Quase lá: Os direitos das mulheres negras e suas lutas por cidadania, respeito e saúde

A Médica, coordenadora da ONG Criola e integrante do Conselho Nacional de Saúde, Jurema Werneck, disse em entrevista para o Jornal Fêmea que é preciso vencer o racismo, o sexismo e a lesbofobia para transformar as relações sociais no Brasil.

Fêmea - Para iniciarmos essa conversa, gostaríamos que você falasse um pouco de sua trajetória política no movimento de mulheres negras para noss@s leitoras/es.

Jurema Werneck - Sou da segunda geração do movimento de mulheres negras que surgiu no final da década de 70, início de 80. Venho do movimento estudantil e quando saí da faculdade passei a participar do movimento de mulheres negras no Rio de Janeiro, na segunda metade da década de 80. Entrei no instante em que o movimento estava efervescente, preparando o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, que se realizou no RJ. O momento era de muita agitação, não só no Rio como em todo o Brasil, pois existia uma rediscussão da perspectiva de atuação das mulheres negras no cenário político do Brasil.

Fêmea - Quais são os principais desafios para o movimento de mulheres negras atualmente no Brasil?

Jurema Werneck - Os desafios não mudaram, continuam os mesmos de antigamente. Ou seja, confrontar o racismo, e principalmente a forma como o racismo se aproveita das desigualdades impostas pelo sexismo, pela lesbofobia, e constrói um contexto de completa desvantagem para as mulheres negras, que se traduzem em pobreza, indicadores de saúde mais baixos, forte incidência da violência de todos os tipos. O movimento luta para a existência de um confronto direto ao racismo, que considere as contribuições do antisexismo e da antilesbofobia. Ou seja, a luta busca a mudança das relações sociais no Brasil, das ideologias que conformam o pensamento social no país de modo a refazer a visão que a sociedade tem das mulheres negras, no lugar que não seja de desvantagem, mas de cidadãs.

Fêmea - Tendo como referência as reivindicações do movimento de mulheres negras no campo da saúde, em sua opinião quais são os principais avanços e entraves que as políticas públicas têm de superar para responder ao direito da mulher negra à saúde?

Jurema Werneck - Além de superar o racismo e o sexismo, tem que superar a visão de que a saúde das mulheres negras, por uma perspectiva, só se referem à questão reprodutiva. Outra questão é sobre o direito que as mulheres negras têm de se apropriar do manejo da sua capacidade reprodutiva, mas muito mais do que isso, tem direito de se apropriar do seu corpo como um ambiente agradável, adequado para sua própria existência.

Quanto aos entraves, o principal é o funcionamento do SUS, se ele funcionasse como está previsto daria conta em grande parte das necessidades do setor saúde. Para um bom funcionamento, o Sistema de Saúde teria que agregar uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra que inclui as mulheres. Esta política está inserida nos princípios do SUS, na forma de financiamento gestado teoricamente, mas não implantado na prática.

Fêmea - Como integrante do Conselho Nacional de Saúde e coordenadora de sua Comissão sobre a Saúde da População Negra, quais são os maiores desafios que você aponta no que se refere à participação e o controle social sobre as políticas públicas?

Jurema Werneck - Essa comissão tem como tarefa acompanhar a Política Nacional de Saúde da População Negra e também acompanhar as decisões da sociedade civil durante a 13ª Conferência Nacional de Saúde em relação à saúde da população negra. O primeiro desafio que o Conselho e a Comissão estão enfrentando é o da legitimidade da representação do controle social. Ainda que vivamos uma época em que existam conferências todos os dias e conselhos em tudo que é lugar, a consulta pública ainda é realizada de uma forma muito desqualificada.

Fêmea - No ano passado e novamente neste ano vimos que a Ação de Atenção à Saúde da População Negra ficou sem recursos no orçamento federal. Qual o impacto disso para a população negra, especialmente para as mulheres?

Jurema Werneck - Ainda que o orçamento do SUS seja para todos e todas, inclusive para os cerca de 100 milhões de negros que existem no Brasil, dentre os quais pelo menos 50 milhões são mulheres, apesar de haver uma rubrica no orçamento, o que realmente está legitimado é o não fazer. O impacto disso é o que vemos todos os dias, os indicadores de saúde para a população negra são muito ruins, e os das mulheres negras são péssimos. A tendência é piorar, pois o sistema de saúde está encolhendo, ou pelo sub-financiamento, ou porque a CPMF acabou no Congresso e o CSS não foi votado, a emenda 29 ninguém quer regulamentar. Enquanto isso, dos 80% da população negra que procura o SUS, grande parte é mulher.

Fêmea - O Código Penal criminaliza o aborto no Brasil e isto impacta de forma diferenciada a vida das mulheres. As pobres, negras e jovens, são as que mais sofrem com a clandestinidade. Atualmente observa-se uma tendência de criminalização e perseguição às mulheres que interrompem a gestação (tendo como exemplo emblemático o caso das mulheres indiciadas em Campo Grande-MS) por setores religiosos fundamentalistas. Como você avalia este cenário e o debate sobre o aborto no Brasil?

Jurema Werneck - O cenário é péssimo, nunca foi bom. E vale lembrar que as mulheres negras sofrem pressões cotidianas para não parirem. Sendo assim, o aborto vira uma obrigação, mas uma obrigação insalubre. A sociedade não oferece condições às mulheres negras de procriarem. O atual governador do RJ se referiu à favela da Rocinha como fábrica de delinqüentes e, sendo assim, seria melhor abortar. Essa visão não é só do governador, mas de toda a sociedade. As mulheres negras vivem a pressão pelo aborto cotidianamente. Se fosse legalizado, elas já fariam em situações precárias, pois o SUS não as atende adequadamente, mas na ilegalidade é muito pior. Sou médica, e trabalhei em obstetrícia durante muito tempo, e sabemos que fechar clinicas de aborto não resolverá os problemas das mulheres negras. A solução do problema é rediscutir essa visão de que somos fábricas de delinqüentes e recolocar o nosso direito de escolha de ter ou não ter filhos e garantir que é uma tarefa do setor público de saúde responder a qualquer que seja a demanda no que se refere à saúde. Os movimentos de mulheres precisam centrar fogo, e o interesse das mulheres negras é de reafirmar o direito de autonomia, não só autonomia ao aborto e sim à existência.

Fêmea - Estamos às vésperas da revisão do Plano de Ação Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e outras formas de intolerância, aprovado em 2001, na Conferência de Durban. Quais são as suas perspectivas neste processo?

Jurema Werneck - As perspectivas são péssimas. São poucas as organizações brasileiras que estão acompanhando o processo. No cenário internacional o nível do debate é muito baixo. O governo brasileiro chamou a II Conferência Nacional de Promoção de Igualdade Racial, mas sequer sabe o tamanho do legado desse processo. O Brasil tem participado até aqui no processo de Durban com funcionários de baixo escalão, num cenário de disputas, não só entre Israel e Palestina, pois o racismo e xenofobia impactam o mundo inteiro e existem forças poderosas contrárias. O Brasil que se pronuncia internacionalmente como um país interessado em superar o racismo tem participado de uma forma muito ruim.


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