O compromisso que assumimos com o voto dado a Lula é de restaurar a democracia em sua plenitude, começando já no enfrentamento das enormes emergências ecossociais para garantir direitos negados para os hoje excluídos e deixados à própria sorte.
Cândido Grzybowski
Sem dúvida, foi uma estratégica vitória eleitoral que obtivemos. Mas a restauração da democracia viva e intensa apresenta enormes desafios para nós mesmos, as cidadanias ativas. O enfático e emocionante discurso da Lula, comemorando a vitória, aponta um conjunto de ações governamentais para as emergências de um ponto de vista de justiça democrática ecossocial, que já estamos demandando. No entanto, tanto a efetividade de tais ações como, sobretudo, a reintrodução de um poderoso imaginário democrático transformador para o Brasil, como um todo, são tarefas que extrapolam o poder institucional e a vontade da ampla frente de forças construída em torno a Lula em nome da democracia diante do fascismo à nossa porta. Temos uma urgente tarefa de disputa de visões de futuro, de princípios e valores, de uma nova e potente hegemonia democrática no seio da própria sociedade civil. E os desafios implicam num profundo engajamento nosso, cidadanias ativas, numa ampla disputa com forças contrárias, na rua, no trabalho, no bar e nas comunidades. Mas, também a disputa do que fazer através do governo para todos, com ampla e legítima participação social nas questões decisivas, para além dos poderes instituídos.
O compromisso que assumimos com o voto dado a Lula é de restaurar a democracia em sua plenitude, começando já no enfrentamento das enormes emergências ecossociais para garantir direitos negados para os hoje excluídos e deixados à própria sorte. Também precisamos o quanto antes de iniciativas abrangentes e potentes que reponham no centro o direito coletivo de preservação da integridade da natureza que nos dá a vida, nos diversos biomas, mas particularmente a Amazônia. Conquistamos uma direção e uma esperança com toda legitimidade, referendada e incontestável, dentro do marco institucional vigente, assegurado pela Constituição. Demonstramos uma maioria, mas é apenas um primeiro passo e uma base politicamente insuficiente para dar capacidade transformadora para a democracia. Ou seja, assumimos uma tarefa e um compromisso cidadão, que vai depender mais de nós, cidadanias em ação, do que do próprio Governo Lula, apesar dele ser indispensável no exercício do mandato de poder estatal que lhe conferimos, derrotando a proposta contrária.
Penso que é inadiável chamar a atenção para os desafios que temos pelo caminho, agora mais reais e urgentes do que antes. Temos que agir com determinação no seu enfrentamento. Trago aqui a enorme fissura política implantada no seio da sociedade pelas forças arregimentadas pelo presidente atual. Apesar de derrotadas pelo voto cidadão, continuam como ameaça. Trata-se de um bloco de forças antidemocráticas disposto a tudo, que revelou ter raízes profundas no Brasil. Apesar de ter no centro as classes proprietárias e rentistas, tem uma amplitude surpreendente. Chamo a atenção, particularmente, para o seu alcance no seio das classes médias urbanas zelosas na defesa de suas pequenas conquistas e privilégios, vistos e sentidos como sendo ameaçadas por propostas democráticas com alguma intensidade. Mas ainda mais preocupante é o fato que a fissura se insinuou e vem mobilizando até segmentos de periferias urbanas e rurais pobres, sob influência de novos mercadores da fé, especialmente de alguns setores das novas igrejas pentecostais.
A fissura foi alimentada, amplificada e escancarada pelo bolsonarismo, apropriando-se até de símbolos nacionais como sendo legítimos só para os seus seguidores. Desde o processo eleitoral de 2018, quando foi vitorioso, o inominável costurou um grande apoio junto a empresários ultraconservadores e escandalosamente ricos, com destaque para o poderoso agronegócio, que lhe permitiu realizar uma investida sem precedentes em redes sociais para difundir fakenews e desacreditar a democracia, a luta por direitos e seus promotores. O seu discurso fascista excludente em nome de “Deus, Pátria e Família” pregou o ódio e a intolerância, com discriminações de todo tipo, com liberação do acesso às armas. Um aspecto também importante e estratégico na promoção da ruptura social foi a realização de grandes eventos em espaços públicos simbólicos para demonstrar adesão social às suas propostas antidemocráticas e às soluções autoritárias e excludentes, com apelo à própria violência armada. Trata-se de uma potente versão brasileira que abraça as propostas de uma direita autoritária, excludente e destrutiva, que se expande pelo mundo desde dentro das entranhas do capitalismo globalizado, assentado na prática radical da ditadura do livre mercado contra povos inteiros.
Na empreitada do bolsonarismo no sentido de construir um bloco amplo de adesões no interior da sociedade brasileira a seu projeto fascista, ele se valeu de um descarado clientelismo via Congresso Nacional, através do orçamento secreto. Apostou numa sistemática asfixia das grandes conquistas em políticas no combate às injustiças no acesso a direitos sociais, especialmente nas áreas de saúde, segurança alimentar e educação. Basta lembrar aqui a tragédia no enfrentamento da Covid pelo descaso do governo. Esvaziou o IBAMA e a FUNAI e liberou geral para o assalto aos bens comuns naturais, invasão de territórios indígenas e áreas preservadas, com desmatamento avassalador e garimpo destrutivo e contaminador.
Tudo isto emoldurado e justificado pela valorização da busca pelo interesse individual como prioridade, sem limites, afirmando e praticando o total desprezo ao que é mais essencial para a democracia ter sentido: o princípio central de direitos iguais a ser buscado e garantido para todas e todos, pelas instituições e políticas públicas. Acabou negando a existência da miséria e da fome que se expandiram vergonhosamente entre nós, depois dos avanços que tivemos. Enfim, não temos como nos livrar facilmente de tal fissura e o que ela representa como poderosa ameaça para a tarefa que elegemos como prioritária: a restauração democrática plena para podermos alimentar esperança de um futuro possível melhor, de mais justiça ecossocial, com um sentido de pertencimento, cuidado mútuo e compartilhamento, condições para uma viver com mais dignidade entre todas e todos.
A fissura implantada está longe de acabar com a vitória alcançada no último dia 30 de outubro. Pelo contrário, no imediato ela representa um grande risco, pois as reações das hostes armadas e mobilizadas pelo bolsonarismo ativo podem tumultuar os dois meses que nos separam da posse efetiva de Lula no cargo de Presidente, em 1º de janeiro de 2023. Este é o maior risco no momento. Portanto, não podemos nos desmobilizar, mas estar vigilantes e prontos para ações cidadãs poderosas em defesa da vitória eleitoral e um futuro possível mais democrático. Porém, a grande tarefa da restauração começará uma vez implantado o Governo Lula, com as alianças políticas que se formaram já no processo eleitoral. Aí a questão passa a ser de criar possibilidades políticas para uma atuação que priorize o necessário institucionalmente para a restauração democrática que necessitamos.
De qualquer forma, não se trata de voltar ao passado, por mais democrático e virtuoso que tenha sido em alguns períodos, especialmente dos governos petistas. Aliás, o conquistado e feito não foi garantia suficiente para não voltarmos a perder direitos. Basta lembrar aqui que voltamos a situações dramáticas e intensas de fome e miséria para milhões de nossos conterrâneos e o desmonte sistemático de políticas, tanto econômicas e sociais, como particularmente as de proteção da natureza. Ou seja, não criamos sustentabilidade democrática ecossocial resiliente, baseada em direitos de cidadania constitucionalizados. Em sentido contrário, a própria Constituição de 1988, conquistada após ampla e vibrante mobilização cidadã contra a ditadura militar, vem sendo desfigurada em aspectos essenciais que apontam sistemático retrocesso democrático.
Nossos grandes desafios estão à frente e são eles que importam daqui para diante para qualificar e dar potência ao Governo Lula. Isto depende mais da ampla diversidade de identidades e vozes de cidadania do que do governo e do Congresso. Não há dúvidas que precisamos de Governos nas varias instâncias, assim como do Congresso e dos Legislativos estaduais, comprometidos com democracia e eficientes em termos de acolher e implementar demandas de direitos através de legislação, desenho de políticas e alocação de recursos. Porém para maior efetividade, cabe a nós tornar estas instâncias de poder abertas à mais ampla participação possível, porque só as cidadanias ativas tem o poder de pressionar amplamente e desempatar as correlações de forças nas estruturas de poder executivo, legislativo e judiciário. Isto significa disputar, disputar, disputar... sem nunca cansar. Vai ser muito mais fácil no Governo Lula, mas nada está assegurado de antemão. A virtude da democracia reside exatamente na disputa e na busca de soluções possíveis com protagonismo da cidadania ativa. Não existe receita pronta. Mas o mais importante de tudo é que nós não podemos abdicar de nosso poder como cidadania instituinte e constituinte, ficando a reboque de quem nos representa. Delegamos o poder para que seja usado na promoção da democracia a mais ampla possível, mas sua fonte somos nós, cidadanias com igualdade de direitos, inclusive de direito de participação sem limites, desde que orientada pelos princípios e valores da democracia.