Sônia Guajajara, ministra dos Povos, analisa as novas ameaças aos povos indígenas e propõe: é hora de incluí-los nas decisões nacionais. Barrar o Marco Temporal e articular forças democráticas para enfrentar a Bancada Ruralista serão cruciais
Publicado 10/07/2023 às 17:06
Sônia Guajajara em entrevista a Daniel Camargos, na Repórter Brasil
As operações para expulsar invasores da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, já retiraram 82% dos garimpeiros. Entretanto, os que permanecem no local são os mais perigosos, pois estão ligados ao narcotráfico e ao crime organizado, afirma a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, em entrevista exclusiva à Repórter Brasil.
Logo nos primeiros dias à frente da pasta, ela encarou o desafio de reverter a tragédia humanitária dos Yanomami. Sem assistência básica, ao menos 570 crianças e adultos morreram de causas evitáveis, como desnutrição, pneumonia e malária.
Primeira ministra indígena do Brasil, Sonia Guajajara tem longa trajetória de militância em organizações de defesa dos povos originários.
Ao longo dos seis meses de governo, Guajajara tem lidado com disputas corriqueiras com a bancada ruralista. Os parlamentares ligados ao agronegócio já impuseram derrotas ao seu ministério, como a aprovação do Projeto de Lei (PL) 490, na Câmara dos Deputados.
“Além de estabelecer o 5 de outubro de 1988 como a data base para reconhecimento de territórios indígenas, que é o ‘marco temporal’, esse projeto de lei também prevê a transferência da demarcação de terras indígenas do Executivo para o Legislativo”, explica Sonia. “É um retrocesso absurdo”.
Apesar dos obstáculos, a ministra se diz feliz no cargo, por considerar a criação do ministério o início de uma “reparação histórica”.
Confira abaixo a entrevista.
Qual é o balanço que a senhora faz até agora da operação no território Yanomami?
São várias frentes de trabalho. Tem a questão da saúde, com contratação de equipes, que garantiu o atendimento emergencial. Também fizemos uma reabilitação nutricional. Em três meses, a gente já conseguiu ver alguma mudança. Instalamos um hospital dentro do território Yanomami para garantir os primeiros atendimentos. A Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) continua fazendo essas ações de distribuir alimento.
E retirada dos garimpeiros?
Dados do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis) e da Polícia Federal comprovam que já conseguimos retirar 82% dos garimpeiros. Junho foi um mês que não teve nenhum alerta de novo garimpo. Agora nessa fase final tem uma situação bem mais violenta e perigosa. Tem aquelas pessoas que resistem em sair do território, se escondem, e estão provocando conflitos. No início, quando anunciou que iria começar a retirada, muita gente saiu livremente. Outros saíram com as operações.
Mas agora precisa de uma força de segurança maior. Segundo informações das próprias lideranças, são pessoas ligadas ao narcotráfico e ao crime organizado, que querem ficar ali e realmente estão provocando conflitos de indígenas com indígenas, para fazer de conta que são problemas internos.
Mas na verdade é uma consequência do garimpo ainda. Agora, o Exército entrou também para fazer esse combate e ações de repressão e de apreensão. Estamos acreditando que até o final do ano a gente consiga retirar todos os invasores.
Como foi assumir depois de quatro anos de governo Bolsonaro e dois anos de governo Temer?
É um cenário de terra arrasada. Para além do déficit orçamentário, também tem um déficit de recursos humanos. A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) hoje tem mais cargos vazios do que cargos ocupados. A Funai trabalha hoje com 1.300 servidores para atender o Brasil todo. São 39 coordenações regionais – algumas delas têm oito pessoas.
No ano passado, a Repórter Brasil fez uma reportagem mostrando que o ouro das terras indígenas Yanomami, Munduruku e Kayapó é vendido para refinarias que, por sua vez, revendem para as maiores empresas do mundo, como Apple, Google, Microsoft e Amazon. O que o governo pode fazer?
O próprio presidente Lula tem falado em combater o garimpo ilegal e não permitir a mineração nas terras indígenas. O presidente Lula fez, a pedido do Ministério dos Povos Indígenas, um despacho pedindo ao Congresso Nacional para retirar o Projeto de Lei 191 [que autoriza a mineração em terras indígenas], que foi uma medida apresentada pelo [ex-presidente Jair] Bolsonaro. Foi retirado da pauta nesta semana.
Na aprovação do PL 490 na Câmara, faltou vontade política do governo?
Não faltou de forma alguma essa articulação do governo, porque já estão dados os números do Congresso Nacional. E a correlação de forças ali é muito desigual no que diz respeito à questão territorial. A bancada ruralista e seus aliados estão muito convictos de que essa questão fundiária é uma pauta de que eles não abrem mão. Não abrem mão sobretudo no que diz respeito à demarcação das terras indígenas.
É possível segurar essa aprovação no Senado?
O Senado não está tão diferente da Câmara. A maioria ali é contra os direitos indígenas e contra a demarcação dos territórios indígenas. Não tenho muita expectativa de que tenha uma votação diferente.
Como a senhora analisa o voto do ministro do STF Alexandre de Moraes na votação do marco temporal? Ele destacou a “indenização prévia” para agricultores e empresários e tratou de uma “compensação de territórios de interesse público”. Isso pode criar novos problemas?
Eu queria só fazer uma ressalva aqui em relação ao PL 490, que traz outros fatores preocupantes, para além do marco temporal. Além de estabelecer o 5 de outubro de 1988 como a data base para reconhecimento de territórios indígenas, que é o marco temporal, o projeto de lei também prevê a transferência da demarcação de terras indígenas do Executivo para o Legislativo. É um retrocesso absurdo.
Outro ponto preocupante é em relação à autorização para outras pessoas entrarem em território de povos isolados. Hoje a gente faz um trabalho gigante para proteger os territórios onde esses povos estão. O PL 490 traz também uma flexibilização da legislação ambiental, facilitando o acesso e a exploração dos territórios indígenas, além de um artigo, que conseguimos retirar por meio de emendas, que autorizava a exploração do garimpo e mineração.
Prevê ainda o impedimento da revisão de limites de qualquer território indígena. Em muitas áreas, quando foram demarcadas, houve alguns equívocos e a demarcação não passou pela área que foi delimitada. São uns quinze pontos que são um retrocesso absurdo.
E sobre a ação no STF e voto do ministro Alexandre de Moraes?
Há uma grande expectativa para o resultado desse julgamento. O voto do ministro Alexandre de Moraes foi um voto importante. Ele trouxe essa posição, que é importante enterrar de vez o marco temporal. E isso tende a levar outros ministros a votarem seguindo o voto dele. Eu acho que o importante é derrotar o marco temporal e afastar de vez essa ideia de estabelecer essa data [5 de outubro de 1988], porque isso vai negar o território tradicional de muitos povos. Inclusive abre espaço para rever territórios já demarcados.
O ministro Alexandre defende que a indenização seja paga integralmente pela União. Há uma preocupação que isso pode dificultar ainda mais os processos? Claro que há. Mas hoje também já é muito difícil. O Estado brasileiro já tem essa dívida histórica com os povos indígenas e é responsabilidade do Estado fazer essa reparação. Se ao final a decisão for essa, de que o Estado vai ter que pagar essas indenizações, é claro que vai onerar muito no orçamento público. Não temos dúvida disso e a gente sabe que há um limite também desse orçamento, mas será uma obrigação. Então a gente continua com esse respaldo legal de cobrar do Estado brasileiro essa reparação.
A senhora está feliz no ministério ou está angustiada com todos esses embates?
Olha, eu estou muito feliz, viu? Eu acho que é o início de uma reparação histórica de toda essa dívida com os povos indígenas, de toda essa negação de direito ao longo desses cinco séculos de invisibilidade. E aqui a gente tem essa condição de dialogar de igual pra igual com todo mundo. De representar o Brasil no cenário internacional e trazer os povos indígenas para o protagonismo também desse debate público.
*Colaborou Beatriz Vitória