Alterar ditames constitucionais dos povos indígenas significará a supressão dos direitos conquistados durante a Assembleia Constituinte
Líderes de cerca de 200 povos indígenas participam, desde segunda-feira, do 19º Acampamento Terra Livre (ATL), na Esplanada dos Ministérios. O tema deste ano é Demarcação de Terras, Futuro e Democracia. Em quase 35 anos, desde a promulgação da Constituição de 1988, os sucessivos governos não cumpriram o prazo fixado de cinco anos para a demarcação das terras indígenas do país. A definição e fiscalização desses territórios pelos órgãos públicos encarregados de preservar o patrimônio natural do país têm sido postergados e negligenciados. Não à toa, invasões e violência contra as comunidades originárias são constantes.
Em mais de 30 anos, foram demarcadas e homologadas só 487 das 725 terras indígenas. Outras 600 encontram-se sem nenhuma providência. A maioria das terras está na Amazônia Legal. No total, as áreas ocupam 13,8% do território nacional e abrigam em torno de 1,6 milhão de indígenas, segundo estimativa do Censo, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mesmo período, o desmatamento nessas áreas totalizaram 1,6%, o que reforça o entendimento de que os povos originários são guardiões do meio ambiente. Mas tanto as terras legalizadas ou em processo de demarcação estão ameaçadas pelas invasões de garimpeiros e grileiros.
Hoje, o crime organizado chegou às aldeias, dizimando os grupos, como ficou constatado nas terras indígena Kayapó e Munduruku, no Pará, e Yanomami, em Roraima — áreas mais afetadas pelo garimpo criminoso. Em 35 anos, a mineração ilegal na Amazônia Legal passou de 7,45 km² para 102,16 km², aumento de 1.217%. Além das vidas indígenas perdidas, o Estado tem sido leniente com os predadores do patrimônio natural. Perdas de valor incalculável.
Mas não só isso motiva a mobilização dos líderes indígenas em Brasília. Eles querem que o governo acelere a demarcação das terras indígenas, a fim de que haja "futuro" para suas comunidades". No Congresso Nacional tramitam mais de 100 projetos que impactam negativamente os direitos dos povos originários. Um deles trata da revisão do Estatuto dos Povos Indígenas, que abre as reservas à mineração, apesar de todos os danos que a atividade causa ao meio ambiente e, sobretudo, à vida dos indígenas. Os líderes têm enorme preocupação com o PL 490. Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizadora do acampamento, a proposição equivale a uma "tentativa de genocídio", pois inviabilizaria a demarcação das terras dos povos originários, por incorporar a tese do marco temporal.
O marco temporal é uma tese de um grupo de juristas, sob apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento da tese foi suspenso em setembro de 2021, e será retomado em junho próximo pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ela foi construída a partir do embate entre o governo de Santa Catarina e o povo Xokleng por uma área da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ. Os autores da tese defendem que os indígenas só teriam direito às terras que ocupavam quando da promulgação da Constituição de 1988.
Se aceita pela Alta Corte e aprovado pelo Congresso, haverá uma radical mudança na política de demarcação das terras indígenas. As comunidades originárias terão de provar que ocupavam a área antes da promulgação da Carta Magna, em 5 de outubro de 1988. Uma lógica considerada perversa, uma vez que a presença dos povos indígenas foi constatada pelos colonizadores nos primeiros anos do século 16 e muitos grupos foram forçados a se deslocar dos seus territórios.
Alterar ditames constitucionais dos povos indígenas significará a supressão dos direitos conquistados por eles durante a Assembleia Constituinte, o mais expressivo marco da redemocratização do país. Como guardiões das florestas, eles prestam um serviço ambiental ao Brasil e ao mundo. Suprimir seus direitos, sinaliza às parcelas minoritárias da sociedade que elas estão excluídas do princípio de que todos os brasileiros são iguais perante a lei, abrindo brechas a todas as formas de segregação incompatíveis com valores civilizatórios e democráticos do país.