Desde que o crime de feminicídio passou a ser uma qualificadora de homicídio, em 2015, até julho deste ano, 320 filhos ficaram sem as mães por causa dessa barbárie no DF. Especialistas apontam que, além do financeiro, os cuidados devem ser psicológicos e emocionais
Para além da mulher assassinada, o feminicídio deixa outras vítimas que, por muitas vezes, ficam com as marcas do crime pelo resto da vida. De acordo com dados do Relatório de Monitoramento dos Feminicídios no Distrito Federal, da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF), desde a criação da lei que coloca o crime como uma qualificadora do homicídio, até julho de 2023, foram 170 vítimas da barbárie — 24 somente neste ano —, que deixaram um total de 320 órfãos.
Destes, a maioria (203) são menores de idade (veja Desamparados). Na última quarta-feira, o governo do DF encaminhou um projeto de lei à Câmara Legislativa (CLDF) que estabelece medidas de assistência financeira, em caráter temporário, aos órfãos de feminicídio. O auxílio será de até um salário mínimo (R$ 1.320) por criança ou adolescente, de acordo com a disponibilidade orçamentária. Para o secretário de Segurança Pública, Sandro Avelar, o apoio aos órfãos do feminicídio é mais uma importante medida do GDF, no contexto do enfrentamento à violência doméstica.
"Esses jovens, que passam por essa situação, perdem a convivência de forma repentina com a mãe que, infelizmente, é vítima, e do pai, que na maior parte dos casos é preso ou tira a própria vida, após cometer o crime", destaca. "Há, portanto, a necessidade de um apoio para que esses jovens e famílias possam reconstruir suas vidas e superar os traumas adquiridos", ressalta Avelar.
Para ter acesso ao benefício, é preciso cumprir alguns critérios, como ter ficado órfão em decorrência do feminicídio, ser menor de 18 anos ou estar em situação de vulnerabilidade até os 21 anos, residir no DF por no mínimo dois anos e comprovar estar em situação de vulnerabilidade econômica. No dia em que o projeto foi entregue à CLDF, o governador Ibaneis Rocha (MDB), disse que a medida é importante para o fortalecimento da rede de apoio ofertada pelo GDF.
"Trabalhamos nesse projeto de lei desde a força-tarefa de combate ao feminicídio, lançada no início do ano, e agora encaminhamos para que a Câmara Legislativa vote em regime de urgência. Tenho certeza que os nossos deputados vão apreciar o projeto o quanto antes para que possamos estabelecer essa medida", comentou. "Nosso governo vai trabalhar e apoiar cada iniciativa que busque amparar as famílias e seguir combatendo esse crime contra as mulheres", acrescentou Ibaneis.
Além do auxílio, o governo do Distrito Federal afirmou que vai promover novas ações de sensibilização, divulgação e orientação à população sobre a importância do combate ao feminicídio. Parcerias com entidades públicas e privadas também fazem parte do programa, como medida para ampliar a rede de apoio e oferecer eventuais oportunidades de capacitação profissional. As despesas do programa vão sair do orçamento da Secretaria da Mulher.
Além do financeiro
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania, Ética e Decoro Parlamentar da CLDF, o deputado distrital Fábio Félix (PSol) diz ter ficado feliz de ver a norma, enfim, ir para o papel. Mesmo assim, o parlamentar considera que precisa ser feito mais. "Além do auxílio financeiro, essas crianças e adolescentes, devastados pela perda irreparável de suas mães, precisam de auxílio jurídico, psicológico e de acolhimento. Batalhamos muito pela regulamentação da lei e, agora, seguiremos cobrando a efetividade das políticas públicas previstas nela", afirma Félix.
De acordo com o distrital, os impactos causados pela perda da mãe e do pai, que vai preso ou comete suicídio, são muito grandes na vida dessas crianças e adolescentes. "Por isso, é fundamental que as políticas públicas de acolhimento funcionem de forma integrada, com acompanhamento permanente dessas famílias", avalia. "O auxílio financeiro sem dúvidas é muito importante para garantir a subsistência dos órfãos do feminicídio, mas precisa vir acompanhado de outros suportes", acrescenta.
Dayse Amarilio, presidente da Comissão de Assuntos Sociais (CAS), concorda com o discurso do colega de plenário. Para a deputada, quando uma mulher é morta, a sequela fica para a família. "A vida dela se acabou e, muitas vezes, a vida da família inteira se acaba também. Então, a questão dos órfãos precisa ser vista. Temos que pensar na sequela daquela família", observa. "Os órfãos precisam ter o acolhimento na questão financeira, mas a gente precisa também ver com mais transversalidade. Como vamos acolher? Como vamos reintegrar? Como vamos tratar psicologicamente? Como vamos cuidar desses órfãos? Esse é o grande desafio de toda a sociedade, do GDF, da CLDF, e a gente precisa realmente pensar nisso e não só na lei", questiona a distrital.
Segundo Dayse, as crianças que acompanham essa violência, muitas vezes, já estão com sequelas psicológicas por conta disso. "Quando essa mãe perde a vida, os filhos ficam completamente desamparados, porque o pai foi preso e a mãe assassinada. No caso das filhas, elas podem ficar em uma situação muito mais grave, pois podem ter medo de repetir esse ciclo e ser outra vítima de violência na sua vida adulta", conclui. A Câmara Legislativa vai promover, em 29 de agosto, uma audiência pública sobre a violência de gênero, debatendo novos olhares e perspectivas de atuação.
Regulamentação
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança Adolescente e Juventude da OAB-DF, o advogado Charles Bicca aponta que o feminicídio é um crime que desestrutura toda a família. "A morte da mãe, e a prisão do pai, aumentam ainda mais a vulnerabilidade dessas crianças e adolescentes. Nos termos do artigo 227 da Constituição Federal, assegurar a efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação e outros direitos, não é dever tão somente da família, mas da sociedade em geral, e em especial, do poder público", argumenta.
Para Bicca, também é dever do Estado colocar as crianças e adolescentes a salvo de toda forma de negligência, violência e crueldade. "Vale ressaltar que tais políticas públicas não apenas beneficiam essas famílias, mas servem para jogar luz no problema de forma positiva e, indiretamente, tentar mudar comportamentos", justifica o advogado.
"Apoiamos e acompanhamos projetos que sejam encaminhados com a finalidade de proteção da infância e da juventude. A nossa comissão se coloca à disposição dessas vítimas e seus tutores, para o devido atendimento jurídico, gratuito e humanizado, com o intuito de minimizar de alguma forma os efeitos dessa tragédia social", complementa Bicca, ressaltando que, na próxima quarta-feira, a Comissão de Defesa dos Direitos da Criança Adolescente e Juventude vai se reunir para tratar sobre os órfãos do feminicídio no DF.
Desamparadas
A advogada Cristina Tubino, presidente da Comissão de Combate à Violência Doméstica e Familiar da OAB-DF, ressalta que, no caso de algumas legislações que tratam sobre o tema, falta ainda regulamentação, especialmente no âmbito distrital. "Até o momento, aqui no DF, não há regulamentação da legislação que existe, o que significa que essas crianças e adolescentes vítimas do feminicídio continuam desamparadas desde 2015", lamenta. "Isso é muito grave, porque as sequelas e as consequências que essas crianças e adolescentes têm são extensas. Vão desde o abandono escolar até a psicológicas, emocionais, transtornos comportamentais. Elas carregam as marcas dessas violências, como também carregam as consequências de uma violência transgeracional", avalia a advogada.
Cristina Tubino ressalta o trabalho da força-tarefa do feminicídio, por parte do GDF, porém, afirma que isso precisa ser regulamentado. "O que se tem conhecimento é que está sendo feito um mapeamento, pela Secretaria de Segurança Pública, dessas crianças e adolescentes para que, num segundo momento, seja feito seu acompanhamento", comenta. "A OAB vai acompanhar de perto como está sendo feita a atuação da rede de proteção. Porque, até o momento, não temos medidas concretas e, de fato, são pessoas vulneráveis, não apenas por serem crianças e adolescentes em desenvolvimento, mas por estarem nessa situação de maior necessidade, em razão das violências que presenciaram e também sofreram", pontua.
SAIBA MAIS
Traumas
Para a psicóloga e neuropsicóloga pelo Instituto de Psicologia Aplicada e Formação de Portugal (Ipaf), Juliana Gebrim, a perda de uma mãe de maneira trágica e violenta pode ter um impacto profundo na vida de uma criança ou adolescente. "Essa experiência traumática pode afetar diversos aspectos do desenvolvimento emocional, social e psicológico do indivíduo", destaca. "Para os mais jovens, a perda da figura materna pode resultar em sentimentos de abandono, confusão e desamparo. A ausência da mãe pode gerar dificuldades no estabelecimento de vínculos afetivos saudáveis, bem como na construção da identidade e autoestima", ressalta a especialista.
Por isso, a neuropsicóloga destaca que é fundamental que crianças e adolescentes, que passam por essa situação, recebam apoio psicológico adequado. "O acompanhamento profissional pode ajudar a lidar com o luto, processar as emoções, desenvolver estratégias de enfrentamento saudáveis e reconstruir a vida após a perda", aponta. "É importante ressaltar que cada indivíduo reage de maneira única diante de uma perda tão traumática. Portanto, é essencial que o suporte seja personalizado e adaptado às necessidades específicas de cada criança ou adolescente", comenta a especialista.