As lutas feministas muitas vezes foram construídas contra as religiões monoteístas, consideradas patriarcais. Mas mesmo dentro das comunidades religiosas, as vozes feministas se manifestaram desde o século XIX. Lutar pelos direitos das mulheres sem negar a fé.
A reportagem é de Gaétan Supertino, publicada por Le Monde, 08-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini. Publicado no Instituto Humanitas Unisinos em 15/3/24
“Alguns consideravam impossível a proximidade entre uma religião tão venerável e uma novidade tão audaciosa. Mas um pequeno grupo de mulheres distintas, lutando valorosamente e com talento, conquistou um lugar de destaque", escreveu Charles Turgeon em 1902 no Le Féminisme français (Hachete). O historiador falava de um movimento inédito: um feminismo dentro da religião católica.
No seu primeiro aparecimento, as lutas feministas muitas vezes foram construídas contra as religiões, daí a impressão de uma “proximidade impossível” entre as duas esferas. No século XIX, as grandes figuras fundadoras do feminismo eram em grande parte provenientes da burguesia liberal ou dos ambientes socialistas, e se opunham a instituições religiosas acusadas "de inculcar explicitamente uma moral familista inteiramente dominada pelos valores patriarcais”, segundo as palavras de Pierre Bourdieu em La domination masculine (Seuil, 1998). No entanto, o grito feminista às vezes veio também de dentro das religiões.
As pioneiras protestantes e judias
Na década de 1930, algumas intelectuais protestantes como a francesa Eugénie Niboyet (1706-1883) e Jenny d'Héricourt (1809-1875) participam da "primeira onda" do feminismo, exigindo o direito de voto para as mulheres, um melhor acesso à educação e uma redefinição de papel da mulher na família e na sociedade. Logo se juntam a elas várias associações femininas protestantes de caráter filantrópico ao longo da segunda metade do século XIX. E são ainda as protestantes que animam, no alvorecer do século XX, o congresso das obras e instituições femininas para as protestantes, uma das pontas de lança do feminismo francês.
“A ênfase colocada desde o século XVI no acesso dos fiéis ao texto da Bíblia levou a um importante investimento protestante na educação, inclusive das meninas. Na França, Inglaterra ou Alemanha no início do século XX, as jovens protestantes vindas das classes médias ou abastadas têm uma escolaridade mais elevada que as jovens católicas", analisa a historiadora Mathilde Dubesset.
Muitas mulheres judias também logo se juntaram às fileiras dos movimentos feministas. "O acesso ao ensino superior das mulheres judias europeias desde o século XIX permite-lhes participar, em diferentes modalidades, dessa ação para o mundo. (…) Desde as origens do movimento feminista, as mulheres judias estão super-representadas”, relata o historiador Vincent Vilmain (Nelly Las. Voci ebree nel femminismo. Honoré Champion, 2011), sublinhando, entre outras coisas, os numerosos obstáculos que elas tiveram que superar: “As ligas antissemitas femininas em Viena ou em Berlim se opõem ao feminismo [percebido] como doutrina judaica. As mulheres judias se veem lidando com esse leitmotiv, que também está sendo aplicado à maçonaria e ao socialismo”.
Um feminismo católico plural
No final do século XIX, e muitas vezes em oposição a um determinado feminismo liberal apoiado por figuras judaicas e protestantes, nasce o “feminismo católico”. Esse movimento escolhe a jornalista Marie Leonne Maugeret (1844-1928) como “apostola”, escreve Charles Turgeon. Fundadora da Sociedade das Feministas Cristãs em 1896, Marie Leonne Maugeret pretende "fazer com que as ideias feministas penetrem nos ambientes cristãos e as ideias cristãs nos ambientes feministas”. Ressaltamos que Marie Leonne Maugeret é também a fundadora da Union nationaliste des femmes françaises, uma associação antidreyfusarde que tinha como objetivo, entre outras coisas, "lutar contra o perigo judaico"!
Dos sindicatos livres femininos ao grupo Femmes et hommes en Eglise, passando pela Aliança internacional Joana D'Arc ou pela Federação Nacional de Saint-Jean-Baptiste em Montreal, várias organizações que estão ligadas tanto ao catolicismo quanto ao feminismo, se difundem no século XX, tanto na França como no Quebec. “Ao feminismo liberal que apoia o direito ao divórcio, a limitação dos nascimentos, a organização individualista da vida e a licença em todas as suas formas, a Igreja opõe o feminismo cristão, que quer obter para as mulheres certos direitos, mas em vista do cumprimento integral dos seus deveres", escreve em 1932 a religiosa canadense Marie Gérin-Lajoie (1880-1971) em Le Retour de la mère au foyer.
As lutas assumidas pelas feministas católicas, contudo, foram de natureza muito diferente. Associações como a Union Spirituelle des Femmes chegaram a reivindicar, desde a década de 1930, a ordenação das mulheres e lutaram com unhas e dentes para que a autoridade paterna ceda o lugar para a “autoridade parental” ou para contestar o “dever de procriação”. Alguns outros movimentos concentrar-se-ão, em vez disso, no terreno dos direitos civis e sal ariais, sem pedir uma revolução na Igreja. Outros, finalmente, criticarão a instituição católica de dentro das suas engrenagens para pedir um melhor acesso aos debates e aos ensinamentos teológicos, e também para obter maiores responsabilidades na animação das comunidades, como é o caso na França da Irmã Françoise Vandermeersch (1917-1997), emblemática diretora da revista Echanges de 1950 a 1975.
No entanto, até ao século XXI, foram raras as feministas católicas que ousaram criticar abertamente as posições da Igreja sobre temas sociais importantes, como a contracepção ou o aborto. Aquelas que ousam, muitas vezes colocam-se à margem da instituição, como Femmes et hommes en Eglise, movimento criado por volta de 1970 e que foi muito ativo nas últimas décadas do século XX.
A esfera feminista católica recebeu recentemente novo vigor através da criação de outros movimentos como o Comité de la jupe (criado em 2008 depois do Arcebispo de Paris, André Vingt-Trois, ter declarado na Rádio Notre Dame: “O mais difícil é ter mulheres que tenham uma formação. Não basta ter uma saia ("une jupe"), é preciso ter algo na cabeça"), Des femmes et un Dieu (2019) ou Oh my Goddess! (2019) na França, ou redes de associações internacionais, como Noi siamo Chiesa, o Catholic Women’s Council ou ainda a Women’s Ordination Conference. Todos esses movimentos tentam, à sua maneira, reformar a Igreja a partir de dentro para melhorar o lugar das mulheres, ao mesmo tempo defendendo convicções próximas aos movimentos feministas não-confessionais sobre temas sociais.
“As feministas islâmicas estão ganhando espaço”
Como estão as coisas com o feminismo no Islã? As aspirações feministas não se limitam às fronteiras do Ocidente. Em 1848, a poetisa e teóloga iraniana Fatemeh (1817-1852) chocou os seus ouvintes ao aparecer sem véu numa conferência. Criticada por suas posições feministas, foi condenada por assassinato quatro anos depois. Antes da execução, teria gritado: “Vocês podem até me matar, mas não conseguirão impedir a emancipação das mulheres”.
No entanto, o feminismo muçulmano realmente só apareceu muito mais tarde, por volta de 1990, de acordo com a historiadora Stéphanie Latte Abdallah. “Teceu-se um movimento transnacional (...).
Surgiram algumas redes globais como o movimento que pede a igualdade dos direitos dentro da família, Musawah, o Comitê Consultivo Transnacional das Intelectuais e teólogas, o Global Women’s Shura Council, ou as conferências organizadas pela Junta Islâmica em Barcelona entre 2005 e 2010. Além disso, dentro dos países, feministas islâmicas estão ganhando espaço nas instituições religiosas existentes. Por fim, o feminismo se difundiu, certamente de maneiras muito diferentes dependendo do país, na sociedade civil, nos movimentos sociais e depois nos movimentos políticos", resume a pesquisadora no livro Normes religieuses et genre. Mutations, résistances et reconfiguration (Armand Colin, 2013).
O feminismo muçulmano também assume múltiplas formas, dependendo dos países e dos ambientes onde emerge. Algumas figuras se declaram feministas, muito conservadoras, por vezes próximas à Irmandade muçulmana, lutam por maior igualdade nos direitos civis sem enfrentar os dogmas religiosos tradicionais nem discutir a ideia de diferença entre os sexos. Outras, porém, vão muito mais longe, defendendo uma concepção universalista e rejeitando qualquer desigualdade entre os sexos.
Alguns debates - como aquele sobre a liberdade de usar ou não o véu - resultaram por vezes em fortes divergências entre as feministas muçulmanas e os movimentos laicos ocidentais, cujas militantes e cujos militantes mostram-se refratários a qualquer forma de fato religioso, julgado patriarcal por definição.
Mas, em vários países, estão ocorrendo mudanças, segundo o que afirma a socióloga Malika Hamidi (La Révolution des féminismes musulmans, Diversitas, 2023). “Já é possível inserir-se nos movimentos feministas ocidentais, pois a sua luta é, em última análise, aquela de própria definição do movimento feminista, ou seja, a luta contra as diferentes formas de subordinação das mulheres, testemunha Assia, uma das entrevistadas pela pesquisadora, mesmo que uma minoria ainda acredite ter uma missão civilizatória a cumprir”.
Teologia feminista
Com o passar dos anos, os feminismos religiosos de todas as denominações expandem o seu corpus doutrinal. Desde os anos 1970-80, desenvolve-se uma verdadeira “teologia feminista”, primeiro apoiada por figuras judaicas e cristãs, depois muçulmana nos anos 1990. O seu objetivo: reinterpretar os textos sagrados num sentido mais favorável às mulheres.
O Gênesis não conta que Deus criou o “homem” à sua imagem? “Deus criou o humano à sua imagem, homem e mulher, ele os criou" (Gn 1,27), frisam as exegetas feministas. Os doze apóstolos eram todos homens? Talvez, mas acima de tudo Jesus havia instaurado um ministério “desestabilizador, inclusivo e não hierárquico”, rebate, por exemplo, a teóloga protestante Sallie McFague. O Alcorão confia aos homens a qiwana, a autoridade do casal? Falso, respondem os teólogos e as teólogas feministas muçulmanas: a qiwana vai para aquele, aquela ou aqueles que têm a capacidade de criar uma família.
As figuras femininas dos textos sagrados também são trazidas para o primeiro plano, como Miriam, irmã e salvadora de Moisés, que a Bíblia apresenta como uma “guia” do povo judeu, Maria Madalena, primeira testemunha da ressurreição de Cristo nos Evangelhos, ou Khadija, primeira esposa do profeta Maomé, descrita como uma mulher corajosa e sábia.
As feministas religiosas também defendem a visão de um Deus neutro, que não é homem nem mulher. “Para as teólogas feministas, a suposta masculinidade de Deus, como se encontra tanto na linguagem das escrituras e litúrgica quanto no uso comum, é o principal obstáculo a uma teologia mais adequada para Deus, que dê atenção suficiente ao mistério radical de Deus", resume Susan A. Ross, professora associada de teologia na Universidade Loyola de Chicago (“Féminisme et théologie”, na revista Raisons politiques 2001, n°4).
Um balanço claro e escuro
Qual é o resultado de suas lutas hoje? Ao longo do século XX, as feministas religiosas acompanharam as feministas laicas e participaram das suas inúmeras vitórias, especialmente no Ocidente: direito ao voto, acesso à educação, fim da autoridade do marido dentro do casal, etc. Em muitos países muçulmanos, especialmente no Magrebe, o direito à poligamia foi gradualmente limitado e a idade legal para o casamento das mulheres alinhou-se progressivamente com aquela dos homens.
Até mesmo dentro dos círculos religiosos, as coisas mudaram. Desde a década de 1930, as mulheres tornam-se rabinas ou pastoras (por vezes até bispas, especialmente nos países do norte da Europa). Os direitos das religiosas católicas tornaram-se mais próximos daqueles dos monges, as mulheres têm acesso a numerosos cargos como professoras de teologia. Na África do Sul, na América do Norte e na Europa, mulheres imãs conduzem orações mistas. Na Índia, têm acesso até a cargos de mufti, o que as autoriza a emitir pareceres jurídicos (fatwa).
Apesar disso, as feministas religiosas ainda enfrentam numerosos obstáculos. Na Igreja católica, as grandes decisões são sempre tomadas pelo clero exclusivamente masculino. No Judaísmo, o divórcio religioso é muitas vezes condicionado apenas pela decisão do marido. Em muitos países muçulmanos, as leis sobre a herança continuam a beneficiar os homens.
Exemplos desse tipo poderiam ser multiplicados. “No seu centro, as instituições de crença manifestam uma forte resistência às mudanças em curso", resume o historiador das religiões Philippe Portier no posfácio do livro Normes religieuses et genre. Mutations, résistances et reconfiguration (Armand Colin, 2013). E depois especifica: “Isso não significa que nas 'periferias' não surjam heterodoxias que delineiam, a partir de releituras indisciplinadas do corpus sacrossanto, normas de existência mais amplas”.
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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/637447-como-o-feminismo-religioso-desafia-o-patriarcado