Quase lá: Sobre autonomia de movimentos sociais frente aos partidos. Artigo de Rudá Ricci

No marxismo, o tema sempre foi central.

“A autonomia fez parte da identidade do PT e da CUT no início dos anos 1980 e se alimentou dos debates que ocorriam nas organizações semiclandestinas que faziam a conversão da luta armada para a organização de base, além da forte presença de organismos de base da Igreja Católica vinculadas à Teologia da Libertação”, escreve Rudá Ricci, sociólogo, com larga experiência em educação e gestão participativa, diretor do Instituto Cultiva.

Eis o artigo.

Nos últimos dias, as periferias da cidade de São Paulo se movimentaram. Na quarta-feira, dia 4 de maio, ocorreu um encontro de lideranças de todos os cantos da cidade na Câmara Municipal da capital paulista. Rapidamente, o tema da autonomia frente aos partidos políticos ressurgiu.

Autonomia significa “autogoverno”. Parece um tema puxado exclusivamente pelo anarquismo, mas envolve um amplo espectro da esquerda mundial. E esteve no centro da criação do PT. Em Marx, ressurge em diversos textos, da análise da Comuna de Paris aos textos do rascunho d´O Capital, os Grundrisse.

Marx tinha esta questão como central na construção do comunismo, onde o Estado seria substituído por estruturas autônomas dos cidadãos que não precisariam mais trabalhar por obrigação e sobrevivência. Chegou a pensar numa enquete operária, inaugurando o que mais tarde se denominaria pesquisa-participante tal a preocupação de dar voz aos operários.

A reflexão sobre autonomia envolveu evidentemente os anarquistas, das vertentes anarcomunistas aos sindicalistas revolucionários. Na revolução russa, Nestor Ivanovyč Machno liderou um famoso agrupamento guerrilheiro que incomodou o Exército Vermelho após a vitória revolucionária.

Mas, no marxismo, o tema sempre foi central. Afinal, como criar uma estrutura de poder operário ou popular se os trabalhadores dependerem o tempo todo de uma estrutura burocrática central? Como dar “todo poder aos sovietes” (soviete significa “conselho popular”) se não tiver autonomia operária?

Temos uma imensa discussão a respeito envolvendo Rosa Luxemburgo e diversos textos de Trotsky. Na Itália, os Quaderni Rossi e Classe Operaia forjaram o operaísmo naquele país.

Um grupo oriundo do movimento sindical de Turim, do Partido Socialista Italiano (PSI) e do Partido Comunista Italiano (PCI), reunidos em torno de Raniero Panzieri, Mario Tronti e Antonio Negri fundou, em 1961, a revista Quaderni Rossi (“Cadernos vermelhos”). Dois anos depois, um subgrupo conhecido pelo jornal Classe Operaia passou a refletir e propor a autonomia da classe e das lutas operárias frente ao sindicato.

Aqui é preciso explicar que a Itália pós-guerra vivenciou uma expansão industrial no norte do país que atraiu muitos camponeses para as cidades. Ocorre que as grandes organizações sindicais – como a CGL – não tinham contato com trabalhadores não-qualificados. E era justamente aí que havia uma lacuna a ser coberta pela auto-organização.

No Brasil, tivemos ao menos quatro ciclos de discussões sobre autonomia dos movimentos sociais – incluindo o sindical – nos debates internos da esquerda nacional. O primeiro, já citado, do anarquismo trazido pelos migrantes europeus na virada do século XIX para o XX. Pouco se discute sobre a criatividade anarquista no período.

Cito as “rodas de conversa” que os anarquistas criaram para “papear” sobre política com trabalhadores das fazendas do interior do país ou as ações de cultura nas grandes cidades, como os piqueniques culturais ou peças de teatro relâmpago nas praças urbanas.

O segundo ciclo ocorreu nos anos 1940, a partir de uma espécie de dissidência no PCB. Ricardo Maranhão, no seu livro “Sindicatos e democratização”, retrata que entre 1940 e 1947 mais do que duplicou o número de trabalhadores sindicalizados no Brasil, o que alimentou movimentos de protesto e reivindicações. Maranhão registra muitas mobilizações que nem sempre seguiram a orientação partidária.

Em abril de 1945 foi criado, pelo PCB, o MUT (Movimento Unificador dos Trabalhadores), organização intersindical de trabalhadores de âmbito nacional, com o objetivo de assumir o controle dos sindicatos. Ocorre que o MUT foi além do PCB e atraiu muitos sindicalistas calejados, abrindo certo conflito entre a orientação do partido e a autodefinição sindical. O PCB adotava uma política cautelosa naquele período e Prestes chegava a sugerir que “o Partido deve dirigir e não se deixar levar pelo movimento espontâneo das grandes massas”.

As greves, que pipocavam pelo país afora, impunham um forte dilema no interior do PCB, confrontando a liderança sindical com a linha cautelosa da direção partidária. O tema da autonomia sindical emergiu nesta década.

O terceiro ciclo ocorreu durante a criação do PT, logo no seu início. Um núcleo de intelectuais de destaque do PT paulista, como Marilena Chauí e Eder Sader, passou a promover debates sobre a autonomia dos movimentos sociais e o papel do PT. Uma revista foi criada onde o debate se organizava, a revista Desvios. A revista citava desde autores como Cornelius Castoriadis e Negri, até lutas sociais que ocorriam na Polônia (envolvendo o sindicato Solidariedade), Itália e no Brasil.

O que os neopetistas, que ingressaram ou ascenderam às direções do PT neste século XXI, muitas vezes desconhecem é que o PT nasceu confrontando a ideia do partido como “correia de transmissão” de imposição de sua linha para os movimentos sociais. O PT nasceu contra o trabalhismo varguista por substituir a autonomia dos trabalhadores por lideranças de classe média externas à base social, assim como confrontava com o mundo soviético (ou o SOREX, socialismo real existente) que substituía as organizações autônomas operárias e de bairro pelas direções burocráticas partidárias.

A autonomia fez parte da identidade do PT e da CUT no início dos anos 1980 e se alimentou dos debates que ocorriam nas organizações semiclandestinas que faziam a conversão da luta armada para a organização de base, além da forte presença de organismos de base da Igreja Católica vinculadas à Teologia da Libertação.

O último ciclo foi a explosão autonomista em junho de 2013. A despeito da reação da cúpula de alguns partidos de esquerda do país procurarem ver nas manifestações de junho a digital da extrema-direita, os fatos hoje relatados em inúmeros estudos desmentem tal ilação. A cultura anarquista e autonomista estava presente desde o início. O autonomismo era a cultura do MPL, a organização que puxou o embate com os valores das passagens do transporte público.

O autonomismo esteve presente em vários Comitês da Copa, a articulação que se instalou nas 12 capitais que sediaram a Copa das Confederações. Esteve presente no comando das manifestações em muitas capitais – como RJ, Recife e BH -, assim como os anarquistas estiveram presentes na organização dos protestos do RJ e Porto Alegre.

Agora, retorna o debate a partir da articulação das periferias, ainda dando seus primeiros passos, em São Paulo. Os líderes dessa iniciativa não são apartidários. Ao contrário, a grande maioria é filiada a partidos de esquerda e é conhecida pela participação nas instâncias e debates partidários. Mas, retomam a tese original do PT: os partidos precisam se alimentar da energia e criatividade dos movimentos sociais e não o contrário.

Este é o centro das discussões que recentemente povoou as redes sociais da esquerda brasileira: a esquerda institucionalista (ou governista) e a esquerda social. O institucionalismo é uma concepção política muito acalentada pela ciência política dos EUA que sugere que o centro da disputa política é o campo institucional (partidos, governos e parlamentos). As lutas sociais e a sociedade civil configurariam uma dimensão secundária da vida política.

Ora, o que os jovens das periferias de São Paulo estão dizendo (sem falar abertamente) é que eles têm vida própria na condução política de suas lutas e organizações. Não confrontam com os partidos. Ao contrário, convidam direções partidárias e parlamentares para participarem. Mas, como convidados.

Tal postura independente (ou de interdependência) vai na contramão do que o lulismo vem propondo nas últimas duas décadas. Antes do encontro da quarta-feira na Câmara Municipal de São Paulo, dirigentes de partidos de esquerda se dividiram entre apoiar e participar, sugerir que não é o momento (devido à proximidade das eleições municipais) ou procurar assumir a liderança desta iniciativa.

A questão posta é o conceito de autonomia da sociedade civil. Lembremos, autonomia não é liberdade total ou exclusivismo (como ocorre com o identitarismo). É decisão sobre meu comportamento a partir da leitura do seu papel no todo, no coletivo. Autonomia é o inverso de heteronomia, ou seja, a norma definida por outro que não seja eu.

Esta é a base do que se denomina democracia socialista ou de esquerda. Se não vem dos próprios partidos – como ocorreu na década de 1980 com o surgimento do PT -, emerge dos próprios movimentos sociais, como ocorre agora na capital de São Paulo.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/640104-sobre-autonomia-de-movimentos-sociais-frente-aos-partidos-artigo-de-ruda-ricci

 


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