Quem são os Patriotas do Senegal, que venceram as eleições em seu país ao propor transformações estruturais e formas inovadoras de ação política. Como eles expressam a nova onda de descolonização que mobiliza a juventude no continente
Publicado 25/03/2024 às 20:21
Bassirou Diomaye Faye, num dos comícios da campanha-relâmpago que o levou à presidência do Senegal
No processo longo e pedregoso de descolonização da África, um novo capítulo pode ter-se aberto. Na tarde desta segunda-feira (25/3), o presidente senegalês Macki Sall admitiu que as eleições presidenciais de domingo deram vitória ao Pastef – os Patriotas Africanos do Senegal para o Trabalho, Ética e Fraternidade. O partido é peculiar. Formado há apenas dez anos por membros da classe média instruída, empolgou as maiorias jovens, que buscam um horizonte além da pobreza, dos laços coloniais que persistem e da corrupção das elites. Ferozmente perseguido, venceu a repressão estabelecendo em pouco tempo uma nova cultura política, de mobilização nas ruas e formação de comunidade simbólica. Sua tarefa será árdua. Mas ele expressa um novo cenário político em emergência na África – onde não há sinais fortes de neofascismo e o descrédito nas instituições, também presente, está produzindo um efeito oposto: o ressurgir de um sentimento antieurocêntrico.
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Dois personagens emblemáticos materializam o triunfo do Pastef. O presidente eleito é Bassirou Diomaye Faye, um auditor fiscal de 44 anos, que passou os últimos onze meses na prisão (por “desacato a autoridades”) e deixou o cárcere apenas dez dias antes do pleito. Além disso, foi obrigado a concorrer como independente, porque seu partido foi colocado na ilegalidade em julho de 2023. Superou os obstáculos. Com 90% das urnas apuradas, havia alcançado 53,8% dos votos, o que levou todos os adversários a reconhecerem sua vitória. Chegará à presidência sem ter nunca exercido cargos políticos. Diz-se influenciado por Cheik Anta Diop, o historiador senegalês que afirmou a centralidade das civilizações ancestrais da África Negra e sua irradiação pelo mundo. Quando indagado sobre os riscos de sua falta de experiência na vida institucional, costuma responder: “Os que conduziram o país desde 1960 [data da “independência” em relação à França] produziram fracassos catastróficos”.
Mas por trás de Diomaye, há Ousmane Sonko, o maior líder popular do Pastef. Também auditor fiscal e seis anos mais velho que o presidente eleito, é deputado na Assembleia Nacional. Conduziu o partido na trajetória arrebatadora em que saltou de 1% dos votos (2017) para 15,6% (2019), 33% (2022) e finalmente a vitória no domingo. Antes disso, criou o primeiro sindicato de sua categoria (em 2005). Escreveu Petróleo e Gás no Senegal – crônica de uma espoliação, em que denuncia o sequestro das riquezas do país pelas transnacionais e oligarquias nacionais associadas, e Soluções por um Novo Senegal. Seria o candidato natural, mas sua postulação foi bloqueada pelo Judiciário. Também estava encarcerado até há dez dias. Foi capaz de um movimento extraordinário de transferência de votos. Até há poucos meses, Diomaye era um desconhecido do público. Mas o slogan Diomane é Sonko [Sonko mooy Diomane”, em uolofe, a língua predominante no país] e a empolgação popular pela possibilidade de mudança convenceram os eleitores
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O Pastef é uma das resposta à longa crise que se abateu sobre a África a partir do início dos anos 1990. Nas décadas anteriores, as independências nacionais e a disputa entre União Soviética e Estados Unidos por exercer influência geopolítica sobre o continente haviam produzido algum progresso. Mas com o fim do “socialismo real”, também Washington viu-se desinteressada. Os partidos africanos da primeira onda independentista burocratizaram-se, envelheceram e perderam impulso.
Mas após um período de letargia, ressurgiu a busca de um futuro autônomo. No Senegal, isso se deu à margem das correntes anteriores. Em seu site, o Pastef narra a própria história de forma curiosa. Em janeiro de 2014 – portanto, sob influência das revoltas árabes e europeias de três anos antes – uma nova geração está convencida da necessidade de superar a estagnação, a pobreza e a injustiça social. Lutas esparsas alcançam vitórias isoladas, como a formação de sindicatos no setor público. Seus líderes dão-se conta da necessidade de ampliá-las. Consideram-se “uma dinâmica”, diz a narrativa. Rejeitam a ideia de partido político – da qual “tinham horror”. Mas reveem a posição ao serem estimulados, por simpatizantes, a disputar o poder. Assumem um nome (Pastef – Patriotas do Senegal) que expressa esta ambiguidade partido-movimento. Afirmam “promover uma doutrina pragmática, que não se confunde com nenhuma das ideologias historicamente reconhecidas: socialismo, comunismo, liberalismo, etc”.
Porém, o vasto programa (de 15 capítulos e 274 páginas) que Diomaye e Sonko apresentam à sociedade senegalesa em 2024 tem claro sentido antineoliberal e panafricano. Aponta para a luta pela soberania do país (por meio da recuperação das riquezas nacionais, da industrialização e da recuperação da infraestrutura); para o combate contra a desigualdade (a ser alcançada principalmente por meio de serviços públicos universais de qualidade); para a garantia de trabalho digno e para uma vasta reforma política, que estabeleça formas de controle popular sobre o poder. Entre os meios de alcançar o projeto estão o fortalecimento do Estado (“e de seu papel primordial no desenvolvimento econômico e social”), uma reforma agrária camponesa com transição agroecológica (42% da população vivem no campo) a independência monetária (propõe-se a ruptura com o franco CFA, atrelado ao euro e emitido pela França) e a integração africana.
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O domingo eleitoral foi de festa em Dakar, a capital, e em todo o país. Os sinais da vitória do Pastef eram tão claros que, relata o Guardian, uma população segura do resultado tomou as ruas, cantou e dançou ao som de tambores e vuvuzelas, assim que as urnas se fecharam. Mas os três últimos anos foram de intensas batalhas de rua. O ascenso dos Patriotas do Senegal nos pleitos anteriores, somado ao desgaste crescente do governo, sugeria uma mudança política à vista.
Foi então que o presidente Macki Sall, no poder desde 2012, recrudesceu. Festejada internacionalmente, a “democracia” senegalesa não suportava o avanço de um partido-movimento comprometido com mudanças estruturais na sociedade. No início de 2021, Ousmane Sonko foi preso pela primeira vez, acusado falsamente de estupro (mais tarde, ele foi inocentado e a acusadora reconheceu ter sido subornada para fazer a denúncia). Eclodiram os primeiros protestos. Eles voltaram, mais intensos, há nove meses, quando Sonko foi condenado em definitivo (agora por “insurreição” e “complô”, para que não pudesse participar das eleições) e o Pastef, proscrito (sob alegação insustentável de “estimular o terrorismo”). O governo respondeu com chumbo e sangue. A polícia matou 28 pessoas, incluindo três adolescentes. Atiradores paramilitares em trajes civis foram flagrados ao lado das forças policiais. A internet móvel foi bloqueada e o acesso às redes sociais e serviços de mensagens, fortemente restringido. Cerca de mil opositores, entre eles jornalistas e centenas de ativistas dos Patriotas do Senegal, presos sem julgamento.
As restrições estimularam o Pastef a buscar ainda mais intensamente formas não-convencionais de ação política. A chave foi uma capilarização radical da campanha, uma deriva para a micropolítica, pervasiva e envolvente. Se os eventos formais estavam proibidos, por que não transformar os atos quotidianos da vida social em espaços para a política? Numa matéria na Rádio França Internacional, a jornalista Léa-Lisa Westerhoff registra, surpresa, as cenas que presenciou em Dakar. “Sonkorizar, eis uma palavra que aprece no falar quotidiano, nas últimas semanas: ‘Sonko, sentimos sua falta’, cantada em uolofe. Aconteceu numa partida de futebol entre amigos, num bairro da periferia, há quatro dias. Cenário idêntico durante a partida entre as seleções do Senegal e Argélia, há uma semana. Casamentos e shows são igualmente sonkorizados e postados nas redes sociais”. O movimento repercutiu na diáspora senegalesa pelo mundo — e de lá de volta para o Senegal… Em 21 de setembro, em Paris, um show do artista senegalês Ytoussou N’Dour foi interrompido durante vários minutos, por uma plateia que cantava: Liberez Sonko. As imagens viralizaram em Dakar.
O processo foi além — inclusive com episódios notáveis de ressignificação simbólica. Em março de 2023, uma onda de repressão às manifestações populares resultou na imposição de braceletes eletrônicos a centenas de ativistas do Pastef. Surgiram rapidamente, em resposta, os braceletes da liberdade. Eram faixas vermelhas e verdes (as cores do partido), gravadas com o mote “Sonko 2024” e usadas orgulhosamente por milhares de simpatizantes. Serviam para arrecadar fundos. Eram vendidas a 1,50 euro cada uma, com parte da receita destinada a apoiar as famílias dos presos políticos e outra parcela para sustentar as despesas de campanha. Mas também estabeleciam cumplicidades. O correspondente do Libération, Théo du Couëdic, registra: “Motoristas, cozinheiras, frentistas, vendedores de recargas telefônicas… Dezenas de milhares de jovens e de menos jovens exibem todos os dias este signo de mobilização — ou de resistência — nos quatro cantos do país. ‘Às pessoas que o portam, é comum um taxista oferecer uma viagem, ou um ambulante servir um café. É um estado de espírito’, relata Saliou Cissè, membro de uma seção local do Pastef”.
Foram este enraizamento incomum e esta conversão de política em atitude, mais que apenas discurso, que permitiram ao Pastef fazer Diomaye presidente em tempo-relâmpago. O candidato foi apresentado apenas em 16 de março, dois dias após sua libertação, num comício conduzido por Ousmane Sonko. Nesta segunda-feira, nove dias depois, ele declarava, já na condição de chefe de Estado eleito: “O povo senegalês optou pela ruptura. A eleição consagra antes de tudo a vitória do povo, no combate pela defesa de sua soberania e dos valores democráticos”.
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A esquerda recuou tanto nos últimos dez anos, na maior parte da América e da Europa, que uma pergunta, cuja resposta antes era óbvia, agora impôs-se. Deve-se questionar e desafiar o sistema político a partir de uma perspectiva pós-capitalista? Ou esta atitude foi capturada sem resistências pela ultradireita, que agora posa de anti-establishment? Às forças antes tidas como “progressistas” restará apenas a defesa da ordem liberal — precisamente no momento em que as maiorias mais a rejeitam?
Visto da África, o cenário parece ser outro. Embora partidária convicta do capitalismo, a revista Economist reconhece, num artigo recente, que “a boina vermelha tornou-se o chapéu mais político”, em todo o continente. Multiplicam-se os movimentos que “evocam o espírito da revolução”, diz o texto. E cita exemplos. Na África do Sul, crescem os Guerreiros da Liberdade Econômica [Economic Freedom Fighters], que, ao contrário do que pode sugerir o nome, são uma dissidência marxista-leninista do Congresso Nacional Africano — no governo desde a posse de Nelson Mandela. Em Burkina Faso, Ibrahim Traoré, o capitão do exército que liderou um golpe antioligárquico em 2022 (e está no poder), diz inspirar-se em Thomas Sankara, o presidente comunista assassinado em 1987. Em Uganda, os seguidores do cantor pop Bobi Wine estiveram próximos de vencer uma eleição presidencial — e continuam muito ativos. A revista admite, a contragosto: “Para muitos jovens africanos, que olham para o continente e veem que as promessas de democracia, igualdade e dignidade não foram cumpridas, a boina vermelha é certamente símbolo de uma revolução que não está completa”.
Poderá a vitória do Pastef e de Diomaye Faye, a partir de uma posição de poder, dar novo impulso a este movimento? O desafio é enorme e a resposta, incerta. Mas algo parece claro: vêm de novo da África, tão espoliada e tão crucial para a formação da América Latina, ventos de rebeldia e humanidade.