Nossa hipótese: a campanha contra o BPC e as exigências punitivas expressas em projeto que tramita no Senado tentam impor, a partir de técnicas administrativas, mais uma derrota à parcela mais vulnerável da população brasileira
Publicado 14/10/2024 às 17:44
Foto: Alexandre Laprise/Shutterstock
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Por Tadeu Alencar Arrais e Tathiana Rodrigues Salgado, em A Terra é Redonda
O BPC não é uma sigla qualquer. O Benefício de Prestação Continuada, também conhecido pelos beneficiários como LOAS, abreviação da Lei Orgânica de Assistência Social (Brasil, 1993), beneficiou, em junho de 2024, 6.036.540 pessoas, o que gerou uma despesa mensal, registrada em julho de 2024, de 7,49 bilhões de reais. O valor é de 1 Salário Mínimo para idosos pobres a partir de 65 anos de idade e portadores de deficiência também em situação de pobreza.
A definição de elegibilidade ocorre partir da renda per capita do grupo familiar, igual ou menor que ¼ do Salário Mínimo, o que, em setembro de 2024, correspondeu a R$ 353,00. Esse corte de renda é menor que aquele que, no Cad-Único, define a situação de baixa renda, equivalente a ½ Salário Mínimo por pessoa. Estamos a tratar, considerando apenas o filtro da renda, de um grupo de pessoas extremamente vulnerável.
A concessão desse volume e valor de benefícios sociais não contributivos, para aqueles pouco familiarizados com a geografia social do território brasileiro, pode ser interpretado como assistencialismo extremo ou mesmo, nos casos em que a desinformação impera, uma demonstração de fraude. Mas o impacto do BPC transcende os mais de seis milhões de beneficiários. Isso porque o BPC nunca é um benefício de concessão isolado. Sendo o beneficiário um idoso comprovadamente pobre de 65 anos ou mais ou um portador de deficiência comprovadamente pobre, frequentemente demandará o acompanhamento diário e contínuo de outra pessoa.
No caso dos idosos, basta lembrar que o cuidado recairá, quase sempre, para uma pessoa, muito frequentemente mulher, do grupo familiar. É o benefício de um que permite que esse um seja cuidado por outro. No caso dos benefícios de para portadores de deficiência, a situação é ainda mais complexa. Doenças neurológicas graves, como escleroso ou paralisia cerebral, demandam cuidado contínuo. As doenças degenerativas, como Alzheimer, os transtornos mentais, como esquizofrenia ou mesmo as doenças que comprometem a mobilidade, entre tantas outras, impossibilitam ou limitam as possibilidades de autocuidado e o exercício de atividades laborais.
Imaginem, por exemplo, as condições de reprodução da vida de uma jovem mulher pobre que cuida, na solidão reservada às mães, de um filho diagnosticado, desde o parto, com microcefalia.
Imaginem, por exemplo, as condições de reprodução de vida de um jovem motociclista entregador por aplicativo que, em razão de um acidente durante a atividade laboral informal, amputou um dos membros inferiores.
Imaginem, por exemplo, as condições de reprodução da vida de um homem adulto, sem renda, diagnosticado com a doença de Alzheimer, cujas sequelas reduzem, gradualmente, as possibilidades de autocuidado.
Imaginem, por exemplo, as condições de reprodução da vida de uma mãe solo, de baixa renda, cujo filho foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista.
Mas como os beneficiários do Benefício de Prestação Continuada estão distribuídos no território nacional? Isso é importante considerar, especialmente quando tratamos de políticas públicas, uma vez que a acessibilidade e as condições de mobilidade, assim como a disposição de infraestrutura física e de pessoal relacionadas à Assistência Social, são muito diferentes nos 5.568 municípios.
Os desafios da universalização dos serviços públicos e das ações da Seguridade Social são gigantescos. Universalizar significa disponibilizar infraestrutura física e pessoal, do ponto de vista dos serviços públicos, para os 8,5 milhões de quilômetros quadrados de um território ecologicamente diverso e diversamente integrado, quando consideramos as trocas regionais e a circulação de mercadorias e serviços. Universalizar significa reunir esforços para combater, cotidianamente, a vulnerabilidade e os riscos que dela decorrem.
A Figura 1 espacializa, a partir da escala municipal, a participação do total de beneficiários do BPC em relação a população total dos municípios. O mapa pode ser lido como uma representação da vulnerabilidade brasileira. Entre os 10 municípios com maior participação percentual, 8 situam-se na Bahia. Em 643 dos 5.668 municípios brasileiros, registramos a participação do BPC superior à 4% da população municipal.
O perfil regional coloca evidência não apenas as questões relativas ao desenvolvimento regional brasileiro, mas também à logística de acessibilidade que permite ao beneficiário requerer e, ao mesmo tempo, sacar os benefícios nos bancos ou agências lotéricas. Já o perfil do beneficiário, a partir o enquadramento na categoria idoso pobre ou portador de deficiência, impressiona. Em 4.907 municípios, registramos mais de 50% dos benefícios totais emitidos destinados para pessoas com deficiência, o que coloca um desafio especial para as questões de saúde pública.
Há outra informação que expressa a importância, do ponto de vista da vulnerabilidade, do Benefícios de Prestação Continuada. Trata-se dos benefícios para os grupos considerados mais vulneráveis como Quilombolas, Indígenas e Pessoas em situação de Rua. Não há, nesse ponto, espaços potencialmente vazios para atuação da política social. Para esse grupo, representados na Figura 2, foram destinados, em 2022, 38.898 benefícios. Esses grupos, além da vulnerabilidade recorrente, apresentam, em função das características territoriais de seus sítios, dificuldades no acesso à comunicação e à informação. Verifica-se, na Bahia, a predominância de Quilombolas com benefícios na modalidade portador de deficiência e, no Amazonas, indígenas na mesma situação. É isso o que torna o BPC tão importante para a geografia social brasileira.
Mas os recursos do BPC também exercem papel fundamental na economia. Seja na periferia das capitais, ou nos povoados do Semiárido brasileiro, os recursos do BPC garantem a reprodução da vida da população mais vulnerável. Além disso, tais recursos, de diferentes modos, contribuem com a solvência das economias municipais, fundamentalmente o pequeno varejo local. O BPC está arraigado na geografia social brasileira, tornando-se fundamental para a reprodução da vida de milhões de brasileiros.
Essa perspectiva de análise pode ser comprovada na análise da Figura 3 que apresenta a relação entre o valor total de recursos advindos do BPC, acumulado em um ano, e o valor total da renda do emprego formal. Em 586 municípios, o valor total do BPC, acumulado no ano, é maior que o total acumulado da renda do emprego formal. Em outros 1.108 municípios, o valor do BPC representa até 50% do valor total dos recursos do emprego formal. Aqui não há segredo.
O perfil regional referenda a hipótese de que os recursos do BPC reforçam a circulação da renda e o consumo do varejo, o que significa que, em graus diferenciados, os recursos distribuem renda e geram emprego. Outro aspecto, que mereceria uma reflexão mais aprofundada, refere-se à função do BPC no povoamento e na permanência da população vulnerável em áreas determinadas do território nacional, especialmente na Região Amazônica.
Esse retrato preliminar dos Benefícios de Prestação Continuada demandaria, ainda, a correlação com um conjunto de indicadores sociais e da estrutura demográfica. Esse público de mais de seis milhões de beneficiários, a maior parte mulheres e, também, portadores deficiência, em graus diferenciados, são invisíveis para a opinião pública e, também, para os entusiastas, com ou sem mandato, da austeridade fiscal. Já as desonerações fiscais, em função do CNPj, são invisíveis para a opinião pública. As despesas com benefícios sociais, no xadrez da política econômica, aparecem como gastos disfuncionais para o Estado e para as economias municipais. Essa tese, azeitada nas doutrinas neoliberais, deve ser contestada exaustivamente.
Nossa hipótese, explorada no relatório “Em defesa do BPC – a gestão da miséria como verniz da austeridade fiscal” e também associada ao argumento delineado por Loic Wacquat (2013), em Punir os pobres – a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, é que as exigências punitivas expressas no projeto de Lei 1847 (2024) representam o caminho para, a partir de técnicas administrativas, impor mais uma derrota à parcela mais vulnerável da população brasileira.
Essa linha de argumento não é inédita e já foi explorada por David Deccache (2024) e pelo comunicador científico e historiador Jones Manuel (2024). Nosso esforço, a partir de uma abordagem territorial, passa por dar visibilidade ao Benefício de Prestação Continuada, destacando sua relevância para a sobrevivência da parcela mais vulnerável da população brasileira, especialmente as mulheres.[1]
Tadeu Alencar Arrais é professor titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Tathiana Rodrigues Salgado é professora de geografia na Universidade Estadual de Goiás.
Referências
BRASIL. Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 7 dez. 1993. Disponível neste link.
DATAPREV. Infologo – AEPS. Plataforma de dados históricos da Previdência Social. Disponível neste link.
DECCACHE, David. Por que o BPC está ameaçado. Outras Palavras, 13 set. 2024. Disponível neste link.
HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2020.
INSS. Instituto Nacional Do Seguro Social. Ministério da Previdência Social. Estatísticas da Previdência Social. Disponível neste link.
MANOEL, Jones. PT e PSOL votam junto com a extrema-direita para atacar direitos sociais. YouTube, 18 set. 2024. Disponível neste link.
MDS. Ministério do Desenvolvimento Social. Plataforma VISDATA. Secretaria de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único (SAGICAD). Brasília, DF: MDS, 2022. Disponível neste link.
RAIS. Relação Anual de Informações Sociais. Dados estatísticos, por município. Brasilia, DF: MTE, 2022. Disponível neste link.
SENADO FEDERAL. Projeto de Lei n° 1847, de 2024. Senado Federal, 2024. Disponível neste link.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
Nota
[1] Este artigo resume a primeira parte dos argumentos do relatório Em defesa do BPC – a gestão da miséria como verniz da austeridade fiscal, publicado pelo Observatório do Estado Social Brasileiro em decorrência da aprovação do Projeto de Lei Número 1847/24, que versa sobre desonerações e medidas de combate à fraude nos Benefícios de Prestação Continuada. Disponível neste link.
fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/em-defesa-do-beneficio-de-prestacao-continuada/