Eva Alterman Blay: No Brasil conservador há temor de se falar sobre sexualidade, sobre a gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis.
Por Eva Alterman Blay, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
Era 1947. Até hoje lembro da angústia que senti quando ouvia todos procurarem uma menina desaparecida: era assunto na rua, entre as vizinhas, na rádio. Depois de dias, ela foi encontrada, e vi no jornal “A” foto: uma criança estraçalhada, estuprada, morta. Por que, passadas décadas, crianças continuam a ser estupradas? São milhares e os números continuam a crescer, como estampa o Estadão: Alarmante alta de estupros.
“As vítimas começam a ser estupradas na infância, quando muitas vezes nem compreendem o significado da violência sofrida. Os dados publicados indicam que 11,2% das vítimas de estupro tinham entre 0 e 4 anos e 18,7% entre 5 e 9 anos […]”. Prestaram atenção? São bebês, crianças pequenas ou pessoas incapazes de consentir ou se opor. O Fórum de Segurança Pública mostra que o agressor é conhecido da vítima em 84,1% dos casos, por vezes o próprio pai ou padrasto, tios, primos, vizinhos.
Claro, há os pedófilos, mas muitos não são loucos, são pessoas que têm poder, poder de dominar, poder sobre os corpos das meninas, das mulheres e também dos meninos e até de outros homens. Como controlar essa forma de dominação? As sociedades que conseguiram, usaram a escola, desde o pré, falando sobre sexualidade, ensinando sobre o direito que temos sobre nossos corpos.
Mas no Brasil conservador há temor de se falar sobre sexualidade, sobre a gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis. Se a maioria das ocorrências se dá com crianças ou pessoas que não têm capacidade para se opor, a escola é local importante para educar meninas e meninos a se respeitarem mutuamente. O entrave que encontramos para introduzir educação sexual nas escolas advém de governantes ignorantes como o ex-presidente, que afirma que “educação sexual as crianças têm de aprender em casa com os pais”.
Ora se é na casa que o problema se esconde, se os pais não sabem orientar, é na escola que a criança aprenderá a se conhecer e é nela que poderá encontrar algum apoio se precisar. A situação é catastrófica quando temos ex-ministros da Educação que são manipulados por falsos “filósofos”, como Olavo de Carvalho, cujas aulas gravadas e difundidas são na verdade textos pornográficos. Ou quando a ex-ministra da Mulher, Damares Alves, foi a responsável por incentivar uma menina estuprada de 11 anos a se tornar mãe (impedindo o aborto previsto em lei), ou um ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, despreza a ciência e ajuda a matar por sufocamento os doentes da covid. A esses personagens se soma Flávio Bolsonaro, discípulo do pornógrafo citado. Todos foram eleitos para a próxima legislatura e formarão uma bancada radicalmente conservadora, contra os direitos das mulheres, e que vai tentar manter a obscura orientação educacional como fizeram até agora.
Todos nós teremos de acompanhar a elaboração dos próximos currículos escolares se quisermos uma educação democrática, em que os direitos humanos sejam respeitados e não impeçam o ensino sobre a sexualidade humana.
fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/eva-alterman-blay/estupro/