Não se trata de “corrigir as falhas” do mercado, sustenta a economista – mas de superar sua lógicas de captura da riqueza coletiva e concentração de poder. As sementes da mudança já existem. Falta articulá-las em teoria e ação política
Publicado 02/03/2023 às 19:25
Por Mariana Mazzucato | Tradução: Antonio Martins
Após a reunião de governantes, líderes empresariais e sociedade civil no Fórum Econômico Mundial deste ano em Davos, espalhou-se a observação de que vivemos numa era de “policrise”. A ocorrência simultânea de vários eventos catastróficos define o atual ambiente sócio-económico e geopolítico.
Face a desafios tão imensos como o aquecimento global, a crise dos cuidados de saúde, o crescente abismo digital e uma economia financeirizada que amplia as desigualdade de renda e riqueza, não é surpreendente que a desilusão com a política se amplie, criando condições ideais para populistas que prometem soluções fáceis. Mas as soluções reais são complexas e exigirão investimento, regulamentação e inovações sociais, organizacionais e tecnológicas, não só dos governos e empresas, mas também de indivíduos e organizações de toda a sociedade civil.
Os governos, convencidos de que as políticas públicas só podem ter como objetivo corrigir as falhas do mercado, muitas vezes dão respostas insuficientes e tardias. Mesmo bens públicos como o financiamento da investigação e desenvolvimento a nível básico são vistos como formas de corrigir um problema de externalidades positivas, tal como os impostos sobre o carbono corrigem um problema de externalidades negativas. Mas conseguir uma mudança transformadora que produza um crescimento inclusivo e sustentável depende menos da correção dos mercados do que da sua formação e criação. Isto exige complementar a ideia de bens públicos com a do “bem comum”, o que não é apenas uma questão de “o quê” mas também de “como”.
O bem comum é um objetivo a ser alcançado em conjunto através da inteligência coletiva e da partilha de benefícios. Transcende a ideia (na qual se baseia) dos recursos comunitários. Enfatiza a forma de conceber investimentos, inovações e mecanismos de colaboração na prossecução de um objectivo comum. Os bens comuns são o produto de interações e investimentos coletivos que exigem modelos de propriedade partilhada e de governação. Os benefícios resultantes destas atividades devem, portanto, ser partilhados colectivamente. A ideia dos bens comuns também aborda a necessidade de uma governação internacional eficaz, sublinhada na noção de bens públicos globais desenvolvida pela minha colega, a falecida Inge Kaul, que ajudou a inspirar o trabalho da Comissão Mundial sobre a Economia da Água.
Na sua encíclica “Laudato si: Sobre Cuidados com o Lar Comum”, de maio de 2015, o Papa Francisco defende eloquentemente uma forma de pensar baseada no bem comum para um mundo em constante mudança. Não é um idealismo abstrato. A ideia do bem comum fornece um quadro útil para estabelecer objetivos partilhados e determinar como alcançá-los. Francisco fala da necessidade de subsidiariedade (o princípio da resolução de questões particulares ao nível mais local possível) e de ver o mundo através dos olhos das pessoas mais vulneráveis.
Segundo Francisco, a prioridade em todas as mudanças sociais, econômicas e políticas deve ser a proteção das condições essenciais de que depende a vida humana. A tomada de decisões para o bem comum envolve a defesa da dignidade daqueles que são marginalizados em termos sociais, políticos e econômicos, não apenas com palavras, mas com políticas e novas formas de colaboração. Envolve a criação de uma rede de solidariedade através da qual vozes inauditas podem participar em processos decisórios cruciais.
Para atingir estes objetivos, é necessário um novo modelo de crescimento, no qual os atualmente excluídos devem participar, e não um que seja simplesmente implementado em seu nome. Um exemplo são as organizações cooperativas, que têm se mostrado eficazes em reunir pessoas com meios limitados e em dar-lhes oportunidades de ação autônoma que de outra forma não teriam.
Francisco também compreende que em tempos em que alguns setores econômicos têm mais poder do que os governos em certas áreas, é dever do Estado defender o bem comum em nome de todos. Para inverter a tendência e enfrentar os grandes desafios que se avizinham, é necessária uma mudança fundamental na política econômica. Hoje em dia, o princípio do bem comum é visto como uma correção dos excessos do sistema atual. Mas ele deve ser, em vez disso, o objetivo central do sistema.
O dinheiro não é tudo: também é importante encorajar certas formas de colaboração. No caso da covid‑19, o mundo fez um investimento coletivo muito bem sucedido na investigação de vacinas Mas não conseguiu assegurar que o resultado final se traduzisse num “bem comum”: o de imunizar toda a população mundial.
Temos frequentemente uma ideia preguiçosa de “parcerias” entre várias partes. A mera parceria entre as partes não significa que estejam trabalhando em conjunto para o bem comum; para isso é também preciso estabelecer objetivos e harmonizar riscos e benefícios em conjunto. Todos os participantes devem concordar sobre o “o quê”, bem como sobre o “como”. Por exemplo, não se trata apenas de desenvolver vacinas, mas também de torná-las acessíveis a todos.
Com uma abordagem baseada no bem comum, cada passo do processo é quase tão importante como o resultado final. Nos Estados Unidos, o governo gasta centenas de bilhões de dólares por ano em investimento público em Pesquisa e Desenvolvimento no domínio da saúde (em 2022, só os Institutos Nacionais de Saúde forneceram 45 bilhões de dólares), mas depois deixa todos os lucros em mãos privadas. Ao se materializar, a “recompensa” por um esforço coletivo (muitas vezes sob a forma de lucros empresariais, ou como conhecimento valioso), deve ser partilhados tanto quanto foram os riscos.
Como mostro em meu livro Missão Economia, há muitas maneiras de fazê-lo. Uma é condicionar o apoio público a certos requisitos de propriedade intelectual ou de preços; ou exigir a partilha de lucros, por exemplo através de um modelo de participação acionária. Outra forma de encorajar uma distribuição mais equitativa do valor entre todos os membros da sociedade é através de estruturas coletivas de propriedade. Todos estes mecanismos limitam a concentração indevida do poder nas mãos de alguns indivíduos e empresas privilegiadas.
E estes problemas não são exclusivos da saúde. A economia digital tem crescido há anos às custas de um investimento público em grande escala. Como algumas empresas poderosas controlam a maior parte dos dados, tecnologias-chave como a inteligência artificial reproduzem os preconceitos e desigualdades pré-existentes. Para enfrentar esta tendência, precisamos conceber um quadro mais inclusivo e transparente que, por exemplo, imponha certos critérios éticos sobre os termos e condições dos serviços digitais.
Finalmente, é preciso estimular uma maior valorização do poder da inteligência coletiva. Tal como os indicadores ambientais, sociais e de governação empresarial ajudam as empresas a fornecer informação sobre o seu comportamento organizacional e cultura, uma abordagem de bem comum requer um melhor fornecimento de informação sobre as dinâmicas inter-organizacionais e público-privadas, expressando todo o ecossistema de colaboração (ou parasitismo, como também pode acontecer)
A base do bem comum é uma ideia de colaboração intensa, inteligência coletiva, criação conjunta de fins e meios, e uma partilha adequada dos riscos e benefícios. A inovação orientada pela missão e as políticas industriais mostram como estes princípios podem ser postos em prática. Governos ou organizações internacionais podem estabelecer um objetivo claro (muitas vezes através de um processo de consulta com outros interessados) e depois criar as condições para uma colaboração intensa entre os setores público e privado para alcançar esse objetivo. E neste processo, a tentativa e o erro são um elemento crucial. A direção deve ser clara, mas também deve haver amplo espaço para a experimentação descentralizada.
O bem comum é um objectivo comum. Ao concentrar-se tanto na forma como no quê, promove a solidariedade humana, a partilha de conhecimentos e a distribuição coletiva de benefícios. É a melhor (e de fato a única) forma de assegurar uma qualidade de vida decente para todas as pessoas num planeta interligado.