Quase lá: Desrespeito ao direito ao aborto em Portugal

Só 13% dos obstetras do Serviço Nacional de Saúde -SNS (Portugal) fazem Interrupção Voluntária da Gravidez - IVG. Profissionais objetores são 993

Duas auditorias simultâneas, do regulador e da Inspeção-Geral de Saúde, avaliaram o acesso à interrupção de gravidez no SNS. Resultado confirma investigação do DN: lei é violada em grande parte das unidades, com prazos desrespeitados em pelo menos 20% dos pedidos. Quanto aos objetores, auditorias contradizem-se: ERS diz que não há registos fiáveis, IGAS revela números.

Só 13% dos obstetras do SNS fazem IVG. Profissionais objetores são 993

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Fernanda Câncio - Diário de Notícias (Portugal)

 

Em fevereiro de 2023, havia apenas 81 médicos obstetras e ginecologistas disponíveis para realizar interrupções de gravidez nos 31 hospitais que oferecem esse serviço em Portugal continental. Menos nove que cinco anos antes, em 2018. Esta contabilidade, efetuada pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) no seu relatório sobre Acesso a Interrupção Voluntária da Gravidez no Serviço Nacional de Saúde, tornado público esta quarta-feira, leva o regulador à conclusão de que apenas "cerca de 13%" destes especialistas a exercer funções em entidades oficiais prestam este cuidado de saúde.

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Por sua vez a Inspeção Geral de Atividades em Saúde (IGAS), no "projeto de relatório" do relativo "processo de inspeção" aos estabelecimentos de saúde oficiais para "verificação do cumprimento das normas relativas à interrupção da gravidez"- ao qual o DN teve acesso -, revela que são 533 os médicos que se declaram como objetores em relação à IVG nas referidas unidades, aos quais se somam 299 enfermeiros. Calculando-se, a partir dos dados apresentados pela ERS, que os médicos especialistas em obstetrícia e ginecologia nas referidas unidades serão ao todo entre 601 e 648, poder-se-á concluir que a percentagem de objetores entre estes profissionais ultrapassará os 80%.

A estes objetores que trabalham nos hospitais continentais a IGAS soma os que assim se declararam nos Cuidados Primários de Saúde (Centros de Saúde) também do Continente: 96 médicos e 65 enfermeiros. Ao todo, os objetores à IVG no sistema público ascenderão assim a 993.

É a primeira vez em mais de uma década - desde que, na sequência da legalização da IVG, a Ordem dos Médicos publicou, em 2011, uma contabilidade sobre objetores a ela atinentes, na qual apontava 407 especialistas de ginecologia e obstetrícia nessa situação, aos quais se somavam 934 clínicos de medicina geral - que se conhecem números "oficiais" sobre a dimensão da objeção de consciência quanto a este ato clínico na classe médica.

Recorde-se que o DN, face ao resultado da investigação que publicou ao longo de fevereiro sobre as dificuldades de acesso à IVG no SNS que evidenciaram violação da lei - quer por incumprimento de prazos, quer por não conformação com as normas existentes para o "circuito" e procedimentos - questionou repetidamente o ministério da Saúde, a Direção-Geral de Saúde e as ordens dos Médicos e Enfermeiros sobre o número de profissionais de saúde objetores nas unidades públicas em Portugal.

A única resposta veio da Ordem dos Enfermeiros: esta, que desde 2017 tem um regulamento específico que obriga estes profissionais a comunicar-lhe a objeção, informou o DN que entre 2016 e maio de 2022 tinha apenas recebido 53 declarações relativas à IVG. Quanto à Ordem dos Médicos, o respetivo bastonário, Carlos Cortes, sublinha que desde 2016 o Código Deontológico deixou de obrigar os clínicos a comunicar a declaração de objeção à Ordem - passou a "opcional". "Não vejo interesse em termos essa lista", disse ao DN. "A objeção tem de ser transmitida à direção clínica do estabelecimento, o que interessa é a instituição saber. O ministério da Saúde é que deve ter essa lista."

IGAS apresenta informação que a ERS diz que não existe

O ministério não tinha - e descobrir o número de objetores de consciência para a IVG, que constitui, como vários estudos nacionais e internacionais demonstram, um dos motivos para os constrangimentos no acesso a este cuidado de saúde, era precisamente um dos objetivos destes dois processos de "monitorização" levados a cabo pela ERS e pela IGAS. Isso mesmo foi admitido pelos representantes dos dois organismos nas audições parlamentares que, a pedido de vários partidos, decorreram em abril e maio.

Audições no âmbito das quais o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, certificou o seu desconhecimento prévio dos problemas de acesso documentados pelo DN, mas assegurou que estes se resolveriam "em semanas". Até ao momento, no entanto, não foi anunciada qualquer mudança nesse sentido, e os relatórios da ERS e da IGAS, que permitem uma avaliação oficial da situação, tendo sido anunciados para abril/maio, só no final de agosto ficaram prontos.

Com a agravante de as contas apresentadas pela ERS e pela IGAS não baterem certo: se apenas 13% dos médicos especialistas nas unidades hospitalares, como indica a ERS, efetuam IVG, o número de objetores no sistema hospitalar público deveria rasar os 87%.

A discrepância de resto não se atém a um problema de números: malgrado as duas auditorias terem sido efetuadas na mesma altura e incidirem sobre a mesma realidade e as mesmas instituições de saúde, a ERS assevera ter concluído, "das respostas remetidas pelos prestadores" , pela "inexistência" - em violação do que a lei impõe - de "um registo completo e atualizado de todos os profissionais de saúde objetores de consciência, tanto nos cuidados hospitalares como nos cuidados primários", e decorrentemente "a impossibilidade de estabelecer uma relação entre a disponibilidade de médicos não objetores de consciência com contrato de trabalho e a capacidade de resposta em matéria de IVG." Daí que tenha optado por "analisar o número de médicos especialistas a realizar IVG".

Ainda de acordo com a ERS, "em muitos casos não foi possível aos prestadores apurar com exatidão esta realidade para cada um dos anos solicitados, tendo sido reportado à ERS que esta informação não se encontrava disponível ou atualizada"; foram até detetadas situações, nomeadamente nos ACES (agrupamentos de centros de saúde), de desconhecimento da "obrigação da formalização da objeção de consciência mediante declaração a efetuar pelos seus profissionais de saúde".

Esta obrigação está desde 2007 estabelecida em portaria pela DGS: "A objeção de consciência prevista no artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril [a lei que descriminaliza a IVG até às 10 semanas por vontade da mulher], é manifestada em documento assinado pelo objetor". Este documento deve ser apresentado "ao diretor clínico, ao diretor de enfermagem ou ao responsável clínico do estabelecimento de saúde oficial, hospitalar ou de cuidados de saúde primários, ou oficialmente reconhecido, conforme o caso, onde o objetor preste serviço". Certo é que, como se constata, o Estado nunca se tinha preocupado em saber quantos objetores estão ao seu serviço - e a que ponto o respetivo número coloca em causa o direito à saúde das mulheres que decidem interromper a gravidez.

Ao contrário da ERS, a IGAS não faz referência a qualquer problema nesta matéria, apresentando até uma contabilidade de objetores unidade a unidade, tanto no que respeita aos hospitais como aos centros de saúde (sempre só no Continente) - nos quais haverá, como já referido, 96 médicos e 65 enfermeiros nessa situação.

Mas quer se atente aos dados da IGAS quer aos da ERS, Portugal surge numa situação ainda mais grave que a Itália, país cuja percentagem de médicos objetores - 70% nos obstetras e 51% nos anestesistas, contabilidade estatal de 2016 -, implicando que mais de 35% dos hospitais não efetuam IVG (em Portugal são 30%), o levou a ser por duas vezes condenado pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais, por este concluir que viola o direito à saúde das mulheres.

Em 20% dos casos prazo máximo para consulta é excedido

A dimensão da objeção de consciência entre os profissionais de saúde, e nomeadamente nos médicos, leva por exemplo a que na zona mais populosa do país - Lisboa e Vale do Tejo - onde ocorre a maioria das IVG contabilizadas, o rácio de médicos por mil consultas prévias (aquelas que têm de ocorrer no máximo cinco dias após o contacto da mulher com o SNS e no mínimo, pela imposição do "período de reflexão", três dias antes da interrupção) tenha sido de 2,7 em 2022.

A exiguidade do número de profissionais disponíveis, assim como diversas anomalias diagnosticadas pela ERS nos procedimentos, levarão também ao ultrapassar do prazo máximo (cinco dias) entre o contacto com o SNS e a consulta prévia em 20% dos casos - o que representa uma subida face aos anos anteriores (foi 13% em 2018/19 e 15% em 2020/21).

É a primeira vez que esta contabilidade é apresentada publicamente - os relatórios da Direção Geral de Saúde sobre IVG nunca a deram a conhecer - e, apesar de a média nacional constante nos dois relatórios ser inferior a cinco dias, há hospitais nos quais, de acordo com a ERS, chega quase ao triplo.

Estas violações expressas do disposto na lei são tanto mais significativas quando os dados apresentados pela ERS (como os da IGAS) correspondem à resposta dada pelos serviços de saúde a questionários que lhes foram enviados. Querendo isto dizer que não resultam de uma verdadeira atividade inspetiva independente, dependendo assim da lisura de cada unidade.

A situação mais grave é, de acordo com estes dados, no Centro do país: em 2022 foram 40% os casos de prazo excedido. Logo a seguir vem o Algarve com 39% e o Norte com 38%. Lisboa e Vale do Tejo é a região a pontuar melhor - 8% - provavelmente devido ao facto de aí se localizarem as duas unidades privadas de saúde (Clínica dos Arcos e SAMS) onde se efetua IVG.

Recorde-se que na investigação efetuada pelo DN um dos grandes entraves sentidos pelas mulheres - verificado pelo próprio jornal ao contactar os hospitais assumindo o papel de uma mulher que procurava ser atendida - é na marcação da primeira consulta, tendo havido casos em que o tempo de espera excedia duas semanas.

Por outro lado, se entre a consulta prévia e o procedimento é suposto decorrerem, em média, três dias - o "período de reflexão" - há unidades em que esse período é em média de mais de 10 dias. Caso do Hospital de Braga, diz o relatório da IGAS, no qual foi em 2022 de 12 dias.

Acresce que há unidades que não têm sequer essa contabilidade: "Dos 38 estabelecimentos de saúde de cuidados hospitalares [continentais], nove deles informaram não dispor de informação relativa ao tempo médio decorrido entre a realização da consulta prévia e o procedimento de interrupção da gravidez para o período 2020-2022, sendo que neste último ano, o menor tempo médio cifrou-se em dois dias e o maior em 15 dias", lê-se no relatório da IGAS.

Quer a ERS quer a IGAS identificaram inúmeras violações da lei no que se refere quer aos "circuitos" estabelecidos para atendimento e referenciação das mulheres, quando ela é necessária, para outras unidades de saúde, quer à informação disponibilizada publicamente e à sua acessibilidade, constatando-se que há hospitais que não têm nem um número específico de contacto para IVG (algo que o DN já tinha assinalado nos trabalhos publicados) nem, como a lei impõe, um responsável para os assuntos respeitantes à interrupção da gravidez - o qual tem a função de "contactar com a DGS e com a ARS territorialmente competente".

"Dos 38 estabelecimentos de saúde oficiais de cuidados de saúde hospitalares, sete não divulgaram ao público a existência de uma linha telefónica específica, ou outro meio de contacto, no âmbito da consulta da interrupção da gravidez, e desses, três informaram que tal não lhes era aplicável. (...) Dos onze estabelecimentos de saúde oficiais de cuidados de saúde hospitalares que não realizam interrupções da gravidez no próprio estabelecimento, apenas quatro divulgaram essa informação ao público, nomeadamente através de folheto ou afixação em placard", informa a IGAS.

Estes factos confirmam o sentimento de "corrida de obstáculos" que várias mulheres disseram ao DN terem experienciado ao tentar aceder à IVG no SNS. Houve mesmo uma, Maria, 27 anos, residente em Almada que comentou, ao saber que a lei lhe garantia um prazo máximo para o "circuito" todo, entre o primeiro contacto com o SNS e o procedimento: "Não sabia que não era suposto ser isto. A ideia com que fiquei é que era mesmo pensado para dificultar, para haver menos abortos."

Panorama que leva a ERS a concluir: "considerando as evidências recolhidas, à luz do enquadramento normativo vigente e das atribuições regulatórias da ERS, será garantida a necessária atuação regulatória junto dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde primários e hospitalares para salvaguarda do acesso à realização da IVG, promovendo-se a implementação dos procedimentos ínsitos à salvaguarda da tempestividade, integração e regularidade da prestação de cuidados de saúde em causa."

Traduzindo: a ERS vai, como já fez várias vezes de 2015 a 2022 - tendo instaurado e decidido oito processos de inquérito "relacionados com constrangimentos no acesso a realização de IVG, que resultaram na emissão de instruções e recomendações aos prestadores de cuidados de saúde visados" - obrigar as unidades de saúde em falta a regularizar procedimentos de acordo com a lei e de modo a que o acesso ao aborto decorra como é suposto, dentro dos prazos e respeitando o direito à saúde das mulheres..

Informa igualmente que "até ao dia 26 de julho de 2023 existiam 11 reclamações classificadas com a categoria "Restrição à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)", três com data de ocorrência de 2022 e oito relativas ao ano de 2023, com a grande maioria das reclamações a visar estabelecimentos de saúde localizados na região de saúde de Lisboa e Vale do Tejo".

Falta agora perceber que ações irá o ministério levar a cabo para "resolver" esta situação, que em fevereiro, refira-se novamente, Manuel Pizarro garantiu ser solucionável "em semanas".

fonte: https://www.dn.pt/sociedade/so-13-dos-obstetras-do-sns-fazem-ivg-profissionais-objetores-sao-993--17019485.html

 

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