A sobreposição de racismo e sexismo produziu uma categoria específica de “não ser” para as mulheres negras, relegadas à invisibilidade e negação de direitos. Mas as suas lutas se multiplicam pelo mundo e já produzem rachaduras na aliança patriarcal
Publicado 29/11/2023 às 16:44
Foto: Tatiana Reis (obtida no Geledés)
Das chochas dessa História escandalosa
Eu me levanto
Acima de um passado que está enraizado na dor
Eu me levanto
Eu sou um oceano negro, vasto e irrequieto,
Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.
Deixando para trás noites de terror e medo
Eu me levanto.
Em uma madrugada que é maravilhosamente clara,
Eu me levanto.
Trazendo os dons que meus ancestrais deram,
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto!
(Maya Angelou)
AUTORIA: Mônica Francisco
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento produzido após os horrores que traumatizaram o mundo durante a segunda guerra mundial, que foi estabelecida e proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948 como um tratado entre as nações, para que, pactuadas ali ações de proteção universal, não se repetissem os terríveis acontecimentos que produziram a mutilação e morte de milhões de pessoas. Esse período notabilizou-se pela utilização da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, bem como o Holocausto de seis milhões de judeus nos terríveis e abjetos campos de concentração nazistas e suas macabras câmaras de gás. Não podemos esquecer que entre as vítimas estavam pessoas negras, LGBTI, pessoas com deficiência e povos ciganos de diversas etnias. Pâmella Passos, mulher negra e professora, ressalta, em artigo “Dos tratados aos traçantes”, que enquanto tudo isso ocorria, não tínhamos noção do que ocorria no continente Africano. Vale dizer que o genocídio do povo negro ao longo do sequestro no continente africano e a vigência da escravidão nas Américas, foi o holocausto negro. Perto de completar 75 anos, aqui estamos às voltas novamente com o horror de uma guerra, que ironicamente envolve um dos personagens (judeus) desta página triste e vergonhosa da nossa história em uma série de atrocidades contra uma população massacrada e expropriada, além de desferir inúmeras ofensas racistas contra o povo palestino, ofensas que, inclusive, permearam os discursos nazistas à época, como a comparação com animais. Neste aviltante cenário, um importante alerta nos é enviado com os resultados desta investida infame e brutal sobre o território sitiado de Gaza: o número assustador e crescente de mulheres e crianças assassinadas em uma guerra contra o terror, é mais uma vez a instauração do terror contra o terror! Conforme noticiou a Rede Brasil Atual, mais de 60% das mortes são de mulheres e crianças. Renato Russo, em sua belíssima e profunda composição, afirmou categórico que “o senhor da guerra não gosta de crianças!”
“O Senhor Da Guerra”
(Canção de Legião Urbana)
“Existe alguém esperando por você
Que vai comprar a sua juventude
E convencê-lo a vencer
Mais uma guerra sem razão
E já são tantas as crianças com arma na mão
Mas explicam novamente que a guerra gera empregos
E aumenta a produção
Uma guerra sempre avança a tecnologia
Mesmo sendo guerra santa, quente, morna ou fria
Pra que exportar comida
Se as armas dão mais lucros na exportação?
Existe alguém que está contando com você
Pra lutar em seu lugar
Já que nessa guerra
Não é ele quem vai morrer
E quando longe de casa, ferido e com frio
O inimigo você espera
Ele estará com outros velhos
Inventando novos jogos de guerra
Que belíssimas cenas de destruição
Não teremos mais problemas
Com a superpopulação
Veja que uniforme lindo fizemos pra você
E lembre-se sempre
Que Deus está do lado de quem vai vencer.
Existe alguém que está contando com você
Pra lutar em seu lugar
Já que nessa guerra
Não é ele quem vai morrer
E quando longe de casa, ferido e com frio o inimigo você espera
Ele estará com outros velhos
Inventando novos jogos de guerra
Que belíssimas cenas de destruição
Não teremos mais problemas
Com a superpopulação
Veja que uniforme lindo fizemos pra você
E lembre-se sempre
Que Deus está do lado de quem vai vencer
O senhor da guerra
Não gosta de crianças…”
Mais do que não gostar de crianças, odeia mulheres. Ao longo da nossa formação como sociedade humana, a construção social do ser mulher é atrelada ao lugar acessório e subalternizado. Este ódio contra mulheres se expressa de variadas formas e está presente na maioria dos processos de violação dos direitos humanos no mundo, em nossa história passada e recente. A família, a religião e a sociedade produziram multiformes meios para o enclausuramento, a culpabilização, o silenciamento e mutilação, passando pelos estupros corretivos e feminicídios. Mulheres são socialmente construídas e percebidas como objetos de prazer e subserviência ao mundo masculinamente referenciado.
No Brasil, somos atualmente 51,5% da população segundo o último Censo Demográfico, 6 milhões a mais de mulheres do que homens, em um total de 104.548.325. O IPEA apresenta dados de cerca de 41 milhões de mulheres negras, 23,4% do total da população. Já somos um país mais feminino e mais idoso segundo os dados. Isso nos faz pensar em pistas sobre crianças, jovens e homens, e seu possível futuro, e isso também está diretamente atrelado aos impactos nas vidas das mulheres e principalmente das negras, quando pensamos na temática do cuidado como socialmente referenciado no feminino. Mas essa não é nossa tarefa aqui neste artigo, pelo menos, por hora. É necessário um olhar cuidadoso sobre a questão ou as questões relativas ao gênero, que sempre foram complexas e delicadas, e isso se torna urgente diante de dados tão reveladores, nos mostrando a relevância em atentarmos sobre direitos humanos à luz da pauta das mulheres e das mulheres negras. Somos intimamente impelidas a indagar se as mulheres seriam o elemento mais violado ao longo da experiência humana em suas diversas etapas/estágios de desenvolvimento. Será isso uma triste e cruel constatação?
Nosso intuito com esse artigo é suscitar uma reflexão e buscar entender se isso é apenas opinião (achismo) ou pode vir a ser uma incômoda constatação. Seja como for, temos a responsabilidade de buscarmos juntos e juntas caminhos para garantir a dignidade e a efetivação dos direitos e a liberdade para todas as mulheres no mundo. Como a escritora feminista e mulherista Audre Lorde afirma: não seremos livres até que todas sejamos, mesmo que as correntes que nos prendam sejam diferentes. Para isso, precisamos de pistas e estratégias para compreender essa intrincada e complexa dinâmica e faremos isso à luz da produção e das experiências de mulheres como Silvia Federici, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Ynaê Santos, Neusa Santos Souza, Greta Gerwig, Ângela Davis, Rachel Gouveia, Gabriela Leite, bell hooks, Kimberly Crenshaw, Pâmella Passos, Marielle Franco, as Mães da Praça de Maio, as Mães de Manguinhos, Rede de Mães, Vilma Piedade, Maya Angelou e de Clenora Hudson. Além de dados compartilhados na Web. Que elas nos alarguem o caminho da compreensão e nos ajudem a (re)significar nossa experiência do ser mulher!
A aliança patriarcal e a agenda de ameaças às mulheres pelo poder masculinista
A filosofia africana nos apresenta o pássaro Sankofa, e ensina que olhar para trás é avançar em condições melhores. Vamos utilizar essa máxima para iniciar nossa jornada no entendimento da complexidade dessa constante tensão presente nas relações de gênero. A complexidade se materializa no cotidiano pelo resultado da prática de oposição e resistência das mulheres aos processos violentos direcionados a elas e a tudo que diz respeito ao mundo do feminino. A resposta violenta a essa resistência é resultante ora da simples lógica de reafirmação do poder patriarcal, construída pelo pensamento cisheteronormativo judaico-cristão e eurocêntrico, se valendo de mecanismos que auxiliaram e auxiliam até os dias atuais, uma agenda de ameaças constantes às mulheres desde tempos imemoriais (“pecado original”), passando pela Inquisição nos tribunais católicos, a repressão aos movimentos pela participação na vida política e social de forma plena até os dias atuais. O Movimento Feminista e suas ondas (estágios) iniciadas com o Movimento Sufragista até as atuais grandes manifestações por condições dignas de vida e trabalho e redução da carga horária – como as 125 trabalhadoras operárias mortas em um (suspeito) incêndio em uma fábrica de Nova York devido às péssimas condições das instalações onde trabalhavam (as portas estavam trancadas), originando o 8 de Março. Olhando para o retrovisor da história, veremos muitas atrocidades na subjugação violenta dos corpos das mulheres, que ousaram afirmar-se fora da condição pré-estabelecida para elas, “cópias frágeis e incapazes” ou “animalizadas” como as negras. No livro Calibã e a Bruxa, Silvia Federici nos alerta para a atualização dessas práticas no ataque constante à liberdade e autonomia das mulheres e por isso a “caça às bruxas” continua vigente na sociedade contemporânea sob a forma de perseguição, violências físicas e psicológicas, patrimoniais, de linchamento moral e feminicídios, Federici afirma que no passado a condição das mulheres piorou muito com o surgimento dos cercamentos na Europa que significaram a privatização das terras e impactaram drasticamente a vida das mulheres, jogando-as em uma condição de vida extremamente precária. Isso nos remete, por exemplo, à atual perseguição às mulheres campesinas por parte dos grandes latifundiários, na disputa pela terra. Se livrar de toda essa lógica passa a orientar a luta por emancipação e dignidade.
A primeira onda do feminismo afirmava que votar e ser votada era condição sem a qual não haveria acesso pleno aos direitos por parte das mulheres. Ante os calorosos debates que permearam o desenrolar do movimento, a ex-escravizada e feminista Sojourner Truth, coloca um importante ponto de inflexão ao debate sobre sua condição de mulher e negra, debate que nos acompanha até os dias atuais. Angela Davis, intelectual e ativista em seu livro Mulheres, Raça e Classe (1981) traz uma série de elementos que permearam a disputa no seio do Movimento com a intensa discussão e divergências sobre a condição das mulheres negras e a luta antirracista, provocando debates sobre prioridades e essa foi a linha que as feministas brancas não atravessaram. Davis destaca a afirmação de Sojourner Truth no seu discurso proferido na Convenção pelos Direitos das Mulheres em Akron, Ohio, em 1851:
“Não sou uma mulher?
Aquele homem diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher?
Olhem para mim! olhem para meu braço!
Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem — quando tinha o que comer — e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?
E daí eles falam sobre aquela coisa que tem na cabeça, como é mesmo que chamam? (uma pessoa da plateia murmura “intelecto”)
É isto aí, meu bem. O que é que isto tem a ver com os direitos das mulheres ou os direitos dos negros?
Se a minha caneca não está cheia nem pela metade e se sua caneca está quase toda cheia, não seria mesquinho de sua parte não completar minha medida?
Então aquele homenzinho vestido de preto diz que as mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo não era mulher! Mas de onde vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele.
Se a primeira mulher que Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de cabeça pra cima! E agora elas estão pedindo para fazer isto. É melhor que os homes não se metam. Obrigada por me ouvir e agora a velha Sojourner não tem muito mais coisas para dizer”.
Estava posta a questão, consideradas como as que não são, porque o racismo e o sexismo produziram uma categoria de não ser para as mulheres negras, como retrata Angela e também a psicóloga e escritora Grada Kilomba em seu Memórias de Plantação (2019), que sendo o “outro do outro” relega às negras um lugar de permanente “não ser”. Ora se a mulher branca é uma cópia frágil, um outro com características diferentes e inferiores, a mulher negra é o pastiche animalizado, sua subjetividade é animal e suas dores naturalizadas. A segunda onda do feminismo avança na luta pela autonomia das mulheres, sua liberação e busca por igualdade de condições em todas as áreas. É o auge da força de organização e luta das mulheres, conferindo ao movimento uma série de avanços, bem como novos e velhos desafios. Seria impossível avançar de fato sem atacar um grave problema, a questão racial. Gênero e a luta antirracista foi tema anabolizado pelos ventos da jornada em busca dos direitos civis nos Estados Unidos, a agenda feminista não podia prescindir da questão. A violência perpetrada contra os negros (homens negros principalmente) precisava constar na pauta. Mediante o impasse, iniciou-se o processo revisionista que posto em curso, estabeleceu a teoria de que gênero não era a única determinante para o destino de uma mulher como afirmava até então o movimento e a condição em que as mulheres negras precisavam ser levadas em conta, ou libertamos todas, diz Truth, e enfrentamos a luta por inteiro, garantindo a visibilidade e emancipação de todas, ou a questão das mulheres negras permanecerá invisível.
Agregando a pauta indígena e levando em conta as diferenças e especificidades das mulheres, nasce o feminismo negro com nomes expoentes nos Estados Unidos e aqui no Brasil, potencializado pelo letramento racial produzido inicialmente pelos Movimentos Negros. Como afirma a pedagoga e ex-ministra de Mulheres, Igualdade racial e Direitos Humanos Nilma Lino Gomes, “foram os movimentos negros que alfabetizaram racialmente seus militantes aqui no Brasil. Ela apresenta a urgência e a importância de uma intersecção entre gênero e raça, tendo em vista serem as mulheres negras as condenadas da terra e as que sofrem em larga escala e em um nível exponencialmente alto as violências de gênero e raça. Lélia Gonzalez denunciou veementemente o racismo e o sexismo; as mulheres negras, segundo, ela sofrem uma espécie de sobreposições de opressões, percebemos o impacto disso quando olhamos para as intersecções. O conceito sociológico de interseccionalidade ajudou na ampliação da compreensão das experiências de pessoas submetidas a variadas formas de subordinação. Sem nos atermos aos marcadores de gênero, raça, classe, local de moradia e escolaridade, por exemplo, não poderemos pressionar por políticas públicas que garantam às mulheres negras igualdade de direitos e cidadania plena. A professora e cineasta Bridgett Davis diz que mulheres negras estão profunda e constantemente expostas à dor e que simplesmente se acostumaram com ela!
Com o agravamento da crise do capitalismo e avanço do mercado financeiro, isso piora ainda mais. Os grandes centros produzem a gentrificação ou a “remoção branca” transformando cidades em caras mercadorias e dificultando acesso pleno sobretudo às mulheres negras. A reflexão sobre mulheres e direitos humanos nos lança diretamente o olhar na condição das mulheres de favela nesse contexto. Como não pensar nas constantes violências a que estão expostas e submetidas, são em sua maioria pretas e pardas. Segundo o Ipea (2011), 66,2% das casas em favelas são ocupadas por pessoas negras, sendo 39,4% chefiadas por homens negros e 26,8% chefiadas por mulheres negras, o que reforça a conservação da maior vulnerabilidade social vivida por esse grupo, seja pela omissão/ação do Estado ou pelo que Eliana Sousa denominou como opressão por parte de “Grupos armados”. Chamo a atenção para a experiência das UPPs como exemplo apresentado por Marielle Franco em sua dissertação de mestrado, reduzindo a vida cotidiana ao controle armado estatal, sendo que, em casos assim, o próprio Estado acaba colocando as mulheres em uma condição de vida piorada, seja na privatização de bens comuns como água, fornecimento de energia elétrica, seja nas péssimas condições do saneamento e habitação.
Assim como na vigência da escravização, a retirada do direito à maternidade ainda é ação colonial na vida das mulheres negras e pobres, em sua maioria moradoras de favelas e similares. A morte materna evitável e a violência obstétrica são componentes dramáticos nessa história. Deixamos como referência o dossiê produzido pelo nosso mandato parlamentar (2019-2022) na atuação pela Frente contra a violência obstétrica e mortalidade materna, mais um capítulo do que Abdias do Nascimento chamou, inclusive no título de seu livro, de Genocídio do Negro Brasileiro (1978). A discussão do Mulherismo Africano introduzido no debate feminismo/mulherismo no final da década de 1980 por Clenora Hudson e de Dororidade (2017) se encontram e nos ajudam a aprofundar o entendimento sobre as dores das mulheres negras como corpo coletivo seja no continente africano ou em diáspora que de forma avassaladora e trágica atravessam o cotidiano dessas mulheres ao longo da sua vida. Thula Pires afirma que a violência contra as mulheres negras é desproporcional! Rachel Gouveia Passos em seu Na Mira do Fuzil: A Saúde Mental das Mulheres Negras em Questão demonstra o quanto o direito e a psiquiatria colocaram as mulheres negras em uma espiral de perpetuação de terrores raciais e sexuais. Há uma perpetuação da negação da maternidade. Essa ordem social violenta contra as mulheres mantém a dinâmica de estabilidade das elites, conferindo às mães das vítimas a “dor que enlouquece”, a medicalização e a impunidade. Segundo ela, a aniquilação da população negra atravessa todas as dimensões da vida em sociedade.
À luz de toda essa produção, a resposta à nossa pergunta parece ir se evidenciando. Penso que a existência do povo negro, sobretudo das mulheres negras em diáspora é uma existência em tragédia e que a superação das vicissitudes está na construção de estratégias coletivas de sobrevivência, ante os arroubos do racismo, do machismo, do sexismo, da misoginia, da Máscara Manicolonial que gruda a pecha de “agressivas e violentas” ainda reinantes na sociedade global e nas relações sociais. Toda essa prática leva ao resultado que é sempre violento, pois até hoje provoca nos campos do particular e privado, do coletivo ao público, retaliações do poder masculinista e seu desenrolar na construção social dos gêneros e as dinâmicas impostas por ele no que porventura venha a fugir do modelo “original” de conformação dessa lógica, fazendo com que o seu universo se sinta ferido e profundamente ressentido. A sátira proposta pela diretora Greta Gerwig no recente filme Barbie (2023), por exemplo, nos mostra de forma despretensiosa (ou não), a máxima incômoda, mas essencial para pensarmos o universo feminino e o patriarcado com seu poder masculinista. Em um universo (fantasia) de suposta fragilidade feminina, altamente estereotipada, bem marcada nas indefectíveis e típicas roupas e casas das bonecas no cenário, ressaltando a futilidade das tarefas e programas diários, até que em dado momento, acaba sendo colocada em xeque por uma “crise existencial” da personagem principal, ocasionada pelo sofrimento de uma “mulher da vida real” ligada a ela. Tudo isso desencadeia uma série de eventos e a fantasia vai nos instigando à reflexão, pois, ao deixar de ser “adequada para o seu mundo”, logo quer ir em busca do mundo real para se “curar” e voltar a ser a boneca do seu mundinho cor-de-rosa projetado por homens (imbecis), que no mundo real, vão reproduzindo o comportamento uns dos outros e que já haviam resolvido um problema similar no passado e recolocam a anterior “de volta ao lugar dela”! Fora do mundo da fantasia onde as “bonecas” são o centro, o mundo real é o mundo dos homens, onde um Ken oprimido pelo protagonismo feminino do mundo das Barbies, se encontra embevecido, extasiado e adequado.
Gerwig inverte a lógica constatada por Beauvoir, recurso utilizado também nas pesquisas da escritora Grada Kilomba, de que no mundo dos homens a mulher é o outro mais frágil e incapaz. Gerwig faz com que os Ken só “sejam” ao serem notados pelas Barbies, eles só são a partir delas, eles são o outro da outra – bingo! – só se realizam sendo por e para elas. Ken se deslumbra e deseja ardentemente subverter o mundo cor-de-rosa assimilando a maravilhosa descoberta ao seu mundo. Um mundo dos homens, onde eles podem tudo, se bastam e definem a existência de tudo e todos a partir deles. No filme, as coisas se resolvem, por aqui no mundo real a condição do ser mulher, nos termos cunhados por Beauvoir, é construída como um “outro” frágil e incapaz, uma cópia que carece de atributos do seu original masculino, a matriz perfeita e detentora do poder universal de ser. Sim, aqui não é possível prescindir da questão ontológica, o homem é, a mulher parece ser, para ser de fato carece não só da condição biológica de mais força física, mas dos tais atributos inerentes à condição do “ser homem”. Assim, a voraz e sistemática tentativa de aniquilação das suas subjetividades sem dúvida alguma, continua sendo a ferramenta utilizada na tentativa de “colocar a mulher no seu lugar”, no lugar do “outro” frágil e dependente, de ser débil e instável, logo, incapaz de deter a tal “emancipação” de fato. Vale constar que quando me refiro aqui à categoria mulher, me refiro ao conjunto de todo o universo do feminino (mulheres cis, LGBT, héteras, trans, homens trans que menstruam, geram e dão a luz), pois somos heterogêneas e isso é primordial lembrar, sempre. É impossível não tratarmos de forma específica as diferenças desse universo diverso e multifacetado da categoria mulheres e as desigualdades nas diferenças. Por isso, o conceito de interseccionalidade nos auxilia ao indicar a devida atenção aos marcadores de gênero, raça e classe, além da localização geográfica, de modo que sem esse conceito não avançaremos muito. Logo, a observação aliada à lógica nos leva a afirmar que não é equivocado pensar que o mundo é dos homens e as mulheres negras encontram-se em um lugar de altíssima violação no que se refere aos direitos humanos.
Estratégias de coletivização da luta, respiro e saídas possíveis!
Por fim, ressalto aqui o exemplo de movimentos como “O Paro Feminista” com a consigna de que “se paramos o trabalho, o mundo para”, da autonomia em relação aos direitos sexuais e reprodutivos, da luta por uma legislação que regulamente o trabalho do cuidado, a resistência a lideres extremistas como o movimento “Ele Não”, “A Primavera das mulheres”, as Mães da Praça de Maio, as Mães de Acari, as Mães de Manguinhos, a Rede de Mães Contra Violência de Estado, Nenhuma à Menos, Marcha Mundial das Mulheres, as mulheres da via campesina, mulheres indígenas, Marcha das Mulheres Negras, como instrumentos eficazes e vitais para ficarmos de pé! Vamos amealhando, em cantos diferentes do mundo e em períodos diferentes da nossa história, um sem número de iniciativas coletivas e individuais em vários campos, no enfrentamento constante às ameaças que são fruto da forte aliança patriarcal, que segundo Toni Morrison, escritora estadunidense, serve ao capitalismo junto com o racismo e o machismo e lidera investidas ininterruptas de anulação das possibilidades de autoafirmação e autonomia das mulheres. O dia 25 de novembro, rememorado nesta última semana, destaca-se como Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, data instituída pela ONU em memória das irmãs Trujillo, Maria Teresa e Minerva, assassinadas pela ditadura da República Dominicana. E seguimos a luta assim, em várias frentes. Este artigo pretende-se mais uma pequena contribuição à memória, reflexão e ação, agregando-se à luta que se segue em várias frentes, com a finalidade precípua de garantir às mulheres a tão sonhada condição de cidadãs plenas, sem que isso custe sua saúde integral ou sua própria vida, como no caso de Margarida Alves, Dorothy Stang, Malala, Mãe Bernadete, Neusa Santos Souza, Zuzu Angel e tantas outras que devemos rememorar e reverenciar sempre a elas e a nós outras.
Confira este artigo completo no Dicionário de Favelas Marielle Franco!
Referências
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
DAVIS, Angela. A Liberdade é uma Luta Constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
FRANCO, Marielle. UPP: A Redução Da Favela A Três Letras. São Paulo: n-1, 2018
GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
hooks, bell. O Feminismo é Para Todo Mundo: Políticas Arrebatadoras. Rio de Janeiro: Record, 2018.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Paz e Terra,1978.
PASSOS, Rachel Gouveia. Na Mira do Fuzil: A Saúde Mental das Mulheres Negras em Questão. São Paulo: Hucitec, 2023.
PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: NÓS, 2017.
SILVA, Eliana Sousa. Testemunhos da Maré. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012.
WEENS, Clenora Hudson. Mulherismo Africana: Recuperando a Nós Mesmos. São Paulo: Ananse, 2020.
SANTOS, Ynaê Lopes. Racismo Brasileiro: Uma história da formação do país. São Paulo: Todavia, 2022.