Adriana Cruz, primeira mulher a ocupar a Secretaria-Geral do CNJ, fala sobre os desafios para a uma justiça mais inclusiva
Pela primeira vez na história, a Secretaria-Geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é ocupada por uma mulher — uma mulher negra. Não é um desafio qualquer para a juíza Adriana Cruz, que ficará na posição por dois anos. "Traz uma série de desafios adicionais àqueles que são inerentes a essa posição. Eu penso que nós estamos construindo um Judiciário em que a presença das mulheres se torne algo inerente à paisagem. Nós precisamos estar nesses espaços com maior frequência e maior intensidade", diz.
Braço-direito do presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, na organização do 17º Encontro Nacional do Poder Judiciário, que começa hoje em Salvador, ela falou ao Correio sobre os desafios de assumir essa função no CNJ e os planos para tornar a Justiça mais inclusiva.
Para Adriana, "o trabalho pela equidade racial é um imperativo constitucional". "A Constituição Federal determina que nós tenhamos uma sociedade livre de qualquer forma de discriminação, e esse é um trabalho contínuo, não é um trabalho com data para terminar", comenta. Segundo Adriana, algumas ações têm sido desenvolvidas no sentido de aumentar a diversidade da própria composição do Poder Judiciário, entre elas uma resolução adotada pelo CNJ para o aumento da participação feminina nos tribunais, incluindo a mudança nos critérios de promoção.
Em relação ao encontro do CNJ, que vai definir as metas para o Judiciário em 2024, Adriana salienta que "as diversas manifestações culturais que estarão presentes têm por objetivo sublinhar a importância das manifestações culturais, como o acesso à cultura é um direito constitucionalmente assegurado, e também sublinhar a importância e a relevância da adoção de ações sustentáveis com vistas a contribuir para um meio ambiente mais equilibrado atento às urgências climáticas que estamos vivenciando".
Do encontro, sairá um estímulo à adesão das ações afirmativas. Além disso, ela explica, será instituído um selo Linguagem Simples para os tribunais que aderirem ao pacto e venham a implementar as ações que efetivamente o tornem mais acessível às suas comunicações.
Ser a primeira juíza negra a ocupar o cargo de Secretaria-Geral do CNJ representa o que na sua vida, na história da magistratura e para milhares de meninas negras que sonham alcançar um posto tão importante?
Para mim é uma honra, um grande desafio e uma responsabilidade imensa ocupar a posição de secretária-geral do Conselho Nacional de Justiça nos próximos dois anos. Ser a primeira mulher e a primeira mulher negra a estar nesse lugar obviamente traz uma série de desafios adicionais àqueles que são inerentes a essa posição. Eu penso que nós estamos construindo um Judiciário em que a presença das mulheres se torne algo inerente à paisagem. Nós precisamos estar nesses espaços com maior frequência e maior intensidade. Eu tenho trabalhado com tantos e tantas colegas para que a gente possa ultrapassar essa etapa de estar eternamente celebrando os primeiros a chegar ou as primeiras a alcançar.
A relevância de ser escolhida para este novo cargo é somente simbólica ou pode ser efetiva no sentido de interferir nas políticas públicas?
As minhas escolhas profissionais sempre foram pautadas por ocupar os espaços com responsabilidade. Eu integro um coletivo de juízas e juízes negros. Nós assumimos há alguns anos a responsabilidade de colocar a questão racial como uma pauta a ser pensada no âmbito do Poder Judiciário. Temos caminhado bastante com colegas não negros que se comprometem também para o enfrentamento das desigualdades raciais. E, quando eu falo desigualdades, não é apenas em relação à maior participação de pessoas negras, de mulheres, de indígenas, nos espaços de Poder do Judiciário, mas também na perspectiva de pensarmos caminhos para melhorar o serviço prestado.
Então, evidentemente, a função que eu ocupo tem as suas limitações institucionais, mas só aceitei estar nesse lugar pela possibilidade de poder contribuir, efetivamente, para a construção de um Judiciário cada vez mais eficiente para a população brasileira e, principalmente, um Judiciário mais voltado para atender os comandos constitucionais de construção de uma sociedade livre de discriminações e que possa oferecer um serviço judiciário em tempo razoável e eficiente para a população.
Quem ocupa os espaços de liderança tem mais responsabilidade? O que o estudo da área penal lhe propiciou entender sobre como se constituem as desigualdades da sociedade brasileira?
O trabalho pela equidade racial é um imperativo constitucional. A Constituição Federal estabelece e determina que nós tenhamos uma sociedade livre de qualquer forma de discriminação, e esse é um trabalho contínuo, não é um trabalho com data para terminar. Eu acho que o importante é que todos aqueles que ocupam espaços de responsabilidade o façam com o compromisso de enfrentar essas desigualdades, de compreender que todas as relações no Brasil são atravessadas por esses fatores ou esses marcadores que diferenciam as pessoas socialmente, e para que nós trabalhemos tendo em mente a necessidade de enfrentamento dessa realidade.
O 17º Encontro Nacional do Poder Judiciário (ENPJ), promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), começa hoje em Salvador e contará com diversas apresentações musicais, ações culturais e de sustentabilidade. A ideia é aproximar a magistratura do cotidiano das comunidades?
As diversas manifestações culturais que estarão presentes ao longo do 17º Encontro têm por objetivo sublinhar a importância das manifestações culturais, como o acesso à cultura é um direito constitucionalmente assegurado, e também sublinhar a importância e a relevância da adoção de ações sustentáveis com vistas a contribuir para um meio ambiente mais equilibrado, atento às urgências climáticas que estamos vivenciando.
E também como um estímulo à adesão dessas ações e ao desenvolvimento de ações nesse sentido, será instituído um selo Linguagem Simples para os tribunais que aderirem ao pacto e venham a implementar as ações que, efetivamente, os tornem mais acessíveis às suas comunicações.
Essa primeira edição do evento sob a condução do ministro Barroso foca também na diversidade e na simplificação da comunicação do Judiciário. Ele vai lançar um pacto para a linguagem simples? Como se dará esse processo?
Em agosto de 2023 o Conselho Nacional de Justiça adotou a Recomendação 144 para que os tribunais brasileiros adotem a linguagem simples em todos os documentos que emitirem. Então o objetivo é adotar uma linguagem simples, direta, compreensível a todas as pessoas na produção das decisões judiciais e na comunicação geral com a sociedade. Os documentos produzidos pelo Poder Judiciário, muitas vezes, contêm expressões técnicas, algumas são indispensáveis e, para estas, nós vamos pensar em ferramentas que possibilitem uma maior compreensão por parte da sociedade em geral e um estímulo para que também sejam substituídas aquelas expressões técnicas que se apresentem como um obstáculo à compreensão daquilo que está sendo produzido.
A iniciativa atingirá todos os segmentos da Justiça?
O pacto é um convite para que todos os tribunais e a magistratura nacional se engajem nesse esforço de uma maior acessibilidade na comunicação. Serão fomentadas ações, iniciativas e projetos com todos os segmentos da Justiça. A linguagem também pressupõe a acessibilidade. Então, os tribunais devem aprimorar formas de inclusão com o uso da língua brasileira de sinais Libras, a audiodescrição e outras ferramentas sempre que possível.
O pacto também convida os tribunais a reverem os seus protocolos de atuação em eventos, buscando sempre a brevidade das comunicações, dispensando formalidades excessivas, convidando todos os magistrados a que nas sessões de julgamento profiram versões resumidas dos seus votos, sem prejuízo da juntada da versão ampliada nos processos. E também o compartilhamento de boas práticas.
Há várias iniciativas relacionadas à linguagem simples em diversos tribunais. Então, também estimular essa troca de informações, parcerias com outras instituições, tudo visando e com o objetivo de termos realmente uma comunicação mais direta e a possibilidade de um maior acesso àquilo que é produzido pelo Poder Judiciário. Lembrando que a linguagem tem essa dimensão também muito profunda de tornar real o acesso à justiça. É preciso que as pessoas compreendam o que se diz, é preciso que as pessoas compreendam o que é decidido pelo Poder Judiciário e que afeta tão diretamente as suas vidas.
O que este encontro traz de diferente?
Para além das reuniões setoriais de trabalho por segmentos da Justiça, há debates sobre as metas pela justiça do trabalho, justiça estadual, pela Justiça Federal, também a reunião setorial da Corregedoria Nacional. Este ano, nós vamos ter uma oficina com as assessorias de imprensa de todos os tribunais para trabalharmos exatamente a questão do pacto pela linguagem simples com o objetivo de tornar esse projeto uma realidade.
Como a senhora acha que o CNJ pode romper com racismo estrutural no sistema carcerário, em que mais de 44% dos 561 mil detentos — cerca de 370 mil — estão privados de liberdade sem que tenham sido sentenciados? Equidade racial é realizável?
O enfrentamento de um problema que é secular, ele não é feito por uma medida única. Então, há diversas ações que têm sido desenvolvidas e aprofundadas para se mudar esse cenário no âmbito do sistema carcerário. O Conselho Nacional de Justiça tem um departamento, que é o DMF, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, que tem fomentado diversas ações com o objetivo de reduzir a população carcerária no país. Então, várias medidas de fomento e estímulo à adoção de medidas alternativas à prisão. Um acompanhamento bem próximo relacionado à questão das audiências de custódia. Também olhando para o sistema sócio-educativo, olhando também para a situação dos egressos, é preciso se pensar no retorno das pessoas à vida social com dignidade e o retorno a uma vida dentro da legalidade. Também ações de capacitação.
A Escola Nacional de Formação de Magistrados tem na sua grade hoje, tanto nos cursos de formação continuada como nos cursos de formação inicial para os juízes que estão chegando à temática do direito e relações raciais, capacitação não só inicial, mas também contínua. Tem um grupo de ações que tem sido desenvolvido para tentar se dar conta desse problema. Para além disso, nós agora estamos trabalhando no âmbito do Conselho para iniciar a construção de um protocolo de julgamento com perspectiva racial, ou seja, para que os juízes possam compreender que os conflitos que chegam para a sua decisão, eles são também estruturados a partir de desigualdades raciais, desigualdades de gênero e de tantas outras dimensões.
Os negros são minoria no serviço público federal e têm menores salários, segundo o IBGE. A sociedade civil organizada começa a demandar por igualdade racial, mas as estruturas de poder não abrem espaço, resistem. Como combater, em termos práticos, a desigualdade nos tribunais brasileiros?
Algumas ações têm sido desenvolvidas no sentido de aumentar a diversidade da própria composição do Poder Judiciário. Porque a questão da desigualdade racial tem duas frentes. Tem a questão da composição do Judiciário, que tem sido endereçada por meio da política de cotas. Recentemente o Conselho Nacional de Justiça adotou uma resolução muito importante para o aumento da participação feminina nos tribunais, ou seja, para os cargos de desembargador, a promoção aos tribunais. Então, mecanismos que vão estimular o aumento de mulheres nesse espaço.
Para além disso, nós estamos trabalhando na regulamentação para a concessão de bolsas a pessoas negras e indígenas com o objetivo de fortalecer a política de cotas. A ação afirmativa não se restringe à política de cotas. A ação afirmativa precisa ser direcionada à possibilidade de capacitação de um maior universo de pessoas que estejam aptas a concorrer para esses cargos e assim, consequentemente, fazer com que esses espaços também se tornem mais plurais e mais aderentes àquilo que a gente encontra na sociedade como um todo.
fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/12/6664563-o-trabalho-pela-equidade-racial-nao-tem-data-para-terminar-diz-juiza.html