativista pelos direitos das mulheres, questionou, em 1851, em um célebre discurso proferido na Convenção dos Direitos das Mulheres de Ohio: “Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari 13 filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?”

Por séculos, mulheres negras foram tratadas como utensílios domésticos ou como animais nas lavouras. No Brasil, que ocupa a vergonhosa posição de último país do mundo a ter abolido formalmente o trabalho escravo, o fim da escravatura trouxe pouca ou nenhuma alteração para este cenário.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), a discrepância salarial entre homens e mulheres acontece no mundo todo, sendo da ordem de 16% no cenário global.

No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atesta que as mulheres ganham, em geral, 20% menos que os homens ocupando os mesmos cargos, e que o salário médio de uma mulher negra equivale somente a 46% do ganho dos homens brancos. Ainda segundo o IBGE, 65% das trabalhadoras no serviço doméstico no país são negras, o que revela a cruel evidência de que, para que uma mulher branca possa estabelecer carreira qualificada, uma mulher negra precisa assumir as funções de cuidado de sua família.

“A mulher negra é o grande foco das desigualdades sociais e sexuais existentes na sociedade brasileira. É nela que se concentram esses dois tipos de desigualdade, sem contar com a desigualdade de classes”, afirmou Lélia Gonzalez, filósofa e uma das mais importantes intelectuais e ativistas do movimento negro no Brasil, que começou sua vida profissional como babá e entendia profundamente este abismo.

As mulheres conquistaram o direito de votar, de concorrer a cargos políticos, de gerenciar empresas, de usufruir de licença maternidade, mas continuam a sofrer violências e assédios de toda natureza, ainda são sub-remuneradas e acumulam a maior parte das funções de cuidado na sociedade. A Oxfam Brasil estima que mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado. Essas funções custariam cerca de US$ 10,8 trilhões por ano à economia global, mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo.

O dado é assustador, e mostra a escala da extorsão a que estão submetidas as mulheres do mundo todo em pleno século 21. Este número absurdo revela também como se dá a construção da hierarquia de gênero pelo capitalismo, para garantir o acesso a indivíduos e corpos ultra-explorados, sendo que raça, etnia, nacionalidade, sexualidade e classe social são as principais questões que definem os grupos mais vulnerabilizados dentro desta perspectiva.

A igualdade salarial é assegurada por lei no Brasil e, ainda assim, as práticas do mercado revelam esforços para burlar as regras e assegurar vantagens indevidas. A Rede Liberdade acredita no campo judicial como um instrumento eficaz para garantir o cumprimento da legislação, através da atuação em três eixos principais de impacto: o combate ao trabalho escravo, a fiscalização e monitoramento do trabalho no Brasil e a promoção da diversidade de gênero, raça e etnia nas relações de trabalho.

Para além do trabalho, é preciso atuar na formulação e aplicação de políticas públicas eficazes, pois só existe democracia verdadeira com inclusão, respeito e equidade social. Infelizmente, ainda estamos longe deste ideal. Hoje, o movimento feminista entende que não existe luta que não considere a questão racial e a interseccionalidade com pautas como as da comunidade LGBTQIA+ ou dos povos e comunidades tradicionais, entre outras.

Neste Dia Internacional da Mulher (08/03), e não apenas nele, é hora de dar passagem e voz a quem já vem, há tantos séculos, sentindo na pele o peso imenso das desigualdades. Com a palavra, Sueli Carneiro, filósofa, escritora e Fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra: “ Nós, mulheres negras, somos a vanguarda do movimento feminista nesse país; nós, povo negro, somos a vanguarda das lutas sociais deste país, porque somos os que sempre ficaram para trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real e efetivo de integração social”. Até quando?

* Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP.

 

fonte: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/e-hora-de-dar-voz-as-que-sentem-na-pele-o-peso-das-desigualdades/

 


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