Quase lá: Mulheres, negras e (ainda mais) perigosas

A discussão sobre o binômio mulher negra e intelectualidade pode ser aprofundada.

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

  Publicado: 28/11/2022

É aquela história, “ela é pretinha, mas é inteligente”.
Lélia Gonzalez

Na visita de Angela Davis ao Brasil, em 2019, a Professora Emérita do Departamento de Estudos Feministas da Universidade da Califórnia e ex-Pantera Negra questionou sobre seu papel como referência para o feminismo negro em nosso país, isto porque, em mais de uma vez, ela declarou que aprendeu muito com escritoras, tais como, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro, entre outras. Em sua mensagem, numa primeira visada, Davis trouxe à cena os nomes e o trabalho de mulheres intelectuais que forneceram subsídios para a abordagem dos recortes raciais e de gênero na realidade nacional. Mas, também, colocou às gerações mais novas a força e a resistência do pensamento brasileiro dedicado às reflexões sobre as condições de vida de mulheres e homens negros.

A densidade do recado de Davis é entendida, quando se observam os movimentos da última década, nos quais os holofotes direcionam-se à luta afro-americana contra as injustiças raciais e de gênero – algo que se convencionou chamar-se de wokismo (neologismo vindo de woke = acordado, consciente), designando determinada política progressista voltada ao gênero, especialmente aos direitos trans. A partir do emprego das redes sociais, acusações de abusos, envolvendo celebridades, vídeos de assassinatos de homens negros e as mais diversas denúncias de discriminação motivaram manifestações de rua e multiplicaram os discursos que interpelam o supremacismo branco e o patriarcado. Simultaneamente, os setores conservadores usam o wokismo em tom pejorativo, enfatizando, sobretudo, a incapacidade de relativismo e a “prática do cancelamento”. Mas é fato que o uso da palavra se popularizou, particularmente a partir do movimento Black Lives Matter.

Naquela ocasião, a pauta antirracista, capitaneada pelos EUA – evocam-se, por exemplo, o assassinato de George Floyd e os consequentes protestos nas cidades estadunidenses e, depois espalhados por outros países –, tornou-se fenômeno internacional. A impressão era a de que a sociedade civil, realmente, teria sido despertada para esses temas. Aos mais jovens parecia que, no Brasil, a resistência negra teria “perdido o trem da História”, ou ainda, que a questão racial nunca tivesse sido pauta de reivindicações no País. O debate superficial nas redes sociais, de certo modo, aceitava essa equivocada concepção. Com algumas exceções, escritores estrangeiros foram priorizados no debate universitário e nos fóruns de discussão. Quando Davis evidencia os nomes de Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, ela confirma à “militância das redes sociais” a relevância dessas intelectuais.

Ao mesmo tempo, uma série de exposições documentais e de artes visuais resgata o histórico dessa resistência, entre elas, Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros (Instituto Moreira Salles, 2021), Memória da Resistência (Solar da Marquesa – Museu da Cidade, 2021) e Memórias do futuro: cidadania negra, antirracismo e resistência (Memorial da Resistência, 2022). Essas três exposições confirmam que a reflexão sobre racismo e equidade no País foi central na produção dessas autoras que pensaram as demandas políticas, econômicas e sociais a partir das especificidades nacionais. As exposições mostram ainda o lugar dessas mulheres negras na construção de um discurso de resistência no contexto atual – particularmente dando suporte às novas práticas.

Mas quem são essas autoras mulheres? Elas são muitas, mas aqui destacamos algumas delas. Infelizmente, declinamos de nomes relevantes, tais como, Carolina Maria de Jesus (essa merece um artigo especial – promessa para outras reflexões), Luiza Mahin, Antonieta de Barros, Thereza Santos, Alzira Rufino, Inaicyra Falcão dos Santos, entre tantas outras. Não daríamos conta de discutir a contribuição dessas autoras no espaço reduzido deste artigo. Vale ainda, nesse ponto, a menção de que os modos estruturais que o sexismo e o racismo atuam no nosso país colaboram para a invisibilidade do pensamento de mulheres negras no campo intelectual. Elegemos, então, algumas vozes transgressoras de intelectuais negras brasileiras, que, acima de tudo, debruçaram-se sobre o mote da mulher negra como agente de produção intelectual.

Sendo assim, iniciamos nossa abordagem pelo pensamento de Lélia Gonzalez, especialmente desvelando a frase “ela é pretinha, mas é inteligente”. Gonzalez, filósofa, antropóloga, professora, feminista, fundadora e militante do Movimento Negro Unificado (MNU), tem atuação decisiva na luta contra o racismo estrutural e na articulação das relações entre gênero e raça. Uma das suas obras mais reconhecidas é Lugar de negro, publicado em 1982 (em coautoria com Carlos Hasenbalg). Em outros trabalhos, ela, sobretudo, construiu redes para pensar a diáspora. Em sua obra, Gonzalez descortina o imaginário social que associa as mulheres negras à mulata, doméstica ou mãe preta. A intelectualidade seria um espaço marcado socialmente como branco, masculino, eurocêntrico e, que historicamente, nos negou a autoridade dos saberes ancestrais. Por essa razão, surge a falsa contraposição entre o corpo racializado e o intelecto das mulheres negras. Desse modo, estereótipos sexistas e racistas imprimiram na consciência coletiva aspectos de sujeição e objetificação sexual da mulher negra.

A discussão sobre o binômio mulher negra e intelectualidade pode ser aprofundada, trazendo ao debate as ideias de Beatriz Nascimento, historiadora, professora, roteirista, poeta e ativista pelos direitos humanos. No percurso da autora, militância e vida acadêmica são inseparáveis. Prova disso é seu papel fundamental na fundação do Grupo de Trabalho André Rebouças na Universidade Federal Fluminense, universidade onde, em 1981, concluiu a pós-graduação em História do Brasil. Ela também foi presença fulcral na retomada dos movimentos sociais negros organizados, mantendo vínculo com o MNU. Seu trabalho mais conhecido é o documentário Ori (palavra yorubá que se relaciona à mente, inteligência e alma), lançado em 1989. Nesse documentário, a investigação resgata movimentos da resistência negra no Brasil entre 1977 e 1988. Em perspectiva, as pesquisas de Nascimento abordam a formação dos quilombos no Brasil. É célebre sua frase: “A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou”. Autora fundamental para a construção do feminismo negro, ao pautar a condição subalterna das mulheres negras e as dificuldades de mobilidade social destas, como resquícios do racismo estrutural. Além disso, ela dirigiu seu olhar aguçado ao espaço escolar, sobre o qual destaca-se a solidão das crianças negras.

Filósofa, escritora e ativista do movimento social negro brasileiro, Sueli Carneiro é doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo e fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, sendo considerada uma das mais relevantes pensadoras do feminismo negro no Brasil (inclusive, é a homenageada pelo Ilú Obá de Min no ano de 2023 e sua entrevista com Mano Brown, no podcast Mano a Mano é uma das mais compartilhadas de uma famosa plataforma de streaming). Uma de suas primeiras publicações é Mulher negra: política governamental e a mulher (em autoria com Thereza Santos e Albertina de Oliveira Costa), escrita em 1985. Na abordagem que foca os estudos de gênero, sua produção dialoga com Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento. Carneiro situa historicamente o movimento feminista brasileiro, denunciando a visão eurocêntrica do movimento e o caráter universalizante da categoria mulher. Para ela, esses dois aspectos não permitem o reconhecimento de diferenças e desigualdades presentes no universo feminino – o que causa um silenciamento de vozes de mulheres que sofrem outras formas de opressão para além do sexismo. Sua proposta está ligada à necessidade de enegrecer o feminismo e observar a trajetória específica da experiência histórica nacional para as mulheres brancas e negras. Ela também aponta para a tentativa de apagamento dos saberes dos povos colonizados, com ênfase nas mulheres negras, por serem parte do segmento mais oprimido dessa população.

Ao voltarmos nossas atenções para essas autoras e suas contribuições para o pensamento das condições brasileiras, o que se tem é um reposicionamento das mulheres negras na academia e na sociedade. Essas autoras estão sendo lidas e suas ideias ganharam a arena dos debates atuais com bastante densidade. No campo das artes, uma nova geração de mulheres desponta. Já tratamos da potência dos trabalhos das artistas e pesquisadoras Rosana Paulino, Renata Felinto e Janaína Barros, no artigo Mulheres, negras e perigosas, publicado no Jornal da USP, em 2017. Cada qual ao seu modo acrescenta novos atributos ao contexto atual; elas estão abrindo caminhos para uma nova geração de jovens negras e negros que querem reconhecer seus corpos, suas histórias e representações na arte brasileira. Elas tomaram para si temas e linguagens que expressam suas vidas, mas também as vivências de suas avós, mães e irmãs – tornam-se as vozes de quem sempre foi silenciado e amplificam as reivindicações das que chegam agora.

Também evocamos aqui os trabalhos de Renata Bittencourt, Diane Lima e Fabiana Lopes, pesquisadoras e curadoras – intelectuais negras que operam no sistema da arte nacional e internacional; elas, de certo modo, legitimam uma produção artística que questiona os parâmetros eurocêntricos da arte contemporânea; que repensa uma realidade social em crise e que reflete sobre as relações sociais e culturais assimétricas ao longo da história.

Renata Bittencourt, doutora em História da Arte pela Unicamp, atualmente, coordena o Educativo do Instituto Moreira Salles – IMS, tendo desempenhado, ao longo de sua trajetória, importante papel como gestora cultural nos setores público e privado; ela também se destaca pela criação e gerenciamento de projetos culturais diversos. Nesse momento difícil de conservadorismo e preconceito desvelado, Bittencourt tem apoiado com firmeza os programas e as ações inclusivas do IMS, em especial mobilizando o circuito das instituições de São Paulo nesse ponto de inflexão.
Radicada em Nova York e São Paulo, Fabiana Lopes é curadora independente e desempenha pesquisa ligada aos Estudos da Performance na Universidade de Nova York, com bolsa do Corrigan Fellowship Program. Há algum tempo, Lopes tem interesse pela produção artística da América Latina e pela investigação dedicada à produção de artistas negros no Brasil. Sua atuação tem refletido e inserido muitos artistas brasileiros no circuito internacional.

E, em tempo, colocamos nessa lista Diane Lima, curadora independente, crítica e pesquisadora, com mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Sua ação consiste em experimentar práticas curatoriais contemporâneas em perspectiva decolonial. O trabalho de Lima tem sido vigiado de perto pela crítica brasileira ávida por ver sua atuação na próxima Bienal de São Paulo.

Em síntese, ao pensar a intelectual negra, a partir dessas trajetórias e narrativas, percebemos o nível de insubordinação de cada uma dessas mulheres – geração após geração; elas derrubam barreiras, apoiadas pelas que vieram antes e abrindo espaços para as que as sucederão. Elas nos ensinam sobre as novas facetas do que é ser mulher, negra e intelectual no Brasil. E, sobretudo, nos lembram que a intelectualidade pode ser encarada como responsabilidade para si e para com os outros, a partir da produção de conhecimentos. De tudo isso, Angela Davis estava certa – há muito o que aprender com essas intelectuais brasileiras.

 

fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/alecsandra-matias-de-oliveira/mulheres-negras-e-ainda-mais-perigosas/


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