Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental surge com o objetivo de construir uma agenda antimanicomial e antirracista para a política nacional do setor
Lançamento da frente lotou o auditório da Universidade Estadual do Rio de Janeiro no último dia 11 de maio. Foto: Divulgacão
Durante o segundo turno da eleição presidencial do ano passado, a perspectiva da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), combinada com o arco de alianças políticas em torno da sua candidatura, levou um grupo de profissionais da saúde mental a perceber a necessidade de fortalecer uma frente negra no campo da saúde mental e da reforma psiquiátrica. O objetivo era garantir que a pauta do enfrentamento ao racismo fosse central na discussão do tema.
Assim nasceu a Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental, que nesta quinta-feira (18) será lançada em Brasília, após já ter tido eventos semelhantes em São Paulo e Rio de Janeiro.
“Reconhecemos que há urgência na construção de uma Reforma Psiquiátrica que seja radicalmente antirracista, uma vez que nossos corpos sempre ocuparam os hospitais psiquiátricos e ainda somos a população que mais acessa o Sistema Único de Saúde”, destaca trecho do primeiro post do perfil criado pelo grupo em rede social, em novembro de 2022.
O movimento também nasceu com o objetivo de obter força social para fazer com que as equipes no Ministério da Saúde tivessem representatividade de cor e raça. A articulação já colheu resultado: em fevereiro, a professora Sônia Barros foi nomeada chefe do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde.
“O racismo é estruturante da lógica manicomial e, para isso, a gente precisaria garantir quadros no Ministério da Saúde, que a gente já sabia que não ia conseguir sem pressão política”, diz Tadeu de Paula Souza, professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um dos membros da coordenação nacional do movimento.
Ele explica que o racismo é um promotor direto de problemas de saúde mental ao aniquilar a humanidade, desprezar e desqualificar as pessoas negras desde a infância. Nesse sentido, como fenômeno social, o racismo promove uma série de adoecimentos, defende o professor da UFRGS.
“O ódio ao pobre não seria tão eficiente se não passasse pelo racismo no Brasil. E o racismo não seria tão eficiente se não tivesse associado o negro à figura de anomalia”, reflete. “A lógica manicomial e genocida das políticas relacionados à saúde mental, transtorno mental, álcool e drogas, vai produzir efeitos sociais muito mais amplos e estruturais do que somente uma questão de tratamento.”
Ao mesmo tempo em que é preciso pensar o tratamento, Souza pondera ser necessário pensar as políticas de Estado que produzem os efeitos que depois a própria política pública tenta reverter. Para ele, não faz sentido só cuidar dos efeitos que as políticas de Estado produzem, é preciso mudá-las.
“É uma contradição que a gente vive, porque temos uma política de guerras às drogas que estigmatiza o usuário de droga, mas sobretudo estigmatiza duplamente o corpo da pessoa negra, seja das mães que veem os filhos mortos por essa política e o que produz de saúde mental para essas mulheres, como dos usuários em geral. É uma política de Estado que vai produzir efeitos sobre toda a sociedade e que depois temos que acolher num serviço de saúde mental. A gente precisa rever as políticas que estruturam isso”, explica.
‘Psiquiatriarização da miséria’
O fortalecimento das comunidades terapêuticas nos últimos anos é outro ponto fortemente criticado pelos integrantes da Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental.
O professor de Saúde Coletiva da UFRGS recorda que o Brasil passou pelo processo de reforma psiquiátrica, baseado no fechamento gradativo dos leitos psiquiátricos. O movimento ficou nacionalmente conhecido como “luta antimanicomial”, com a premissa de ressocialização das pessoas com transtorno mental que viviam em situação degradante nos manicômios, sofrendo uma série de violações de direitos humanos.
O surgimento do crack, todavia, mudou o curso dessa luta. O pânico social com a nova droga causou uma espécie de contra-reforma psiquiátrica. Para Tadeu de Paula Souza, o avanço do crack deu início ao processo de “psiquiatriarização da miséria”. Pessoas em situação de rua, sem emprego, sem moradia, sem direitos básicos garantidos, passaram a ser associadas ao uso do crack.
“Foi se colocando como se o crack fosse a causa disso, e as comunidades terapêuticas, que nunca deixaram de existir, se fortaleceram em torno desse discurso de higienismo e internação compulsória em massa. Esse higienismo colonial do início do século 20, que é estruturante, que nunca deixou de existir, mas que se fortalece com o movimento de contra-reforma psiquiátrica, numa associação com o fortalecimento da bancada religiosa”, afirma o professor da UFRGS.
Ele analisa as comunitárias terapêuticas como uma reedição dos antigos manicômios e usa a analogia de uma porta-giratória: por um lado se fecham os antigos manicômios; por outro se fortalece a indústria da internação via o fenômeno social do uso de drogas por populações em situação de rua.
Após o ato em Brasília, a Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental será lançada em junho, em Porto Alegre, e em agosto, em Salvador.
A frente é composta por uma série de entidades, como a Aliança Negra pela Saúde, a Iniciativa Negra por Outra Política de Drogas, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, a Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es), a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, e o Instituto AMMA Psiquê e Negritude.
Com a colaboração do repórter Luís Eduardo Gomes