Preso há 20 anos em Guantánamo, sem acusação, Abu Zubaydah fez chegar ao advogado detalhes das técnicas brutais usadas pela CIA. Revela-se o cinismo de Washington: defender direitos humanos e perpetrar a barbárie em seus calabouços
Publicado 22/05/2023 - OutrasPalavras
Por Ed Pilkington no The Guardian | Desenhos de Abu Zubaydah | Tradução: Maurício Ayer
Detento no campo de prisioneiros dos EUA na Baía de Guantánamo e usado como cobaia humana no programa de tortura pós-11 de Setembro da CIA, ele produziu o relato mais completo e detalhado já visto sobre as técnicas brutais às quais foi submetido.
Abu Zubaydah fez uma série de 40 desenhos que descrevem a tortura que ele sofreu em várias prisões obscuras da CIA, entre 2002 e 2006, e na Baía de Guantánamo. Na ausência de um relatório oficial completo do programa de tortura, que a CIA e o FBI trabalharam durante anos para manter em segredo, as imagens fornecem uma visão única e marcante de um período macabro da história dos Estados Unidos.
Os desenhos, que Zubaydah legendou com suas próprias palavras, retratam atos horríveis de violência, humilhação sexual e religiosa e terror psicológico prolongado cometido contra ele e outros detentos. Eles foram esboçados de memória em sua cela em Guantánamo e enviados a um de seus advogados, o professor Mark Denbeaux.
>Juntamente com seus alunos do Centro de Política e Pesquisa da faculdade de direito da Seton Hall University, Denbeaux compilou as imagens e palavras de Zubaydah em um novo relatório. The Guardian publica o relatório Torturadores americanos: Abusos do FBI e da CIA em prisões obscuras (dark sites) e Guantánamo, pela primeira vez, juntamente com um conjunto de esboços nunca antes vistos.
“Abu Zubaydah é o garoto-propaganda do programa de tortura dos EUA”, disse Denbeaux. “Ele foi a primeira pessoa a ser torturada, prática que foi aprovada pelo Departamento de Justiça com base em fatos que a CIA sabia serem falsos. Seus desenhos são o repúdio definitivo à tortura e a prova de seu fracasso.”
O novo relatório chega em um momento crítico para Zubaydah, que está detido em Guantánamo sob termos kafkianos. Ele é conhecido como o “prisioneiro eterno”, porque não foi acusado de nenhum crime nem lhe foi oferecida qualquer perspectiva de libertação.
Na semana passada, um órgão da ONU pediu que ele fosse libertado imediatamente, ao descobrir que sua detenção em curso pode ser um crime contra a humanidade. A representante legal internacional do detido, Helen Duffy, disse que o julgamento do grupo de trabalho da ONU sobre detenção arbitrária condizia com o relato visual de Zubaydah sobre sua tortura.
“Os desenhos são uma representação muito forte do que aconteceu com ele e são notáveis, considerando que ele não conseguiu se comunicar diretamente com o mundo exterior”, disse ela.
Denbeaux acrescentou que a combinação da intervenção da ONU com os novos desenhos permite reavivar a esperança de que o dilema legal de Zubaydah possa ser resolvido. “A única coisa que o manteve encarcerado foi o silêncio e a escuridão, e agora a luz do sol está brilhando sobre este prisioneiro eterno”, disse Denbeaux.
Os esboços de Zubaydah fornecem um registro visual único do uso da tortura pelo governo dos EUA após o 11 de Setembro. Fitas de vídeo de Zubaydah sendo torturado foram feitas pela CIA, mas depois destruídas, em violação de uma ordem judicial, enquanto o Relatório da Tortura, de 6.700 páginas, elaborado pelo comitê de inteligência do Senado, permanece em segredo há quase uma década após sua conclusão.
Embora o relatório completo do Senado nunca tenha sido tornado público, sua conclusão é conhecida: que o abuso de Zubaydah e outros detidos não conseguiu obter nenhum novo elemento de inteligência. Em outras palavras, a tortura não funciona.
Zubaydah, 52, foi capturado no Paquistão em março de 2002 e levado a várias prisões obscuras da CIA na Polônia, Lituânia e outros lugares. Ele foi a primeira vítima do que viria a ser o uso generalizado de tortura pelos EUA contra suspeitos de terrorismo.
Ele foi transferido para Guantánamo em 2006, e lá está detido desde então.
Os EUA inicialmente alegaram que ele era um dos principais agentes da Al Qaeda, mas foram forçados a admitir que ele nem era membro do grupo terrorista. “Todo mundo concorda, eles torturaram o cara errado. Mas foram em frente, de qualquer maneira, para obter permissão para torturar outras pessoas”, disse Denbeaux.
As representações de Zubaydah são reproduzidas com tanta precisão que os rostos dos agentes da CIA e do FBI foram suprimidos para proteger suas identidades. Eles revelam até que ponto o governo dos EUA violou as leis internacionais e até mesmo suas próprias diretrizes sobre o que chamou eufemisticamente de “técnicas aprimoradas de interrogatório”.
Entre as imagens que o Guardian está publicando pela primeira vez, está uma que mostra agentes mascarados ameaçando fisicamente Zubaydah com estupro anal. O detido também reconstrói a técnica extremamente violenta utilizada contra ele conhecida como “paredamento” (walling).
Em outra imagem, Zubaydah se desenha nu acorrentado na frente de uma interrogadora. Um outro desenho mostra guardas ameaçando profanar o Alcorão – técnicas que nunca foram oficialmente aprovadas pelo Departamento de Justiça.
“A agressão sexual nunca foi aprovada, a nudez nunca foi aprovada, a humilhação por ter mulheres presentes nunca foi aprovada e nem submeter alguém a tortura prolongada ao ponto de exaustão ou pior”, disse Denbeaux. Em seu relato, Zubaydah chama o uso prolongado de múltiplas técnicas de tortura de “Vórtice”.
Zubaydah foi submetido a afogamento simulado, ou “waterboarding”, 83 vezes. O detido registra diferentes variações da técnica, inclusive uma em que foi colocado em uma caixa do tamanho de um caixão que foi então enchida com água até o nariz.
Ele permaneceu “com medo de se afogar o dia todo”, escreve ele.
As anotações de Zubaydah, que foram levemente editadas para melhorar a clareza e a extensão, descrevem os abusos que Zubaydah sofreu pessoalmente como a primeira vítima do programa de tortura americano. Mas Denbeaux disse que seu cliente produziu o material para destacar não apenas seu próprio sofrimento, mas também o de muitos outros submetidos às mesmas técnicas.
De acordo com um resumo de 2014 do relatório do Senado, pelo menos 119 indivíduos foram vitimados pelo programa.
Paredamento (walling)
Zubaydah: Às vezes, eles usavam uma toalha enrolada com fita adesiva que colocavam no pescoço do prisioneiro e o batiam contra o cimento ou a parede de madeira. Eles entravam de repente na cela do prisioneiro e começavam a acertá-lo contra a parede sem nenhuma toalha ou luvas e deliberadamente o golpeavam com força na nuca e nas costas muitas vezes. Continuavam por um longo tempo até que ele desmaiasse. Então eles o acordavam com água fria e continuavam batendo mesmo que ele não desmaiasse, começavam a esbofetear seu rosto enquanto faziam perguntas e xingavam-no verbalmente com linguagem obscena e continuavam a bater forte em sua cabeça, costas e nádegas até cair no chão.
Simulação de afogamento (waterboarding)
Zubaydah: Waterboarding não é apenas usar água e uma prancha. No caso, eles colocavam o prisioneiro em um caixão de madeira por um longo tempo, até ele urinar em si mesmo. Suas mãos estavam atadas atrás das costas ou presas pela frente. Se ele fosse preso pela frente, ficaria assim por vários dias. Eles o deixam imerso em seus próprios dejetos.
Se fosse preso pelas costas… conversavam com ele de uma pequena escotilha na tampa do caixão, perguntando-lhe coisas, e se ele negasse ou jurasse que não sabia, outra pessoa começava a despejar água bem fria com força de outra pequena escotilha. Como o caixão era de madeira, a água vazava, mas lentamente.
Durante esse tempo o investigador fazia perguntas e o ameaçava, então o deixava lá, até que a água chegasse ao nariz, boca, e então ele começava a se mover fortemente com angústia, tossindo [para parar de] se afogar. Então, o investigador se aproximava novamente e a outra pessoa parava de derramar água. A água vazava da caixa, mas o ciclo se repetia, e ele ia ficar com medo de se afogar o dia todo.
O Vórtice
Zubaydah: Este desenho mostra o Vórtice – um uso extremo de restrição, dor, estresse, fome e frio onde eles colocavam o detento para sessões de intensa tortura 24 horas por dia, que continuava por longas semanas ou meses… Eles usavam um método de tortura específico, nesse caso era bater com o pau mantendo o ambiente muito frio, assim a dor era dobrada, e eles focavam em bater até o preso quase desmaiar, ou mesmo desmaiar de verdade. Eles o acordavam de maneira bruta, aí se concentravam em outro método de tortura por uma hora … Então, na hora seguinte, eles usavam um terceiro método e assim por diante até que terminassem todos os métodos. Então, começavam novamente com o primeiro método pela segunda vez, terceira vez e assim por diante, por todo o dia e por toda a duração da tortura, pelo tempo que for.
Interrogadora feminina
Zubaydah: Eu estou sentado na cadeira por longas semanas contínuas e estou completamente nu. Com muita fome. Sinto-me congelado no ambiente muito frio. Quase tenho alucinações por causa da enervação psicológica e da pressão corporal… Além da privação do sono sinto que estou alucinando mesmo. E então uma mulher entra subitamente vestindo roupas muito leves (como se fosse verão). Ela se senta ao meu lado e há dois homens com roupas muito grossas (adequadas para o Polo Norte)…!! Eu não faço nenhum movimento, nem mesmo para cobrir meus órgãos genitais como deveria ser seguindo as boas maneiras e as crenças religiosas, porque realmente no começo eu acho que estou tendo alucinações. Mas quando eles falam comigo… eu cubro minha genitália completamente. Eu gritei para eles: “Pelo menos me deem algo para cobrir minha genitália na frente daquela mulher… Vocês não sentem vergonha de si mesmos?” Eles só me deram um balde de água bem fria. E o derramaram sobre minha cabeça. Não consigo falar por bastante tempo devido ao forte tremor em minha boca e lábios, e por todo o meu corpo. Ela fica sentada, olhando e encarando, esperando que eu respondesse sua primeira pergunta. Ela esperou meia hora sem nenhuma resposta, depois saiu e tremia de frio e raiva.
Ameaça de estupro
Zubaydah: Este desenho mostra como ameaçavam o detento de estupro… Eles costumavam jogar o prisioneiro no chão e segurá-lo de uma forma como se realmente alguém fosse sodomizá-lo, aí começavam a usar expressões sexuais sujas descrevendo a beleza, o tamanho ou a maciez do traseiro dele. Em seguida, iniciavam a humilhação, usando as mãos ou alguns bastões em áreas sensíveis ao redor do ânus. Se o detento resistisse, os outros guardas o colocavam de volta no lugar pronto para praticar sodomia… Eles costumavam dizer bem alto: “Vamos colocar este pau grande ou outro maior no seu ânus para perfurá-lo”… Você pode imaginar as sensações que o preso sofre, como medo, dor e constrangimento.
Ameaça de profanar o Alcorão
Zubaydah: Acho que o diálogo/comentário dentro do desenho é suficiente.
Ameaças com uma furadeira elétrica
Zubaydah: Eu ouvia o som da furadeira em operação com muita força e violência, e nenhum outro som poderia encobri-lo… Eles iam abrir a porta da minha cela (onde eu fico trancado 24 horas por dia) apenas quando os interrogadores/torturadores fossem entrar. Eles abriam a porta da “cela” da pessoa que iam torturar com a furadeira, então eu podia ouvir a furadeira e os gritos, as súplicas e o choro de horror do irmão que estava sendo torturado. Quando desligaram a furadeira, depois de várias horas, pude ouvir o irmão torturado ainda gritando, implorando e chorando, então ouvia o torturador gritando e ameaçando que vai usar a ferramenta para fura a cabeça e/ou pé , e/ou traseiro, e/ou estômago do irmão que está exposto à tortura…
Perfuraram a cabeça do irmão?!! Eles perfuraram seu estômago, seu pé ou seu traseiro?!! Usando a furadeira?!! Todas essas perguntas continuavam passando pela minha cabeça por dias e meses até que um dia eles voltaram e usaram o mesmo método: ameaça com furadeira. Os mesmos sons de horror voltam, e sons de loucura voltam à minha cabeça com novas perguntas: é o mesmo irmão?!! Ele não morreu? Eles não o mataram? Ou este é outro irmão, diferente do primeiro? Quem é o segundo? E quem será o terceiro? Serei eu?