Proposta foi veiculada durante sua participação online no evento “Os desafios atuais dos DESCAs” , que aconteceu nesta quinta, 28, em Genebra
Artigo produzido por Redação de Geledés
Sueli Carneiro, coordenadora e fundadora de Geledés, participou virtualmente do encontro “Os desafios atuais dos DESCAS”, que aconteceu nesta quinta-feira, 28, em Genebra, na Suíça. Com mediação de Paulo Lugon Arantes, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o encontro contou ainda com a participação presencial de Inaye Gomes Lopes, mestre em História e vereadora Kaiowá, Mobu Odo Arara, cacique do povo Arara, Iara Pietricovski, consultora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde, Julieta Rossi, membro do CDESC, Francisco Cali Tzay, relator Especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, e com a presença virtual de Marina Fonseca (ONG Criola).
Abaixo segue íntegra da fala de Sueli neste encontro.
“Boa tarde a todas, todos e todes,
Considero que o principal desafio dos DESCAS no Brasil atualmente é o recrudescimento da negação dos direitos de cidadania ocorrido nos últimos anos como consequência do avanço do racismo, da misoginia, e do fundamentalismo religioso sobre o Estado e a sociedade que agravaram os padrões de exclusão social e extermínio vigentes no Brasil, desde sempre, contra a maioria da população do País que é negra.
Nesse contexto, a resistência negra tem se configurado em esforço dramático de preservação do primeiro e mais elementar dos direitos humanos que é o direito à vida permanentemente ameaçada, especialmente nos territórios periféricos atingindo preferencialmente jovens e crianças negras. Neste ano, somente no Rio de Janeiro, 19 crianças foram vitimadas pela violência sendo oito delas vítimas fatais. No estado da Bahia nesse mês, até o momento, 52 pessoas foram assassinadas no confronto das forças policiais com grupos criminosos.
Como apontou a Anistia Internacional Brasil, o suposto combate ao tráfico de drogas se tornou “licença para matar” pessoas às quais não se reconhece nem direitos nem plena humanidade o que nos autoriza a afirmar que a negritude no Brasil vive sob o signo da morte por causas preveníeis e evitáveis por ação ou omissão do Estado.
O segundo direito humano sempre ameaçado é o direito de ir e vir. Negros, no Brasil, estão sempre submetidos à lógica do vigiar e punir. São tipos humanos sobre os quais pesa o estigma de suspeitos a priori, para os quais não há presunção de inocência, ao contrário em relação a eles há convicção íntima da culpa que se evidencia no encarceramento massivo a que estão destinados.
Ás violações do direito à vida e à liberdade seguem-se a interdição à participação política que se expressa emblemática e tragicamente no assassinato de Marielle Franco sobre o qual seguimos perguntando quem mandou matar e porquê?
Marielle era uma promessa de gestora pública, uma promessa de mandato popular de deputada estadual, federal e senadora tudo o que nela se vislumbrava como perspectiva de futuro, ceifado de forma sinistra.
Seguindo a mesma lógica de interdição dos direitos políticos, candidaturas de mulheres e negros estão nesse momento sob ataque em projetos que tramitam na Câmara e no Senado que podem desmontar políticas afirmativas nas eleições para anistiar partidos e fazer o País retroceder ainda mais a presença desses segmentos na política nacional.
Some-se a isso a negação do direito de ser lembrado para ocupar posições de confiança e destaque que está sendo desmascarada nesse momento pelas resistências e ataques que se assiste ao pleito pela indicação de uma mulher negra ao Supremo Tribunal Federal.
Temos por fim os entraves para realização dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais objetos de diferentes modalidades de interdição que vão dos processos de seleção e alocação no mercado de trabalho, onde a brancura da pele opera como critério de seleção preferencial, aos melhores postos e ocupações do mercado de trabalho.
Estão presentes no acesso diferencial à terra ou as dificuldades colocadas para a sua preservação e titulação exaustivamente denunciados por quilombolas. Segue-se as dificuldades no acesso à educação de qualidade, a desvalorização e estigmatização de seus valores culturais, a imposição da aculturação, ou seja um conjunto de mecanismos que negam aos negros brasileiros a plena condição de sujeito cognitivo e de sujeito de conhecimento.
O resultado desse conjunto de práticas discriminatórias de base racial é um país apartado racialmente do ponto de vista da realização dos direitos de cidadania que os diferentes Índices de Desenvolvimento Humano encontrados para brancos e negros no Brasil, ilustram cabalmente, sendo o IDH de pessoas brancas compatível ao de países desenvolvidos e o IDH dos negros brasileiros abaixo dos de países em desenvolvimento conforme nos informa o estudo do PNUD Brasil deste ano sobre a trajetória desigual do IDH no Brasil. .
Sem enfrentar decisivamente o racismo, o sexismo e o fundamentalismo religioso, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais no Brasil permanecerá uma quimera que só alcança efetivamente grupos humanos que gozam das prerrogativas do Estado Democrático de Direitos e normas internacionais das quais o País é signatário, sistematicamente negadas às pessoas negras.
Após essa fala, Sueli respondeu à pergunta de Iara Pietricovski, consultora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), sobre como unir esses dois Brasis, mencionados por ela. Segue resposta abaixo:
“O que é preciso reiterar é que não há nenhum acidente, nenhuma incompreensão nos resultados que temos em termos de desigualdades raciais. O que existe no Brasil é um projeto, desde sempre. No dia 14 de maio de 1888, foi decretada a nossa extinção, na medida em que a gente já não servia mais como mão de obra escrava. Essa decretação se manifesta nesse abandono social extraordinário a que a população negra é submetida o tempo todo e aos padrões de violência letal que se abatem permanentemente sobre a nossa gente.
Eu costumo dizer que o projeto das elites sempre foi o de eliminação da “mancha negra”. E o que deu errado até agora neste projeto é a nossa resistência extraordinária a ele. Cada vez que nós assinalamos uma violência, uma desigualdade, e sempre que a gente denuncia que essa desigualdade atinge desproporcionalmente mais a população negra, estamos dizendo que o projeto está em curso, que está alcançando seus objetivos. Porque se a pandemia matou muito mais gente negra do que branca, e os números são aterrorizantes, a gente sabe que o projeto está em curso. A política não mudou, porque o projeto (de extermínio) está em curso.
Desde 1968, o Brasil vem ratificando uma série de instrumentos internacionais para a eliminação do racismo e nada vinga na sociedade, nada é observado, nada acontece, em termos de implementação efetiva de direitos conquistados.
Recentemente, foi criado o Fórum Permanente de Afrodescendentes pelas Nações Unidas. (Em 2021, ano de criação deste fórum, a ONU colocou como temática “Reparação é a justiça do século 21”.)
Eu tenho defendido neste espaço (nas Nações Unidas) que a mais exitosa política pública de enfrentamento das desigualdades raciais que o Brasil foi capaz de produzir são as cotas raciais nas universidades. No entanto, essa política tão exitosa não se encontra ancorada em nenhuma estratégia ambiciosa de desenvolvimento da população afrodescendente no Brasil.
A ausência de um amplo e robusto Programa de Desenvolvimento Econômico e Social dos afrodescendentes impede que os ganhos educacionais auferidos nas políticas de cotas se realizem no acesso (dessas populações) às melhores ocupações do mercado de trabalho e demais benesses sociais.
A possível reversão dos padrões extraordinários de desigualdades raciais, onde há um esforço de reunificação desses dois Brasis, passa pela ousadia do Estado brasileiro em mudar o projeto de nação que está em curso desde 1888. Isso exigiria um Programa de Desenvolvimento Econômico Social com metas de médio e longo prazo que nos permita iniciar um círculo virtuoso de promoção da mobilidade social das populações negras, assegurando que o esforço educacional e tantas outras dimensões da vida social possam se realizar cabalmente.
Um programa de desenvolvimento da comunidade negra como uma política de reparação histórica, requereria, inclusive, programas especiais para segmentos afetados de maneira mais aguda, como mulheres negras e jovens negros, expostos de maneira desproporcional à violência.
Creio que a resposta que se espera do Estado brasileiro é uma política de reparação com Estatuto de Igualdade Racial, que também não saiu do papel, que asseguraria e realizaria as ambições da plataforma de ação da Conferência de Durban. Acredito nisso como algo completamente viável, no contexto de um governo que se coloca como progressista, socialmente responsável e determinado a reverter os padrões de desigualdades que existem no brasil.
O BNDES tem bala na agulha para sustentar uma ideia dessa ordem. O que me autoriza a sonhar com isso é saber que o BNDES vai apoiar o Museu da Escravidão. E eu sugiro ao ministro (Aloizio) Mercadante (presidente do BNDES) que ouse mais, muito mais, ao conceber um Programa de Desenvolvimento Econômico Social e Cultural para a população negra como forma de fazer a reparação histórica que o Brasil deve à nossa gente e como forma de erradicar a distância entre esses dois países no território brasileiro”.