Para Luana Heinen, doutora em Direito, a sociedade civil é fundamental para reconstruir a ideia de comum, de coletivo e da importância da realização da política para a conquista de direitos, especialmente porque em uma sociedade plural, não há saída fora da política.
Por Maria Victória Oliveira
26/3/2024 - Revista Casa Comum
Evento marca um ano das invasões aos prédios na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Foto: Joédson Alves / Agência Brasil
Segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital, comandado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), cerca de 185 mil pessoas participaram do ato convocado pelo ex-presidente, Jair Bolsonaro, na Avenida Paulista, em São Paulo, no dia 25 de fevereiro deste ano. Presente no evento, o ex-presidente pediu anistia de presos por atos golpistas do 8 de janeiro de 2023, em Brasília.
Mais do que uma discordância sobre partidos políticos e candidatos, atualmente fala-se sobre um debate mais urgente e profundo, que coloca em pauta a descrença, a descredibilidade e a desconfiança por parte de alguns diante do Estado Democrático de Direito, que ainda pode ser considerado recente e jovem no Brasil, uma vez que a Constituição Federal tem pouco mais de 30 anos.
Luana Renostro Heinen. Foto: Arquivo pessoal
Para Luana Renostro Heinen, doutora em Direito, diante de processos democráticos de decisão que demandam tempo e nem sempre produzem as respostas no intervalo esperado, há, no Brasil, o que ela define como a “busca por um salvador da pátria que poderia dar as respostas aos problemas políticos.” Trata-se de um histórico e uma trajetória de país que contribuem para que o Brasil tenha baixas taxas de crença na democracia, além de uma postura que limita o exercício da democracia ao momento do voto e demanda dos políticos uma prestação de favores pessoais.
Diante desse sentimento que ultrapassa a insatisfação, o crescimento da extrema-direita (visto não apenas no Brasil, mas em diversos outros países, como na Argentina e na Itália) traz impactos para a garantia de direitos humanos e sociais. São candidatos e candidatas que flexibilizam direitos a partir de suas posturas neoliberais, com discursos que beiram o autoritarismo e se caracterizam, muitas vezes, por ele, o que demanda atenção para a eleição desses(as) represen- tantes, sobretudo em um ano eleitoral como 2024. Herdado da economia política, neoliberalismo é, em linhas gerais, um conceito que define uma postura de pouca intervenção do Estado sobre a economia, privatização de empresas estatais e redução de investimento em políticas sociais.
Para aprofundar a compreensão sobre a onda de extrema-direita, qual é seu impacto nas eleições municipais, que acontecem em outubro, e, mais ainda, na democracia contemporânea, a Revista Casa Comum conversou com Luana, que, além de doutora em Direito, é professora adjunta na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e atual secretária de Aperfeiçoamento Institucional, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Sociologia do Direito (SOCIODIR) e do grupo de estudos de Direito e Literatura (LI- TERAR), além de membro do Instituto de Memória e Direitos Humanos da UFSC (IMDH/UFSC).
Confira.
Revista Casa Comum: Como chegamos a um cenário de democracia frágil e descredibilizada no Brasil?
Luana Heinen: Vivemos um processo mundial mais amplo de crise da democracia. Parte dessa crise decorre da dificuldade de se afirmar uma ordem de igualdade, como é a democrática, no contexto de capitalismo que produz desigualdade. No livro Democracia e Representação – Territórios em disputa, o cientista político Luis Felipe Miguel aponta as três principais dificuldades. A primeira é a “dependência estrutural”: o Estado se vê dependente dos proprietários privados sobre as decisões de investimento e os governantes precisam observar os interesses do capital a fim de garantir a manutenção de taxas elevadas de investimento econômico. Assim, a posição de força do empresariado e dos investidores tem a capacidade de definir a realidade trazendo decisões de impacto coletivo, embora não haja uma participação popular nessas decisões. Ou seja, o poder econômico define muitos dos rumos políticos. A segunda trata da “influência ‘pervasiva’ do poder econômico”. Essa restrição diz respeito às desigualdades de riqueza que permeiam todas as esferas sociais.
Por fim, a terceira dificuldade é a “socialização inadequa- da dos cidadãos para a ação política democrática”. Nas relações de produção capitalista, o trabalho assalariado coloca o indivíduo numa posição de obediência às ordens de seu empregador, submetendo aquele a uma relação vertical, completamente oposta à participação na busca de soluções e responsabilidades pelas próprias escolhas, o que se espera idealmente numa democracia. Por outro lado, somos consumidores e o consumo é visto como forma de realização individualista, o que desvaloriza formas de ações políticas coletivas.
Revista Casa Comum: E como essas dificuldades que você listou se relacionam com o contexto histórico brasileiro, um país construído à base do racismo e hierarquização?
Luana Heinen: Como um país que se originou do violento processo de colonização e de escravização, temos uma base fundante autoritária, em que a hierarquização dos sujeitos é a regra, na esteira da reprodução do racismo estrutural e do patriarcado [sistema que coloca majoritariamente homens em situação de poder e decisão]. A independência e a criação da República não adotaram medidas para atacar as desigualdades decorrentes dessas estruturas, como a Reforma Agrária. Além disso, temos uma trajetória de tutela militar da política, com uma longa ditadura no século 20, que surtiu fortes impactos na vivência dos processos democráticos. Nesse período, o uso da tortura foi institucionalizado e houve perseguição a oponentes políticos, juntamente com um Estado opaco, que não possuía transparência e controlava a cultura e a imprensa, impedindo que os cidadãos conhecessem a realidade do que se passava no país.
Revista Casa Comum: O período pós-ditadura, da criação do Estado Democrático de Direito, está relacionado, de alguma forma, com a crise da democracia atual?
Luana Heinen: Na transição da ditadura para a democracia, fomos incapazes de realizar uma justiça de transição plena. Não responsabilizamos os militares pelas violações de direitos perpetradas e crimes cometidos. Na medida em que a história da ditadura foi contada pelos próprios militares, a maioria da população pode não conhecer os meandros e problemas decorrentes desse regime autoritário, valorizando mais a ditadura do que a democracia. Além disso, não alteramos de forma profunda instituições que ainda operam com a lógica autoritária, como a polícia militar, e, também, mantivemos segregações de espaços para ricos e pobres. Essa lógica impede que todos sejam tratados como sujeitos de direitos [com direitos e obrigações garantidos por lei]; alguns têm mais direitos do que outros, o que é incompatível com a democracia.
Revista Casa Comum: Recentemente, completamos um ano dos ataques e ações de vandalismo na sede dos três poderes em Brasília. O que esse momento representou e teve de simbólico – com a destruição e depredação de espaços e objetos – e quais as consequências para a democracia no Brasil?
Luana Heinen: Os ataques de 8 de janeiro foram, sem dúvidas, uma tentativa de golpe que visava destituir o governo eleito democraticamente, portanto, um atentado contra a própria democracia. O que ocorreu, no entanto, foi que o ato não teve o apoio amplo de setores institucionais, como os militares, que poderiam ter concretizado o golpe. O poder civil agiu em tempo hábil e de forma adequada para evitá-lo. O ataque aos símbolos da democracia representou um ataque à própria política, que exige a consideração pelo outro como um adversário e, quando se perde, deve-se respeitar o resultado legítimo, tendo em vista que a principal característica formal da democracia é o respeito à alternância dos grupos no poder.
O ataque ao Supremo Tribunal Federal, por exemplo, de- monstrava que os Ministros eram vistos como inimigos que deveriam ser destruídos como em uma guerra, assim como todos aqueles que se opunham à visão política dos bolsona- ristas. As consequências são a necessidade de reconstruir as instituições, de reafirmar seu valor perante a população e de estabelecer as bases da democracia. Nesse processo, seria fundamental que os militares fossem efetivamente retirados da política no Brasil e deixassem de tutelar um processo político que deve ser civil. A democracia deve ser o espaço de conflito e discussão de ideias, em que não há lugar para o uso da força contra seus adversários.
Revista Casa Comum: Relacionando os sistemas político e econômico, é possível afirmar que há uma intenção – mesmo que, por vezes, não explícita – do neoliberalismo em desqualificar ou enfraquecer a democracia? Como esses dois conceitos conversam entre si?
Luana Heinen: As políticas econômicas neoliberais têm como receita o controle da inflação e a solidez das finanças públicas – gastar menos do que arrecada em tributos –, no lugar da política econômica do Estado de bem-estar social, que tem como objetivo garantir o pleno emprego, proteções e direitos sociais. Com o neoliberalismo, o Estado reduz cada vez mais suas políticas para garantias de direitos sociais, como saúde e educação, diminuindo investimentos e fazendo privatizações ou terceirizações, como são feitas no Brasil.
Isso gera grande instabilidade social, com consequências concretas para todos os cidadãos. Como resposta a essa instabilidade, há a reabilitação e expansão do aparato penal do Estado. O encarceramento, com raras exceções, cresceu em todas as sociedades pós-industriais do Ocidente, juntamente com a precarização do trabalho e a redução da assistência social, como afirma o sociólogo Loïc Wacquant.
“O ataque aos símbolos da democracia representou um ataque à própria política, que exige a consideração pelo outro como um adversário e, quando se perde, deve-se respeitar o resultado legítimo…”
Entre 1990 e 2020, a população carcerária no Brasil aumentou em aproximadamente 700%, enquanto a população total teve crescimento de 30%¹. Nesse mesmo período, houve a expansão de políticas públicas e programas sociais que auxiliaram na efetivação de direitos, como o Bolsa Família, o Programa Minha Casa Minha Vida e a política de aumento real do salário mínimo. No entanto, esses programas não foram suficientes para romper com a lógica hierarquizada da cidadania e, após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, aprofundaram-se as políticas neoliberais no país: a aprovação da Reforma Trabalhista, da Reforma da Previdência e a PEC [Proposta de Emenda Constitucional] do Teto de Gastos, que restringiu o investimento público em nome da austeridade fiscal.
[1] SARDINHA, Edson. População carcerária cresce seis vezes em 22 anos. Congresso em foco. 10 jan. 2014. Disponível em: bit.ly/RCC_08_13
Revista Casa Comum: E como todo esse funcionamento do neoliberalismo conversa – ou não – com a participação da população?
Luana Heinen: O neoliberalismo nega a própria política, pois se apresenta como uma forma tecnocrática de política de acordo com a qual esta não seria mais um confronto partidário ou de ideias, mas a administração neutra dos negócios. Todas as medidas são justificadas sob o ponto de vista técnico-econômico, como se não fossem escolhas políticas, mas determinações do conhecimento econômico. Um exemplo são argumentos utilizados para justificar a aprovação da Emenda Constitucional que criou o Teto de Gastos no Brasil, que tratavam de neutralidade, necessidade e imprescindibilidade do Novo Regime Fiscal. Assim, as questões políticas são reduzidas a meras questões técnicas, com as quais os especialistas lidariam, afastando as pessoas comuns da política, pois não lhes diz mais respeito.
Revista Casa Comum: Enquanto orientadora de projetos de pesquisa na UFSC, o que você e seus(suas) orientandos(as) têm aprendido sobre a relação entre autoritarismo e o neoconservadorismo e como eles, juntos, conseguem limitar a eficácia dos direitos humanos?
Luana Heinen: Desde 2017, temos estudado e trabalhado na UFSC com o tema do neoliberalismo por meio do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Sociologia do Direito. A partir dessas discussões, pudemos analisar a convergência entre neoliberalismo e neoconservadorismo. No contexto autoritário brasileiro, a aliança do neoliberalismo ao neoconservadorismo impacta a efetividade dos Direitos Humanos de diversas formas: 1) o desmantelamento do Estado de bem-estar prejudica o aproveitamento dos direitos sociais (direitos trabalhistas, previdenciários, direito à saúde e à educação – esses dois últimos principalmente pela redução de investimentos); 2) o aprofundamento da desigualdade social gera marginalidade socioeconômica e nega direitos aos marginalizados, os cidadãos de “terceira classe”, a quem resta o Estado Penal, em substituição ao Estado de bem-estar; e 3) o neoconservadorismo moral expande a esfera privada e desloca valores públicos como a igualdade e a não discriminação, restringindo direitos sexuais e reprodutivos, das mulheres e da população LGBTQIA+, dificultando, por exemplo, o acesso a métodos contraconceptivos e de planejamento familiar.
Revista Casa Comum: De que forma a sociedade civil pode atuar para que a população compreenda que a democracia é o melhor caminho para a conquista coletiva de direitos e que somente essa conquista coletiva pode possibilitar a melhoria da conjuntura atual do país?
Luana Heinen: Sem dúvidas a sociedade civil é fundamental para reconstruir a ideia de comum, de coletivo e da importância da realização da política para a conquista de direitos, especialmente porque em uma sociedade plural, não há saída fora da política. Fora da política só pode haver violência e autoritarismo. Há vários meios de fazê-lo: reorganização política nos bairros, ocupação de espaços públicos, reivindicações coletivas, fortalecimento de sindicatos e outras organizações coletivas, bem como a participação nos conselhos de políticas públicas, inclusive naqueles que estão no âmbito federal e foram reabilitados no atual governo, pois haviam sido extintos. Tudo isso é fundamental, inclusive, para exigir dos governos que, diante da pressão do poder econômico, não deixem de ouvir as demandas da população. Esse é o melhor caminho para possibilitar que as políticas públicas sejam feitas efetivamente com atenção às demandas populares.
Revista Casa Comum: E quais são as políticas públicas que podem ser criadas para promover a maior aproximação da população com as questões democráticas?
Luana Heinen: Políticas públicas de educação política desde a escola formal, mas também por outros meios de educação informal, principalmente aqueles que valorizem o aprendizado prático além da experiência e a vivência do debate político, são fundamentais para que a população valorize e compreenda a importância da democracia. Com isso, podemos, em uma longa trajetória de transformação social que depende da educação das novas gerações e, também, das atuais, construir novas bases de valorização da democracia em nosso país, bem como afirmar a responsabilidade coletiva de todos nós pela política e pela democracia, pois todos somos “políticos”, não somente os nossos representantes eleitos.
Fique por dentro
A 4ª edição da Revista Casa Comum, publicada em março de 2023, trouxe à pauta o tema Uma nova jornada pela democracia: o que está em jogo?, que contou com a participação de Sérgio Freire, psicólogo, linguista e especialista em Análise de Discurso. Em entrevista exclusiva divulgada na editoria Papo Reto, o psicólogo analisa como o Brasil chegou a um contexto de ascensão da extrema-direita, os motivos pelos quais tanta gente se associa aos discursos utilizados por ela e o futuro de um país dividido pelo conservadorismo.
>> Confira a entrevista: bit.ly/RCC_4_PapoReto