Quase lá: O reconhecimento às “autossociobiografias” de Annie Ernaux

Escritora francesa foi escolhida para o Nobel de Literatura no último dia 7. Ela é apenas a 17ª mulher a receber o prêmio

  Publicado: 14/10/2022
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Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Wikimedia Commons

O reconhecimento às "autossociobiografias" de Annie Ernaux

Escritora francesa foi escolhida para o Nobel de Literatura no último dia 7. Ela é apenas a 17ª mulher a receber o prêmio
  Publicado: 14/10/2022

Texto: Duda Ventura

Arte: Guilherme Castro

“Coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal.” Foi com essas palavras que a Academia de Artes Sueca justificou sua escolha para a ganhadora do Nobel de Literatura deste ano, divulgada no última dia 7. Desta vez, Estocolmo não chocou os puristas, como fez quando indicou Bob Dylan, nem colocou uma interrogação nos menos avisados, ao eleger nomes que fugiam do conhecimento geral. Há meio século Annie Ernaux vem pavimentando seu caminho literário com textos incisivos, de fortes matizes autobiográficos.

Responsável por títulos como Os AnosO Lugar e O Acontecimento, publicados no Brasil pela editora estreante Fósforo, a francesa de 82 anos é conhecida por seus trabalhos baseados em sua própria vida. Nas palavras da autora, seus livros são “autossociobiografias”, ou seja, retratam histórias que ela viveu, contadas pela própria, mas abordando reflexões sobre o contexto social e histórico em que estão inseridas. Além do título de vencedora, ela leva para casa 10 milhões de coroas suecas, o que, na conversão atual, equivale a cerca de R$ 4,8 milhões.

Para o público brasileiro, há a chance de conhecê-la pessoalmente: Annie Ernaux é presença confirmada na Festa Literária Internacional de Paraty, que ocorrerá em novembro deste ano. Sua nova obra, O Filho, será lançada na FLIP.


O prêmio sueco é criticado por privilegiar homens brancos e europeus em suas láureas - Foto: Reprodução/Instagram oficial do prêmio Nobel
 

Denúncias de abusos e assédios realizados pelo fotógrafo e diretor artístico francês Jean-Claude Arnault levaram ao adiamento do Prêmio Nobel de Literatura de 2018 em um contexto de pressão política do movimento #MeToo. As 18 mulheres anônimas que o denunciaram ao jornal sueco Dagens Nyheter alegaram que sofreram as agressões nas dependências da instituição que concede o prêmio.

Pelo vínculo que o artista condenado a dois anos de prisão por estupro tinha com a academia, a Fundação Nobel postergou a entrega do prêmio naquele ano. A premiação não era adiada desde 1949, e 2018 foi a 14ª vez em que o adiamento ou cancelamento da cerimônia ocorreu. Apenas em 2019 o Nobel de Literatura do ano anterior foi entregue a Olga Tokrczuk, juntamente com o de Peter Handke, vencedor daquele ano. 

Annie Ernaux é a 17ª mulher a ganhar o Nobel de Literatura. Abrangendo todas as categorias do prêmio  Química, Física, Economia, Medicina, Paz e Literatura , dos 947 vencedores, apenas 60 são mulheres. 

Segundo a professora do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo., a abordagem feminista das obras de Ernaux é um dos pontos que podem ter levado ao prêmio: “Ela aborda a exploração e sexualização da mulher de maneira sensível para várias gerações”. 

Temas considerados tabus, como a realização de abortos ilegais, a erotização e os relacionamentos entre mulheres mais velhas que seus parceiros, são abordados pela escritora de maneira pluralista e inovadora, afirma Claudia. 

A autora iniciou sua carreira na literatura em 1974. Porém, foi apenas com seu quarto livro, O Lugar, que passou a ser reconhecida. “Em outros países, como na própria França, os chamados estudos de gênero são uma realidade nas universidades”, explica a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Eurídice Figueiredo. “Isso justifica o interesse que muitos alunos têm por estudar autoras feministas, como Annie.” 


O movimento feminista nas últimas décadas pressiona a organização do prêmio por mais representatividade -Foto: Galiza Contrainfo/Flickr
 
Claudia Amigo Pino - Foto: Arquivo pessoal
Claudia Amigo Pino - Foto: Arquivo pessoal

Quando questionada sobre a diferença entre a autora e outros vencedores franceses, Claudia Pino, da FFLCH, brinca: “É muito simples, todos os outros são homens”. 

A literatura francesa
 

A França coleciona o maior número de Prêmios Nobel de Literatura: com Annie, são 16. Ela é a única mulher. “O cânone francês é extraordinariamente machista”, diz a professora da USP.

Desde o início das cerimônias suecas, em 1901, os franceses já despontavam no universo dos livros: o primeiro vencedor foi o parisiense Sully Prudhomme.

“Os temas abordados na literatura são masculinos, a crítica é historicamente masculina, e Ernaux desafia isso.”

Claudia explica que os livros franceses têm um enorme peso internacional pela intensa política de Estado de incentivo à produção livreira. “Desde o período do Renascimento, os franceses apostam em um movimento de se colocarem como os ‘herdeiros da tradição greco-romana’ na literatura. E o mundo se convenceu de que é verdade.” 

As características temáticas dessas obras também, segundo a professora, colaboram para que elas sejam tão apreciadas pela academia: “Diferentemente do que acontece no Brasil, onde sempre focamos nas especificidades e detalhes únicos, na França, eles são muito generalistas”. 

Annie Ernaux faz parte desse grupo de artistas que abordam sentimentos e situações comuns a várias pessoas ― o livro Os Anos, por exemplo, publicado em 2021 no Brasil, narra a maior parte da história na primeira pessoa do plural, “nós”. 

 
Eurídice Figueiredo - Foto: Reprodução/Youtube
Eurídice Figueiredo - Foto: Reprodução/Youtube
 

Ao mesmo tempo em que celebra a vitória de Annie Ernaux, a professora da FFLCH alerta para as polêmicas envolvendo o Nobel: “O prêmio é, além de machista, majoritariamente branco. Existem várias autoras negras geniais na França que mereciam muito ganhar, mas não têm espaço”.   

Uma autora entre a realidade e a ficção

Apenas 17 mulheres ganharam o Prêmio Nobel de Literatura. Annie Ernaux é a mais recente em recebê-lo - Foto: Catherine Hélie/Gallimard
“Ao escrever, caminha-se no limite entre reconstruir um modo de vida em geral tratado como inferior e denunciar a condição alienante que o acompanha.” – O Lugar
 

“O verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.” – O Acontecimento

“Há cinco anos, passei uma noite inapropriada com um jovem estudante que vinha me escrevendo havia um ano e que queria me encontrar. Muitas vezes fiz amor para me obrigar a escrever. Queria encontrar, na sensação de cansaço e desamparo de depois, motivos para não esperar mais nada da vida. Nutria a esperança de que, ao fim da espera mais violenta de todas, a de um orgasmo, eu pudesse ter certeza de que não havia orgasmo mais intenso que a escrita de um livro. Talvez tenha sido o desejo de desencadear o processo de escrita de um livro – o que eu hesitava em fazer por conta de sua dimensão – que me levou a convidar A. para tomar uma taça de vinho na minha casa, depois de termos jantado num restaurante onde ele permanecera, por timidez, praticamente o tempo todo mudo. Ele tinha quase trinta anos a menos que eu.” – O Filho (novo livro, a ser lançado na FLIP)

 

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