Celina Santos Boga Marques Porto
Médica Pediatra do Centro de Saúde Escola da Fundação Oswaldo Cruz e bolsista da Fundação MacArthur
"O que mais me entristece, depois que descobri que estou com o HIV, é que não poderei ter outros filhos." Essa frase é de L., 35 anos, atendida pelo Centro de Saúde da Fiocruz, no Rio de Janeiro. Seu marido, G., também portador do vírus, concordou visivelmente constrangido.
CFEMEA - Casos como o de L. e G. são cada vez mais freqüentes. Diante de situações como essa, como vêm agindo os profissionais de saúde?
Celina Porto - Entre os muitos problemas surgidos entre as mulheres, talvez os de mais difícil solução sejam aqueles relacionados com a gravidez e a maternidade, por envolver questões pessoais, culturais, religiosas e éticas - campos férteis para o conflito e o contraditório.
Por sua natureza, implica na tomada de uma série de decisões para as quais os serviços de saúde não estão preparados para acolher. Tanto para a mulher soropositiva que deseja engravidar como para aquela que pelo mesmo motivo não quer mais conceber. Muitas sofrem repressão e censura nos serviços de saúde e terminam qualificadas como "irresponsáveis" ao serem descobertas grávidas. Outras, que decidem por um método radical de contracepção ou dolorosamente manifestam o desejo de interromper aquela gravidez com um aborto, acabam recebendo o mesmo adjetivo.
CFEMEA - Neste cenário, o crescimento da epidemia entre as mulheres, afinal, tem despertado maior preocupação com as crianças ou com as próprias mulheres?
Celina Porto - Quando uma mulher descobre que é soropositiva, grávida ou não, ela experimenta uma enorme tensão. Ela se coloca em contato com seu próprio diagnóstico, com a possibilidade de seu novo filho se contaminar e com a angustiante dúvida de estarem seus outros filhos também infectados. Para algumas trata-se de perder alguém que nunca existiu. Para muitas, de ver seu potencial como mulher reduzido. Para outras, razão de se alegrar por ser ainda capaz de gerar uma nova vida, apesar do diagnóstico de portadora.
CFEMEA - Como compreender todos esses sentimentos e respeitar as decisões das mulheres, sem fazer uma revisão de posturas éticas equivocadas, controladoras e reveladoras da incapacidade de olhar a situação do ponto de vista dessa mulher? Como desconhecer que decisões individuais sobre a maternidade e a gravidez expressam expectativas apoiadas em valores culturais e sociais que são muito amplos e que transcendem a realidade da convivência com o vírus?
Celina Porto - Dificilmente encontramos entre os profissionais de saúde aquele que desconheça a extensão da epidemia da AIDS no Brasil e a gravidade do seu quadro entre as mulheres. A mídia tem se encarregado de divulgar dados a respeito, comparando-os com os de outros países. Os encontros, seminários e congressos têm debatido com insistência o tema, socializando resultados de vários estudos e reafirmando a preocupação mundial com a necessidade de criar condições para o trabalho contra a crescente feminização da epidemia, além de consagrar a possibilidade de evitar que a infecção pelo HIV seja transmitida da mãe para o filho, como uma das mais significativas descobertas da ciência neste campo.
O uso do AZT entre mulheres grávidas soropositivas durante a gestação, no momento do parto, e pelo bebê nas seis primeiras semanas de vida reduz em 70% as chances de transmissão do vírus. A utilização desse recurso terapêutico, associado a alguns cuidados específicos do início do trabalho de parto ao nascimento, e a substituição do leite materno, pode modificar, entre nós, os dados epidemiológicos que apontam a transmissão materno-fetal como responsável por cerca de 90% dos casos de AIDS pediátrico.
Aplicar essa estratégia, entretanto, pressupõe antes de mais nada, reconhecer o perfil das mulheres brasileiras infectadas e/ou das que procuram os serviços públicos de saúde para outros eventos relativos à saúde sexual e reprodutiva. Elas são cada vez mais jovens e o que é mais grave, cada vez mais pobres. São, consequentemente, as que têm menos acesso à educação, aos serviços de saúde e pouca habilitação para o trabalho formal. Convivem, em sua maioria, com as dificuldades que resultam do desemprego de seus companheiros. Convivem com a banalização de suas queixas de saúde em serviços desprestigiados e desaparelhados para enfrentarem as necessidades criadas pela infecção do HIV. Antigas necessidades encontram-se hoje agravadas pelo avanço da epidemia de AIDS e pelo expressivo crescimento de muitas outras DSTs.
A reunião de todos esses elementos evidencia e recoloca a todo instante um enorme desafio a trabalhadores de diferentes formações e que, no cotidiano, lidam com dificuldades e dramas gerados pelas inúmeras limitações que impedem as mulheres de usufruírem de direitos relacionados com sua vida reprodutiva.
O avanço da ciência no campo da AIDS é inquestionável. O conhecimento acumulado sobre o tema é quase que diariamente atualizado, mas ele tem que estar disponível e acessível a todos, homens e mulheres.
É possível responder melhor a alguns problemas, sobretudo se incorporarmos o ponto de vista desses mesmos homens e mulheres ao desenho das linhas de ação para o seu enfrentamento e mais ainda, se no momento da execução do trabalho em saúde, cuidadosamente, nos despirmos de preconceitos e julgamentos.
Aconselhar não é impor. É apontar opções e colaborar na construção de soluções mais exitosas e socialmente aceitas. Informar integralmente quando e como casais, onde apenas um parceiro é soropositivo, podem tentar a concepção, diminuindo os riscos de uma nova infecção. Alertar e estar vigilante para as medidas dos governos que resultam na subtração de direitos sociais e desqualificam o trabalho profissional. Aplaudir e adotar as proposições que evidenciam o compromisso com políticas públicas para o setor saúde e que recolocam o SUS no caminho originalmente concebido.
A epidemia de AIDS já atinge 33 milhões de pessoas em todo o mundo. Ceifou milhões de vidas e tem impedido o nascimento de muitas outras. Casais como L. e G. são muitos, estão nas filas à espera de atendimento e respostas, e continuarão a desafiar os profissionais e os serviços de saúde.