Indígenas recém-eleitas propõem: é hora de aldear a política – e criar frente em defesa dos povos, em contraposição à agenda ruralista no Congresso. Em pauta, o combate à devastação ambiental e ao avanço das mineradoras – e a luta pela demarcação
Por Karina Gomes, na DW Brasil
“Vamos enfrentar, contrapor, passar de frente. Mesmo que um retrocesso seja aprovado na Câmara, não vai passar de graça. Vamos pintar o Congresso com a nossa força”, afirma a parlamentar eleita Sônia Guajajara, a primeira deputada federal indígena (PSOL-SP) já eleita pelo estado de São Paulo. Ela garante que “toda e qualquer medida que represente retrocesso aos povos indígenas e viole direitos” terá antes que passar pela resistência da futura Bancada da Terra, no Congresso Nacional.
“Vamos lutar ao som do maracá [instrumento musical indígena], com a força do cocar, com urucum e jenipapo [elementos naturais usados em pinturas corporais indígenas]”, diz Guajajara, ativista indígena na lista das cem pessoas mais influentes no mundo da revista Forbes e que disputou em 2018 as eleições presidenciais como vice de Guilherme Boulos pelo PSOL.
Guajajara foi eleita deputada federal com 156.963 votos, ao lado de Célia Xakriabá (PSOL-MG), primeira deputada federal indígena eleita por Minas Gerais, com 101.154 votos. Juntas, Guajajara e Xabriabá estreiam no Congresso com duas pautas prioritárias: a defesa do meio ambiente e a retomada da demarcação de terras indígenas que já têm estudo concluído.
“Embora não sejamos nem 1% da população brasileira, somos 5% da população mundial que protege cerca de 80% da biodiversidade do planeta [dados da revista Nature]. Nós apresentamos a solução número um para barrar a crise climática. E se as pessoas estão realmente preocupadas com a economia, o crime de ecocídio vai custar muito mais caro para o Brasil e a humanidade”, afirma Xakriabá, mestre em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Aldear a Política
A chegada ao Congresso das duas ativistas pelos direitos dos povos indígenas e tradicionais é resultado do processo de mobilização e organização desses povos por mais representação política, diante de pautas cruciais que estão sendo atacadas, comenta o assessor legislativo do Instituto Socioambiental (ISA), Kenzo Jucá.
O movimento denominado Aldear a Política foi orquestrado por organizações como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) para viabilizar a eleição de mais candidaturas indígenas e implementar uma bancada em Brasília. “A representação indígena é mais do que urgente, é uma questão de vida e resistência num contexto em que estão claros os interesses pela eliminação dos povos originários por meio dos ataques aos seus territórios. É uma articulação por uma reparação histórica que vem para romper com o avanço do projeto genocida e de privilégio de lucros e exploração da natureza em detrimento da vida”, afirma Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib.
“A vitória indígena é um momento histórico. A democracia não é ouvir a maioria, é ouvir todos. A nossa luta é um ‘quarto poder’. Vamos enfrentar a bancada ruralista. Os processos de luta mudam decisões e podemos revertê-las”, diz Xakriabá ao se referir a projetos de lei, como o PL 191/20, sobre a mineração em terras indígenas.
Candidaturas de mulheres indígenas aumentaram 189% em 2022, passando para 84. “Sempre quis representar melhor o meu povo nos espaços de decisão. A negação de direitos mostrou a necessidade de aumentarmos a representatividade dos povos indígenas, como parte de um ideal coletivo”, explica Guajajara.
Xakriabá complementa: “É contraditório ver que o Brasil começou por nós, mas há uma ausência histórica [nas decisões], e precisamos superar essa dívida com os povos indígenas”.
“É preciso dar um basta a essa violência”
Em 2018, Joênia Wapichana (Rede-RR) teve uma conquista histórica como a primeira indígena eleita para a Câmara dos Deputados. A advogada foi responsável por articular a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, com 237 parlamentares, como contraponto à Frente Parlamentar da Agropecuária.
Agora, as novas eleitas querem recompor a frente que representa os povos indígenas para ser mais atuante e também pautar a formação da Bancada da Terra, que, além de indígenas, deverá reunir representantes de grupos como Movimento dos Sem Terra (MST), Movimentos dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e ambientalistas, para se contrapor à bancada ruralista.
“É preciso dar um basta a essa violência contra a demarcação de terras indígenas e a regularização fundiária, que provocam aumento de conflitos. Faremos frente à qualquer proposta que preveja a mineração em terras indígenas e vamos evidenciar as consequências dos garimpos. Queremos uma política de proteção e fiscalização ambiental para garantir a segurança da população indígena e das lideranças nos seus territórios”, detalha Guajajara.
Um série de projetos na pauta de prioridade de setores e bancadas com alto número de parlamentares, como a bancada ruralista, atacam direitos assegurados para os povos indígenas. “Diante desses retrocessos, a eleição de duas deputadas do movimento indígena dá alento e perspectiva de que teremos capacidade de resistência no Congresso, bem maior do que havia até então. O trabalho conjunto com outras frentes parlamentares, como a da Agricultura Familiar e a Ambientalista, será fortalecido”, projeta Jucá.
Para o assessor legislativo do ISA, a correlação de forças não muda significativamente com a nova configuração do Congresso. “Entraram figuras novas que devem servir como animadores de bancada. É um baixo clero que prega o retrocesso socioambiental, mas tem capacidade de influência reduzida por representar interesses ligados ao crime organizado e à ilegalidade e que tem pendências judiciais, como Salles [Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro e eleito deputado federal pelo Partido Liberal (PL)]”, opina. “E no Senado vão mais fazer política do que legislar.”
Xakriabá destaca que a futura Bancada da Terra irá “assinar e não assassinar direitos, porque a caneta tem sido a arma do século 21”. “Nós estamos preparadas para reflorestar e mulherizar a política. Vamos fazer do Salão Verde [da Câmara] um reflorestar da política com nossos corpos, porque ali é um salão verde desmatado. Nosso jeito de fazer política é inspirado na nossa sabedoria ancestral. Não será fácil, mas para nós, povos indígenas que sabemos o que é o Brasil de 522 anos, estamos mais que preparadas para estar neste lugar.”
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