Cristina Buarque
Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco e Secretária Executiva do Projeto Mulher e Democracia
A construção do Estado laico, a quebra do absolutismo, o surgimento de uma democracia moderna são passos dados pela humanidade ocidental de rejeição às leis do pai, como orientação para a vida em sociedade. Tal processo político, que vem produzindo a dissolução do único, afirma a participação das partes, numa dinâmica progressiva de esclarecimento da diversidade humana, cuja expressão mais acabada seria a afirmação das singularidades. De toda a forma, não existem verdades históricas, individuais ou coletivas, que possam nos indicar aonde chegaremos amanhã. Porém, podemos observar que as partes não se apartam, mesmo que se contraponham, sendo, sim, exigentes de inclusão e exclusão e, conseqüentemente, auto-proclamadoras de constantes conflitos por redistribuição de poder e de recursos materiais.
Esse longo e conflituoso processo de redimensionamento do político vem sendo traçado pela insubordinação de mulheres e homens concretos diante do que está posto, e não determinado utopicamente por uma idéia ou por um modelo do que deveria ser. Ou seja, as lutas que provocam transformações da sociedade começam pela negação do que não queremos no presente. Nada consta que haja sido produzido no campo das idéias, inclusive feministas, qualquer modelo de sociedade fora das leis do pai; porém, as sociedades concretas já não se regem apenas por elas, como antes, enquanto que a quebra desse poder tem profundas conseqüências em favor do campo político democrático.
Com isso queremos dizer, primeiro, que o cinismo com que, muitas vezes, são tratados os ilícitos contra a democracia guarda relação com a resistência que os representantes das leis do pai opõem a afirmação das partes. Depois, que o futuro é dependente da crítica e da oposição que podemos fazer hoje ao que nos oprime, ao que não queremos, e não do pagamento de promessas messiânicas pelos governos que elegemos. O futuro será, mais ou menos, diferente de hoje, dependendo da radicalidade da nossa rejeição ao que está posto. Sem a rejeição ao que nos oprime no presente, como poderá haver um outro futuro?
Diante da crise que vive o Brasil, o nosso futuro depende de que os movimentos sociais, de que as pessoas do campo da esquerda se disponham, não obstante toda a dor que pode nos causar, a uma crítica profunda sobre o que está posto, rompendo com esse tipo de inércia política que praticamos através da crença centenária de que a ascensão ao poder de setores da organização da classe trabalhadora teria o privilégio, o dom, a força e a determinação de desconstruir a opressão política e a exploração econômica a que estão submetidas todas as maiorias da população brasileira: mulheres, negros, assalariados e sem salários. Concessões políticas no presente à ideologia do único, em nome dessa crença, têm grandes chances de nos levar para fora do campo democrático.
O ciclo de alternância de lideranças no Brasil chegou à experiência de um presidente, representante de setores das classes trabalhadoras, formado e conduzido por um partido gestado no movimento social, no caso o movimento sindical. Um partido engendrado naquela crença, que nasce de baixo para cima e que por 25 anos mais carrega as bandeiras históricas de um projeto de poder sindical do que a diversidade de bandeiras construídas nas lutas presentes dos novos movimentos sociais. Por tudo isso, o Governo Lula se apresenta ideologicamente maleável aos "costumes políticos" daqueles que o antecederam no poder e se sente legitimado para utilizar métodos e práticas derivados da idéia de que os fins justificam os meios, incluindo nesse processo o personalismo.
Embaladas pelo personalismo do presidente, as personagens, os métodos e os argumentos que são utilizados para o escancaramento das práticas de corrupção nas CPIs e no Conselho de Ética - envolvendo a maioria dos partidos, setor privado e governo, com foco no PT - são a tradução mais esclarecedora da evidência de que estamos diante de uma desenfreada luta por mandato, na qual o bem público e a democracia são, quase sempre, um instrumento de retórica, e para a qual os poderosos de sempre, os recém empoderados e os aspirantes apresentam sem pudor, com a colaboração dos meios de comunicação, o seu aprisionamento às crenças, práticas e símbolos patriarcais, sexistas e racistas de condução e conquista dos poderes da República.
Assim, a condenação reinante à corrupção nesses espaços, com raríssimas exceções, não passa de moralista e vingativa e por isso mesmo permite que as figuras mais espúrias da representação política no Brasil posem nas CPIs e no Conselho de Ética como promotoras de uma ordem restauradora e, ainda, nos ameacem de exclusão do processo democrático. Sua investidura nessa pele também mereceu a colaboração do Governo Lula, através de suas aproximações com Sarney, Roberto Jefferson, Antônio Carlos Magalhães, Delfim Neto...
Se o desbaratamento das quadrilhas de assaltantes passa pela ação da polícia e do judiciário, a desconstrução da corrupção faz parte das tarefas do campo político, e dessa forma envolve romper com as várias lógicas de projetos de poder, entre outras, a que permite o partido fortalecer as suas finanças para as próximas eleições, cobrando um percentual do salário dos militantes que assumem cargos no aparelho do Estado. Isso porque, essa lógica em nada se diferencia da cobrança de percentuais aos empresários sobre os lucros que esses obtêm através de negócios com o Estado. Os percentuais cobrados sobre os cargos e sobre os lucros são negócios privados a partir da manipulação de recursos públicos, que são distribuídos com outros partidos, o que caracteriza a corrupção e aponta o corruptor.
A crise que põe em cheque esse poder-governo causa, então, um fenômeno pouco freqüente nas democracias, qual seja: o partido vai ao sacrifício, com as suas bandeiras, com os seus quase um milhão de militantes e muitos milhões mais de simpatizantes, e não o governo; um mandato de quatro anos, caracterizando que as políticas econômicas que sacrificam as políticas sociais e satisfazem ao FMI e aos banqueiros fazem parte de um projeto de poder neo-liberal, conduzido por um restrito setor de trabalhadores que ascenderam ao poder com o Governo Lula.
A crise que vive o Governo Lula é, portanto, uma crise estrutural de idéias, de lógicas, de práticas, de valores, de exacerbação das contradições entre capitalismo e democracia, e de sua própria resistência patriarcal a ampliar a base de apoio do governo através da combatividade dos movimentos sociais que tratam no presente das desigualdades estruturantes do Brasil: a questão negra, a questão feminista, a questão indígena, a questão da devastação das riquezas naturais, a questão da apropriação do Estado para o enriquecimento privado, seja de indivíduos seja de organizações. É uma crise entre conservadores e, por isso, também, uma crise do masculino falocêntrico-patriarcal. Nossos compromissos com esse governo que elegemos não podem se manter no mesmo formato dos tempos em que acreditávamos que ele viria para contribuir com a inversão de prioridades e com as transformações que implementávamos. Assim, não podemos negar os compromissos que temos em nos libertar das opressões, sob o risco de nos aniquilarmos politicamente, pois é a elas que somos capazes de reagir e dar respostas hoje. Nem podemos deixar que o tempo e as repetições banalizem o ilícito. Pois, como disse Simone Beauvoir o pior escândalo é aquele ao qual nos acostumamos.
Em tudo isso, uma ressalva e uma emenda merecem ser feitas, o Governo Lula não satanizou nem reprimiu os movimentos sociais, como fizeram todos os outros governos. Contudo, os movimentos sociais também não pressionaram o Governo Lula como o fizeram anteriormente, mesmo que as suas questões tenham sido colocadas em segundo plano.
Assim, os resultados desejados, pelos amplos setores excluídos das esferas de decisão, para o processo atual, excedem, em muito, às punições de deputados, senadores, governantes e à realização de uma reforma política, através da formalização de atos institucionais e jurídicos. O desfecho desejado é a afirmação de um processo democrático que inclua novas políticas econômicas e sociais, o que exige se reconhecer que o poder de exclusão do capitalismo no estágio neo-liberal só pode ser contraposto com o uso de forças, métodos e valores que não estejam nas raízes daquele poder.
Para nós dos movimentos de mulheres, a afirmação da democracia, diante de tão profunda crise, nos exige, mais do que nunca, rejeitar de forma categórica os símbolos, os comportamentos e os apelos políticos do poder masculino em desespero, e reafirmar a radicalidade da proposta feminista de transformação das relações de poder em toda a extensão das relações sociais, econômicas e políticas. Isso está diametralmente oposto à idéia de que essa é a vez das mulheres ocuparem o poder. A nossa vez, a das muitas mulheres, não será anunciada com gritos de guerra, nem com escândalos na TV, ela será resultado do trabalho cotidiano que fazemos em favor da igualdade entre mulheres e homens, inclusive, nos espaços de poder.