Quase lá: Mulheres, AIDS e reprodução

Wania Maria do Epírito Santo Carvalho
Assistente Social do Projeto Com-Vivência - Ações Integradas de Estudos e Atendimentos a Soropositivos - Hospital Universitário de Brasília - UNB

O aumento do número de mulheres contaminadas pelo vírus HIV vem sendo amplamente divulgado pelos meios de comunicação. Tal fato suscita algumas reflexões a respeito desses números e da interface existente entre saúde reprodutiva e AIDS, colocando a discussão em termos da questão do direito reprodutivo.

A crescente feminização da epidemia da AIDS revela a existência, no Brasil, de um número estimado de 200.000 mulheres infectadas ou doentes de AIDS. Considerando que a grande maioria dessas mulheres encontra-se em idade reprodutiva, calcula-se que aproximadamente 12.000 mulheres soropositivas estejam grávidas.

Ao atingir assustadoramente a população feminina, a AIDS determinou o aumento do número de crianças infectadas verticalmente; sabemos que mais de 4.000 crianças foram contaminadas por suas mães desde o início da epidemia.

Diante desse quadro observa-se, por parte das autoridades competentes e dos profissionais de saúde, uma crescente preocupação com a redução do risco da transmissão do HIV da mãe para o filho.

O acúmulo de conhecimentos acerca da transmissão vertical tem possibilitado a identificação de estratégias de intervenção capazes de reduzir o risco de contaminação, na medida em que não estão disponíveis ações terapêuticas e profiláticas definitivas contra o HIV. Neste sentido concentram-se os esforços na identificação precoce da gestante soropositiva para HIV nos serviços de pré-natal, com a introdução do aconselhamento e da testagem sorológica para o HIV.

O acompanhamento da gestação, com a introdução da terapia antiretroviral a partir da 14ª semana, o monitoramento do parto e a administração do AZT endovenoso, e a atenção especial ao recém-nato, realizados por uma equipe interdisciplinar e multiprofissional, de modo integrado, considerando as especificidades de cada caso, pode reduzir sensivelmente o risco da transmissão vertical.

Mas, em que pese os inúmeros avanços terapêuticos, os desafios ainda são enormes: 1) a dificuldade de acesso da população feminina aos serviços de pré-natal; 2) a disponibilização de uma atenção integral à gestante soropositiva; 3) a inexistência, em número suficiente, de equipes especializadas no manejo do HIV/AIDS. Deste modo, é fato que nem todas as gestantes portadoras têm se beneficiado dos recursos de que dispomos atualmente para reduzir o risco da transmissão vertical. A identificação e a captação de gestantes portadoras do HIV tem ocorrido, muito freqüentemente, em fases avançadas da gravidez e até mesmo na hora do parto, o que impossibilita o manejo precoce adequado da gestação.

Se por um lado muitas mulheres descobrem sua condição sorológica durante a gravidez, outras engravidam apesar desta condição. O risco da contaminação vertical, os sofrimentos causados pela doença aliados à perspectiva da morte são fatores que, sem dúvida, interferem na decisão da mulher HIV+ desestimulando a gestação. Mas, apesar disto, não é raro que, por desejo consciente, crenças religiosas, falta de informação e orientação ou pela vulnerabilidade decorrente das relações de gênero, um número significativo de mulheres soropositivas engravidem.

Apesar da gestação soropositiva não ser considerada de alto risco, um grande número de mulheres que se encontram em tratamento para o HIV e engravidam sofrem recriminações e/ou discriminações por parte dos profissionais de saúde que, via de regra, condenam e proíbem essa gravidez.

Sob pressão e sem informações confiáveis a respeito do tratamento a que devem se submeter essas mulheres muitas vezes abandonam o serviço e retardam o início do pré-natal colocando em risco seus filhos e a sua própria saúde.

Sem dúvida a relação AIDS/maternidade ultrapassa a questão do risco da transmissão vertical, atingindo a mulher diretamente no exercício de seus direitos reprodutivos.

Os dados epidemiológicos apontam as conseqüências sociais e demográficas do avanço da AIDS entre as mulheres; estudos clínicos determinam ações profiláticas que reduzem o risco da contaminação na gestação, no parto e no pós parto; exames laboratoriais auxiliam no manejo da gestação e no acompanhamento clínico da criança sorointerrogativa, mas apesar dessas conquistas o que se observa no dia-a-dia dos serviços de saúde é o despreparo dos profissionais e a ausência de ações concretas planejadas e focalizadas neste segmento. Encontramos atitudes preconceituosas e discriminatórias que dificultam o acesso à informação e ao tratamento, inclusive no pré-natal.

Entendemos que uma ampla discussão envolvendo a sociedade, especialmente através das organizações de mulheres, o Estado e os profissionais de saúde pode apontar caminhos e estratégias na direção da garantia dos direitos das mulheres soropositivas, gestantes ou potencialmente gestantes, no sentido de que possam dispor de serviços de planejamento familiar preparados para orientá-las a respeito de futuras gestações, considerando os aspectos clínicos, psicológicos e sociais que envolvem sua condição sorológica, que permitam o acesso a contracepção consciente e informada, evitando uma gravidez indesejada, e que, principalmente, respeitem e estimulem a autonomia da mulher na (re)construção de seus projetos de vida e no exercício responsável de seus direitos reprodutivos.


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