Quase lá: Quando a “austeridade” fiscal coopta a esquerda

Ela torna-se o grande consenso, abrangendo da esquerda à direita, da academia à imprensa, das rodas de especialistas ao bares. Nesse contexto, exige-se muita tática, independência, coragem e paciência para articular uma resposta crítica

Imagem: Nikhil/Flickr

Quando um governo de esquerda estrutura e subordina as políticas públicas e os direitos sociais à lógica da austeridade, impondo severas restrições ao avanço do comum em prol da mercantilização acelerada dos serviços e investimentos públicos, há uma intervenção para muito além do domínio econômico. Ao contrário dos governos declaradamente inimigos da classe trabalhadora e representantes da classe dominante, a imposição de políticas econômicas neoliberais por governos progressistas tem impactos políticos e ideológicos particulares na percepção e consentimento da classe trabalhadora organizada, partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais.

Trata-se da organização do consentimento e da aceitabilidade social da “austeridade” fiscal como natural e inevitável. Para tal, buscam convencer a população de que a forte restrição dos gastos e a mercantilização dos serviços e investimentos públicos são necessárias para o bem comum e o crescimento econômico a longo prazo. Isso envolve a criação de narrativas que enfatizam a importância do “equilíbrio fiscal”, a necessidade de redução da dívida pública e a atração de investimentos privados como motores do desenvolvimento. Para tal, usualmente recorrem a teorias econômicas produzidas por economistas ligados ao campo conservador, caso da tese da contração fiscal expansionista.

Em alguns casos, a “austeridade” fiscal pode até ser apresentada como uma virtude do governo de esquerda que mostrou responsabilidade e compromisso com a “saúde” econômica do país, mesmo que isso implique piora sistemática da saúde das pessoas e do meio ambiente. Essa narrativa, ao ser efusivamente apoiada pela grande mídia, por políticos de diferentes espectros políticos e por setores econômicos poderosos, acaba por golpear a capacidade de organização e mobilização dos movimentos que buscam contestar o paradigma neoliberal.

Portanto, a aliança de setores interessados na “austeridade” com governos de esquerda representa um desafio imenso para a construção do comum e a defesa de políticas antineoliberais. A “austeridade” fiscal torna-se o grande consenso, abrangendo desde a esquerda à direita, da academia à imprensa, das rodas de especialistas ao bares. É vista como um fato científico inquestionável. Essa dinâmica cria obstáculos ideológicos, fortalece os interesses econômicos contrários aos objetivos da classe trabalhadora e pode minar, estruturalmente, a capacidade de mobilização popular contra as políticas de austeridade.

Nesse contexto, é necessário um esforço extra, que exige muita tática, independência, coragem e paciência para articular uma resposta crítica e a construção e permanente divulgação de alternativas que estejam alinhadas com os reais objetivos dos trabalhadores e os desafios ambientais do nosso tempo. Por fim, lembrem que por mais desafiadora que a conjuntura seja, a persistência da luta contra a austeridade fiscal diante dos seus efeitos nefastos se erguerá, cedo ou tarde, como uma semente subversiva, minando as bases do neoliberalismo.

   

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