Quase lá: Florestas, água, lítio: feminismos ecoterritoriais contra o sacrifício

No dia 8 de julho passado, na cidade boliviana de Santa Cruz, teve início a segunda edição do curso "De quienes luchan para quienes luchan", organizado pelo Mujeres Creando.

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"Ni la tierra ni las mujeres somos territorio de conquista" (Nem a terra nem as mulheres são território de conquista) tem sido o lema da segunda edição do curso "De quienes luchan para quienes luchan", organizado pelo Mujeres Creando e realizado em Santa Cruz (Bolívia) no início de julho.

A reportagem é de Carolina Meloni González, publicada por El Salto, 05-08-2024. Reproduzido de IHU - Instituto Humanitas Unisinos

 

"A terra e suas formas de vida
não são substituíveis pelo capital"
Yayo Herrero

(graffiti do Mujeres Creando em Santa Cruz, Bolívia)

No dia 8 de julho passado, na cidade boliviana de Santa Cruz, teve início a segunda edição do curso "De quienes luchan para quienes luchan", organizado pelo Mujeres Creando. Ao contrário da edição anterior, o foco deste encontro esteve nas perspectivas e lutas ecofeministas. Daí o seu lema, "ni la tierra ni las mujeres somos territorio de conquista", uma consigna política com a qual o movimento anarcofeminista boliviano vem trabalhando há alguns anos, de importância vital em sua proposta de despatriarcalização e descolonização radical de corpos, sujeitos, desejos e instituições. Parte deste trabalho político feminista tem outro eixo fundamental: a deselitização do conhecimento e a produção crítica de pensamento. Esse é o objetivo desses cursos, que funcionam como verdadeiros laboratórios de criação epistêmica para toda a América Latina. Nestes laboratórios contra-acadêmicos, as fronteiras entre teoria e prática se dissolvem, em um processo de emergência de uma verdadeira comunidade de aprendizagem horizontal para pensar, elaborar, resignificar conceitos, teses e teorias críticas que realmente sirvam para transformar o mundo.

Por tudo isso, nesta edição, o perfil das estudantes já nos indicava as temáticas urgentes a abordar. Tanto professoras quanto alunas trazem ao curso vastas experiências de luta e militância. Havia um total de sessenta estudantes de diferentes territórios do continente, do México ao Cone Sul. A maioria delas vive em áreas hoje denominadas "zonas de sacrifício", relacionadas diretamente com os processos extrativistas e colonizadores contemporâneos. O desaparecimento de florestas, rios, salares e ecossistemas, a escassez de água em suas comunidades, as secas e incêndios, as graves consequências da agroindústria com seus pesticidas, poluição e extensas plantações de soja, além da febre do lítio, são apenas algumas das marcas que marcam os rostos dessas mulheres. Muitas delas são de povos originários, os mesmos povos que carregam em suas mãos, costas e vozes as lutas ancestrais contra o roubo e o saque de terras, recursos naturais e conhecimentos.

Conversei com algumas dessas estudantes e ativistas históricas sobre o que está acontecendo em algumas regiões da América Latina. A conjuntura política atual de muitos desses países está atravessada por uma nova febre. Se nos séculos passados o ouro, a borracha, o açúcar, o guano ou a soja marcavam e dirigiam os processos econômicos, colonizadores e de escravidão, hoje são os minerais críticos que o fazem. Mas também a água doce, em um contexto de emergência climática. O chamado "triângulo do lítio", de uma perspectiva meramente econômica e geopolítica para o Norte global, afeta diretamente as comunidades e povos originários da Argentina, Bolívia e Chile. Enquanto isso, a falsa ideia de progresso e desenvolvimento é usada pelos governos para devastar espaços naturais, transformados em fontes de negócio.

De salares, lítio e flamingos

Cristina Dorador, cientista, ecóloga microbiana e professora do curso, afirma que "não se pode falar de lítio sem falar de salares". Esta bióloga chilena estuda há anos as regiões de Atacama e Antofagasta, de onde ela mesma é originária. Graças às suas aulas, fomos capazes de modificar nossa visão limitada de um salar andino, um ecossistema complexo povoado por vida microbiana, de beleza árida, com águas subterrâneas e lagoas gelatinosas onde vivem tipos específicos de flamingos. Hoje, essas paisagens brilhantes estão em perigo. A mistura danosa entre turismo de massa, que aspira a nadar em suas estranhas lagoas, e o tesouro mineral escondido em seus solos está transformando essas áreas em zonas de sacrifício, destinadas ao lazer e consumo dos países do Norte.

85% das reservas mundiais de lítio estão concentradas em três áreas no sul da América: os salares de Jujuy, no norte da Argentina, o grande salar de Uyuni, na Bolívia, e o deserto de Atacama, no Chile. O lítio, junto com outros minerais críticos (como cobalto, níquel, zinco), é um dos mais desejados pelas multinacionais estrangeiras, ávidas por essas novas fontes de energia usadas em baterias de carros elétricos, painéis solares, turbinas eólicas, celulares, computadores, etc. Enquanto o Norte prepara sua transição energética em direção a um consumo supostamente menos poluente, o Sul Global volta a pagar a conta deste processo, com despojo de terras, extração de matérias-primas, repressão de populações originárias, miséria e mais miséria, fome, lixo energético, recursos naturais e humanos dizimados. Este coquetel extrativista e destrutivo transforma um território, um lugar vivo, em "território de sacrifício", já que tudo o que compõe sua história e diversidade humana, animal, vegetal e até microbiana, acaba por desaparecer e ser eliminado sob falsas consignas ecológicas e pseudoprogressistas do mundo privilegiado. Como Yayo Herrero aponta, também participante do corpo docente do curso, "há um conflito brutal entre o capital e a vida".

Diante desta situação urgente, foram principalmente as mulheres que lideraram as lutas. No caso da Argentina, a província de Jujuy, que faz fronteira com a Bolívia, é uma das mais afetadas. No ano passado, o governador dessa província, Gerardo Morales, aprovou uma reforma sem consulta às comunidades originárias (mais de 400 comunidades indígenas vivem nestes territórios e são suas proprietárias desde tempos ancestrais). Além de mais precariedade e pobreza, a reforma implica uma séria modificação no uso dos recursos naturais e das terras dessas comunidades, terras que serão entregues a multinacionais imperialistas para exploração. Durante o convulso mês de junho de 2023, ocorreram protestos, manifestações e ações de resistência, que foram brutalmente reprimidas, incluindo o aprisionamento e tortura de muitos manifestantes. Por trás da reforma de Morales está a empresa israelense Mekorot, que assumiu a gestão da água de 18 províncias argentinas. Também a Tesla e seu excêntrico dono Elon Musk, hoje um dos interlocutores favoritos do governo de Milei. Os salares e todo o ecossistema que os compõe são vendidos e fatiados para o melhor licitante.

Desta situação extrema surgiu o chamado Terceiro Malón da Paz, um movimento pacífico de indígenas, cujo nome remonta aos chamados "malones mapuches" que saqueavam e atacavam as estâncias dos crioulos e colonizadores. Um malón não é senão uma técnica de guerra e resistência. Um malón, como afirma María Farfán (Marita de Humahuaca), "é uma forma de fazer justiça". Em julho de 2023, partiu o Terceiro Malón da Paz rumo a Buenos Aires. Sete dias de marcha a pé, atravessando várias províncias argentinas, com a firme convicção de denunciar a violência sofrida pelo governo provincial. Em Buenos Aires, no entanto, não foram apenas ignoradas pelo governo de Alberto Fernández, mas também foram atacadas, violentadas e sofreram todo tipo de atos racistas daquela Argentina branca que sonha com suas supostas origens europeias. Permaneceram quatro meses na capital, sem resposta alguma.

Para Susana Colpares, membro do Terceiro Malón e pertencente ao Povo de Humahuaca, "o governador fez a reforma para permitir o saqueio, mas nós despertamos". Despertaram as mulheres da Quebrada, da Puna, das Yungas, colocaram seus corpos em defesa de seus territórios, apresentaram um relatório ao Alto Comissariado das Nações Unidas, que acabou declarando que o que ocorreu em Jujuy poderia ser considerado um crime contra a humanidade. Estela Martínez, comunitária e presidente da Comunidade de Escobar Tres Cerritos, pertencente à Nação Kolla, ergue seu olhar e nos diz: "se eu tiver que morrer, vou morrer defendendo meu território". Pois nessa defesa do território está a defesa de um mundo inteiro, diante do olhar mercantilista que concebe a natureza como um mero recurso para exploração.

Cruzando a cordilheira, Carolina Soto Poblete, conselheira da Comuna San Pedro de Atacama, nos conta a situação semelhante vivida no Chile. Nesta área, duas empresas detêm o monopólio da gestão mineira, de águas, eletricidade e agora do lítio. Por um lado, a Albemarle, multinacional americana, e por outro, a SQM, empresa chilena atribuída pelo ditador Augusto Pinochet a seu genro, Julio Ponce Lerou. As alianças dessas corporações com Elon Musk estão causando sérios problemas de escassez de água, cortes de energia e falta de eletricidade em praticamente todas as comunidades da região. Os apagões são frequentes, a água foi privatizada e nos últimos anos, as tarifas de luz aumentaram em 80%, nos conta Carolina Soto. Conseguiram levar essas pequenas populações ao limite, que acabam por aceitar a "salvação" oferecida pelas empresas estrangeiras. Um verdadeiro intercâmbio de favores entre o empresário proprietário da Tesla, que até doou baterias no valor de cinco milhões de dólares para resolver os problemas de eletricidade na região. Em troca, mais uma vez, a entrega dos recursos e bens naturais para a exploração do lítio. A história parece repetir-se de forma perversa e a filantropia civilizatória do gringo esconde o roubo e o saque dos bens comuns.

Outra das lutas que fizeram parte do curso ocorre na região boliviana do TIPNIS (Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Sécure), localizado entre os departamentos de Beni e Cochabamba e uma das áreas de biodiversidade mais ricas do planeta. Considerada em 2011 como "zona intangível" pelo governo de Evo Morales, seria o próprio Morales quem iniciaria o processo de não reconhecimento deste ecossistema como um bem a ser protegido. A origem do conflito remonta a 2007, quando o governo boliviano decide construir uma estrada que atravessa o TIPNIS, dividindo-o ao meio. Marqueza Teco, líder e ex-presidente da Subcentral das Mulheres do TIPNIS, nos conta a longa jornada de suas lutas. Além de liderar a Gloriosa Oitava Marcha Indígena de Trinidad a La Paz, em agosto de 2011, também levaram suas demandas ao Tribunal Internacional pelos Direitos da Natureza em Bonn, Alemanha, onde denunciaram o governo de Evo Morales por não cumprir a lei 180 que protegia este parque natural. "Pedimos diálogo —afirma dona Marqueza— e só houve repressão".

O conflito do TIPNIS não se resume apenas à construção da estrada, mas também à possibilidade de exploração dos depósitos de hidrocarbonetos que se supõe existirem na área. Essa exploração foi concedida a empresas brasileiras, como é o caso da construtora OAS. A contaminação e destruição dos aquíferos da região é um dos maiores perigos enfrentados. Convivem nestes territórios mais de 100 espécies diferentes de mamíferos, 470 espécies de aves, répteis e anfíbios diversos com mais de 3000 espécies diferentes de plantas. "Os povos indígenas", diz dona Marqueza, "somos os guardiões da terra". Guardiãs e guerreiras diante deste ataque brutal à vida.

Em uma das sessões do curso, pudemos refletir juntas sobre o complexo conceito de "território". Além da questão geográfica, os povos de Abya Yala expandiram a ideia espacial do lugar de origem. Trata-se de uma ideia holística de terra, onde são numerosos e diversos os seres e entidades que a habitam. Um território é um conjunto heterogêneo e diverso de experiências, onde se misturam história, vida comunitária, gestão econômico-social, espiritual, ancestral e cosmológico. Em um território comunitário podemos encontrar espaços sagrados, lugares de luto e memória onde repousam nossos entes queridos, espaço-temporalidades presentes, ausentes e futuras que tecem nossa história. É urgente pensar no futuro, ressignificar a utopia, construir mundos. "É preciso romper com o desespero", afirma Cristina Dorador. E se nossos territórios foram investidos pela cruel ideia de que só podem servir como suprimentos e matérias-primas, a luta política também consiste em repovoá-los com outros significados e afetos.

Entre tantas definições dadas, ecoam na sala de aula os versos do grande Atahualpa Yupanqui, recordados por María Galindo: "el hombre es tierra que anda… (y vuelve)". Somos territórios em movimento. Somos terra povoada por vaga-lumes, yungas, águas doces e salares insondáveis. Toda uma ontologia relacional na qual não há lugar para uma hierarquia humanista. Uma crítica radical ao Capitaloceno surge no olhar múltiplo de tantas mulheres. "Nós estamos integradas no território", afirma Marita de Humahuaca, "com a lua, o sol e as estrelas". Para Marqueza Teco e suas filhas, o território é o rio, os ciclos da água, as distâncias que só podem ser medidas pelo caudal da corrente e pela possibilidade de navegá-lo. Para Susana Colpares, seu território é a Puna, sair para a estepe, olhar o horizonte povoado de lhamas, erguer o olhar para o céu límpido da Quebrada. E diante do olhar predatório, limitado e obtuso, que só vê nesses paisagens recursos consumíveis e exploráveis, Marita de Humahuaca nos propõe uma "luta amorosa", porque só sentindo amor por nossos territórios, podemos lutar para preservar outro mundo. Porque para quem olha sem ver, a terra é apenas terra. A pampa não diz nada, nem o riacho, nem o sauzal (Atahualpa Yupanqui).

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/642043-florestas-agua-litio-feminismos-ecoterritoriais-contra-o-sacrificio

 


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