Jogou-se na lata do lixo décadas de pressão social e caminhar político no sentido de abrir brechas para as candidaturas de negros e negras e de mulheres.
Artigo por RED- Rede Estação Democracia
Por IVONIO BARROS NUNES*
O país continua e, ao que tudo indica, continuará em sua trajetória de polarização. Mas uma proposta acabou unindo quase todos os partidos com representação no Congresso Nacional no primeiro semestre do ano. A Proposta de Emenda à Constituição nº 9/23 foi aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados e seguiu para análise do Senado Federal.
Como praticamente todos os partidos não cumpriram a legislação eleitoral com respeito às cotas para negros e negras e também em relação às cotas para as candidaturas de mulheres, e também não respeitaram a lei para a destinação dos recursos para o financiamento de campanhas de mulheres e pessoas negras, recaía sobre eles as penalidades da lei (Emenda Constitucional 117, de 5 de abril de 2022) na forma de multas pesadas.
Por conta do acúmulo de irregularidades reconhecidas e julgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral ocorridas principalmente nas eleições de 2022, apareceu como uma “fórmula de esperteza”: a autoanistia. Prática que já está virando tradição, a começar com a autoanistia imposta pelos golpistas e torturadores da ditadura militar. Iniciada por um grupo de parlamentares de direita com o objetivo de originalmente evitar as “sanções aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições” a PEC tramitou de forma errática evitando as críticas e os holofotes da imprensa que poderiam transformá-la em um escândalo, mas, atrás das cortinas foi seguindo um caminho de acordos que eliminariam praticamente todo tipo de penalidades eleitorais aos partidos na últimas décadas.
Só o PSOL e Novo (um da esquerda e outro da direita) fizeram oposição, os demais participaram dos acordos, que transformaram-na em anistia para os crimes contra as mulheres e negros, entre outros, e “em uma espécie de Refis (refinanciamento de dívidas) para partidos políticos, seus institutos ou fundações a fim de regularizarem seus débitos com isenção dos juros e multas acumulados, aplicando-se apenas a correção monetária sobre os montantes originais”, e “também considera como cumprida a aplicação de qualquer valor de recursos em candidaturas de pessoas pretas e pardas nas eleições ocorridas até a promulgação da futura emenda constitucional” (Agência Câmara de
Notícias).
Jogou-se na lata do lixo décadas de pressão social e caminhar político no sentido de abrir brechas para as candidaturas de negros e negras e de mulheres. As dívidas que já estavam verificadas, com o Erário Público, com a Justiça Eleitoral e com a Previdência Social, serão parceladas sem juros e multas, com 180 meses, a critério dos partidos, menos as previdenciárias, que poderão ser divididas em 60 meses. Para completar, os partidos poderão usar para esse pagamento os recursos do Fundo Partidário. Isto é, fundos públicos.
Esse processo não passou desapercebido pela imprensa e pelos movimentos sociais, especialmente os movimentos negros e feministas. Mas as reclamações e denúncias não reverberaram e não mobilizaram. Talvez porque as principais lideranças partidárias e seus aliados sindicais e nos movimentos sociais estavam em acordo. Talvez porque a sociedade estivesse olhando para outros escândalos de maior magnitude, que transformavam este em um golpe de simples batedores de carteira. De qualquer forma, essa foi uma das marcas legislativas do primeiro semestre, daquele que pode ser o pior parlamento que já tivemos (sem contar o próximo).
A tentativa de fazer com que o Senado Federal aprovasse antes do recesso o texto votado na Câmara acabou por soar tão escandaloso quanto o conteúdo da proposta que fez com que o presidente do Senado tivesse que garantir a tramitação normal, respeitando o Regimento Interno do Senado, da mesma forma que havia decidido semanas antes sobre a tramitação da proposta de lei que iguala as penalidades de estuprador de crianças às impostas à vítima de estupro.
Os partidos políticos continuam sendo as instituições essenciais do processo político democrático eleitoral e legislativo, em que pese terem assumido feições muito estranhas à democracia nas últimas décadas e em que pese, em grande parte do mundo, terem se afastado dos eleitores. Porém, o que se percebe, acompanhando o processo legislativo é que a sociedade civil precisa criar outros instrumentos e outras instituições para participar mais proximamente das casas legislativas, desde as Câmaras de Vereadores, as Assembleias Legislativas, até o Congresso Nacional. O torpor que a sociedade expressa é tão perigoso à democracia quanto as ameaças golpistas da extrema-direita.
*Membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP) e do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea)
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas