Quase lá: Pesquisa inova ao utilizar marcadores sociais para investigar acesso ao transporte

Estudo de Engenharia da USP comparou diferentes cidades do Brasil e mediu acesso ao transporte público urbano em diferentes classes sociais; desigualdades se acentuam por gênero e raça

Publicado: 28/05/2024

Texto: José Adryan Galindo*
Arte: Diego Facundini e Joyce Tenório**

 

Uma pesquisa desenvolvida na Escola Politécnica (Poli) da USP analisou a qualidade e o grau de acessibilidade ao transporte público em quatro capitais brasileiras: Curitiba, Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo. Utilizando uma correlação entre a estrutura social e o acesso a oportunidades das populações locais, o estudo de doutorado  intitulado Desigualdades de classe, raça e gênero no acesso ao transporte e ao espaço urbano em cidades brasileiras: análises empíricas e métodos para políticas e planejamento apontou que desigualdades socioespaciais e a segregação estão associadas a diferentes níveis de oferta do transporte, restringindo as interações entre diferentes grupos sociais.

De acordo com a autora da pesquisa, a engenheira de transportes Tainá Bittencourt, as análises mostram que as classes mais baixas têm sistematicamente menor acesso às oportunidades de emprego do que as classes mais altas, e pessoas negras têm menor acessibilidade do que as brancas, mesmo quando pertencem à mesma classe social. Essas desigualdades são maiores nas grandes cidades, nos países de menor renda e em sociedades pós-coloniais, especialmente quando são considerados os custos de viagem do transporte público urbano.

“A classe média branca tem níveis de acessibilidade, por vezes, maiores do que a classe alta negra. Diferente do que se espera, que a classe alta tivesse mais acessibilidade que a classe média”, relata a engenheira. “A cor da pele é um mecanismo de subida, em termos de acesso a oportunidades. A classe superior negra está mais longe das oportunidades de emprego, das outras oportunidades urbanas e do sistema de transporte”, completa Tainá.

Além das cidades capitais brasileiras, Tainá analisou outras duas cidades de fora do País: Londres, no Reino Unido, e Nova York, nos EUA. Ao posicionar o Brasil no contexto internacional, a pesquisa mostra que a renda mais baixa em países de baixa e média renda, associada a tarifas caras de transporte público, onera desproporcionalmente as classes mais baixas e as populações negras.

Tainá Andreoli Bittencourt - Foto: ResearchGate

 

“Este padrão é consistente entre todas as três classes sociais e todas as quatro cidades. Nas duas maiores cidades, a diferença entre as raças é ainda mais acentuada. Isto indica que as desigualdades raciais se combinam e se sobrepõem às desigualdades de classe e de cidade”, sugere a pesquisadora.

O estudo inova ao propor formas de cruzamento de dados de diferentes fontes censitárias, governamentais e colaborativas para ampliar a capacidade de análise do acesso a oportunidades urbanas pelos diferentes grupos sociais. De acordo com o estudo, dimensões de classe social, raça e gênero podem servir como uma ferramenta para o planejamento urbano e de transportes.

Comparação interna

Três artigos acadêmicos compõem a tese, baseados em três questões centrais do estudo: o primeiro procurou entender como a segregação residencial por classe social e raça se relaciona com a acessibilidade; o segundo investigou de que maneira as desigualdades de renda locais e globais afetam a acessibilidade em geral e a acessibilidade por classe social e raça. Por fim, o terceiro artigo identificou ferramentas para avaliar a acessibilidade de serviços públicos com capacidade limitada.

“Utilizamos técnicas de agrupamento, microssimulação espacial, imagens de satélite e mapeamento dasimétrico para refinar nossa análise socioespacial comparativa através de múltiplas unidades de área e tempo, tomando quatro grandes metrópoles brasileiras como evidência empírica”, informa a pesquisadora na tese.

Os casos analisados incluem as maiores e mais ricas cidades brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro, mas também altamente desiguais em renda. Segundo o estudo, os coeficientes de Gini – utilizados para medir concentração de renda – para São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza são semelhantes, variando entre 0,62 e 0,63. No entanto, os níveis de renda são bem mais baixos em Fortaleza (US$ 170), enquanto São Paulo e Rio têm renda média de US$ 280 e US$ 250, respectivamente. Curitiba tem renda média um pouco maior, de US$ 285, e menor desigualdade (Gini de 0,53). Enquanto São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba são todos mais ricos, Curitiba é menos desigual.

A pesquisadora pontua que em grandes cidades, as regiões com mais oportunidades costumam ser rodeadas por pessoas de renda mais alta. Ao delimitar os espaços periféricos para a classe baixa, é necessário que esta use mais o transporte público. Entretanto, ao não ser efetivo em conectar a população pobre às áreas centrais do mercado de trabalho, o transporte ajuda a perpetuar o desemprego e a baixa renda familiar entre pessoas periféricas. Além de tirar horas de lazer e produtividade desses indivíduos, o tempo gasto em deslocamentos pode diminuir o rendimento profissional do trabalhador, possivelmente minando suas oportunidades de crescimento profissional.

estrutura social traduzido

Gráfico: cedido pela pesquisadora

Questão racial

Fortaleza é a menor cidade analisada e a maioria de sua população é negra (65%), o que diminui a desigualdade entre as pontas quando comparada às outras cidades. Porém, mesmo sendo minoria, os residentes brancos estão mais bem localizados e têm níveis mais elevados de acessibilidade no geral. 

“No caso de Fortaleza, você está sempre em um nível mais baixo de acessibilidade. Sim, é uma cidade menor, mas você tem níveis de renda menores e níveis de acesso ao transporte, às vezes menores também. Por outro lado, a desigualdade entre as pontas é um pouco menor”, explica a engenheira.

Já em Curitiba a maioria da população é branca (76%). Apesar da segregação do acesso se manter parecida na questão racial, a população branca de classe alta e da classe baixa estão mais segregadas entre si. O estudo destaca a complexidade da desigualdade urbana e como cada região enfrenta problemas diferentes, demandando medidas diferentes entre si. 

“Em Curitiba o último censo apontou 1 milhão e 800 mil habitantes. É uma cidade muito mais compacta e que tem um sistema de transportes mais organizado. Tem desigualdades de renda menores e renda mais alta, mas mesmo assim você vê uma desigualdade muito grande entre a classe alta branca e a classe baixa negra. Porém, tem muito menos desigualdade no meio. Mas ainda tem muita desigualdade entre as pontas”, enfatiza Tainá.

Pela falta de dados sobre empregos informais, o estudo se ateve a estudar a acessibilidade gerada pelos transportes públicos e localização apenas relacionada a empregos formais. 

Comparação externa

Tainá comparou ainda o sistema de transporte de São Paulo com Nova York e Londres. Neste contexto, a pesquisadora estudou a conectividade do transporte, o tempo de deslocamento e as políticas tarifárias.  

Uma diferença importante entre os sistemas foi a quantidade de tarifas. Em São Paulo, apesar de alguns serviços fornecerem integração, a mudança de um meio de transporte a outro exige outra tarifa, diferente do sistema nova-iorquino. 

Para a pesquisadora, em Londres as políticas habitacionais têm sido mais efetivas para que a população de renda baixa consiga se localizar perto das áreas com mais oportunidades de emprego. Já em Nova York, apesar de os grupos sociais estarem altamente segregados, a infraestrutura de trânsito e o transporte público estão mais bem distribuídos pela cidade.

“Quando você compara as classes, você vê que a classe alta branca de São Paulo tem níveis de acesso a oportunidades parecidos com o que as mesmas classes de Nova York e Londres têm. A grande questão é quando a gente vê a base da pirâmide, a classe baixa negra especialmente. Aí é que a desigualdade se escancara. Então, as desigualdades sociais e raciais internas também posicionam em que nível você está em termos internacionais. É um pouco da sobreposição entre desigualdades locais e desigualdades globais”, destaca. 

Em todas as cidades estudadas, as atividades econômicas e as oportunidades de emprego estão concentradas em áreas centrais, ocupadas principalmente pelas classes mais altas. Os sistemas de transporte público, no entanto, diferem em maturidade. O metrô de Londres é o mais antigo do mundo, inaugurado em 1890, seguido pelo sistema metroviário de Nova York, inaugurado em 1904. O metrô de São Paulo só foi inaugurado décadas depois, em 1974. 

“Anos de desenvolvimento dos transportes influenciaram a organização e a cobertura da rede de trânsito, que também está relacionada com processos sociais, econômicos, políticos e urbanos mais amplos. Para conseguir oportunidades de emprego comparáveis às das classes mais altas, as classes mais baixas teriam de gastar 30% ou 40% dos seus rendimentos para chegar ao trabalho e regressar à casa”, revela a pesquisa.

Acessibilidade para mulheres

Além das questões raciais e de renda, o estudo também mostra que a falta de acessibilidade atinge mais as mulheres. O deslocamento feminino tende a ser maior devido à sobrecarga nas chamadas “mobilidades do cuidado”.  

“Elas saem de casa para levar o filho na escola, aí vão para o trabalho, depois vão comprar alguma coisa para o jantar, porque elas são responsabilizadas por essas atividades. Então, esses diferentes papéis sociais que são atribuídos às mulheres influenciam nos deslocamentos. Além disso, elas têm menos tempo para se dedicar a atividades produtivas e de alta remuneração, estando mais representadas em trabalhos parciais ou mais precarizados”, explica.

A pesquisadora também relata que problemas sociais como desigualdade salarial podem modificar a forma como as mulheres se deslocam no cotidiano. “Elas, em geral, têm renda menor, logo menos recurso para pagar a tarifa do metrô e do ônibus. Além disso, quando você olha os usos do transporte, as mulheres usam muito mais o transporte público coletivo e até o caminhar, pois são mais baratos e porque se encaixam melhor nessa dinâmica”, afirma Tainá.

Para a pesquisadora, uma melhora na mobilidade urbana pode ser atingida com capacidade e planejamento. É necessário ter profissionais diversos e capacitados no planejamento do transporte público, agregando visões femininas, pretas e periféricas à discussão, além de medidas de infraestrutura como pontos bem iluminados. 

“Acho que o primeiro ponto é que a gente ainda tem no Brasil uma falta de capacitação de gestores que cuidam da mobilidade pública a nível local. Pois essa discussão ainda é muito nova na Gestão Pública. Então, treinamento e capacitação pensando nacionalmente. Outra questão essencial é trazer pessoas diversas para o planejamento da mobilidade urbana, seja desenhando, fazendo os projetos, seja em participações em conselhos e conferências. Porque essas pessoas têm vivências e experiências que alguém branco de classe alta não tem. Então, você qualifica as políticas públicas com esses olhares diferentes. Um exemplo muito concreto é aumentar a oferta de transporte público nas periferias”, afirma.


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