Quase lá: Gênero e poder: eleições municipais do ano 2000

Tânia Suely Brabo
Docente e pesquisadora da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP / Marília (SP)

Estas são constatações da tese de doutorado por mim defendida na Universidade de São Paulo, junto ao programa de Pós-Graduação em Sociologia. Seu objetivo central foi analisar as relações de gênero durante a campanha política de mulheres ao Legislativo, nas eleições municipais de 2000, na cidade de Marília (SP). A baixa representação das mulheres foi discutida a partir da reflexão acerca da política e de democracia representativa, que dificultam o acesso de segmentos sociais historicamente excluídos dos processos decisórios. Acreditamos que as considerações a seguir podem contribuir para as reflexões em torno das eleições municipais de 2004.

Nas eleições analisadas, observamos que a Lei de Cotas pode ser considerada positiva pelo fato de o tema ter sido colocado na agenda política e por ter intensificado um processo que já estava em curso: o aumento das candidaturas femininas. O problema da ausência/presença das mulheres tornou-se visível. Entretanto, predomina nos partidos uma dimensão formal e burocrática da Lei, conforme afirmado por dirigentes partidários. No geral, a introdução das cotas teve pouco impacto nos debates internos dos militantes partidários, no envolvimento das organizações de mulheres, na formação das listas eleitorais e na percepção dos dirigentes partidários sobre a problemática, de modo a estimular a participação feminina no campo da política. Isto não ocorreu da mesma forma em todos os partidos, havendo diferença de acordo com o perfil ideológico. Alguns partidos têm dificuldade para conseguir candidatas e completar a cota estabelecida pela lei.

No geral, poucas candidatas tinham conhecimento da Lei. Das que a conheciam, algumas achavam uma discriminação para com as mulheres, já que elas são a maioria do eleitorado. Contudo, a maioria disse ser favorável, por ser uma iniciativa que iria estimular a participação e a aceitação das mulheres pelos partidos e pelo eleitorado. Também ficou claro que a motivação maior por parte dos partidos que estiveram coligados com o poder constituído era arrebanhar votos para a legenda com as candidaturas das mulheres.

Diferentemente do que se observou em outros níveis de representação, no município, a maternidade e o estado civil não impediam a vida política das mulheres. A maioria das candidatas era casada e tinha filhos, inclusive pequenos. Entretanto, houve depoimentos que mostraram as dificuldades para conciliar campanha, vida profissional e familiar. Para os homens, o fato de estar casado pode significar maior legitimidade para a carreira política e até muita ajuda por parte da esposa que, na maioria dos casos, desenvolve um trabalho social ou tem uma profissão que proporciona muito conhecimento e isso se transforma em ganho para o candidato. No caso das mulheres, foram poucos os casos em que o marido ajudou na campanha. Geralmente elas contaram com a ajuda de amigas, familiares e filhos, e a maioria coordenou e desenvolveu sua campanha sozinha.

A cultura política mostrou-se importante fator explicativo para o entendimento da aceitação das mulheres na eleição e da maneira como foram tratadas durante a campanha. Se, num primeiro momento, houve um forte investimento para convencê-las a se candidatarem, num segundo momento, algumas sentiram-se sós e sem nenhum apoio. Parte delas demonstrou que eram aceitas e convidadas devido à obrigatoriedade da Lei. Contudo, ficou evidente que também eram convidadas pela potencialidade que apresentavam para conseguir votos ou ainda porque é "politicamente correto" aceitá-las, o que não quer dizer investir na candidatura ou proporcionar melhores condições para se elegerem. Ainda predominou, por parte dos homens, a visão de que as mulheres concorrem para ajudar o candidato que já era vereador e que deveria ser reeleito.

Obstáculos

O maior problema observado nos depoimento e que influenciou o desempenho das mulheres candidatas foi a ausência de mecanismos mais democráticos de financiamento público de campanhas, o que dificulta não só a inserção das mulheres como dos setores sociais com menor poder aquisitivo. A maior dificuldade na campanha delas é a ausência de recursos financeiros e de apoio partidário. Acrescenta-se também que o sistema de representação em vigor acaba por provocar uma enorme disputa entre os candidatos, até do mesmo partido, na luta pelo voto. Isto levou algumas candidatas a compararem a eleição a uma guerra, tal a pressão e os ataques violentos sofridos, expressos no medo em conceder entrevista e fazer afirmações a respeito da campanha.

Um outro dado merece ser destacado. As relações estabelecidas entre os partidos no período pré-eleitoral são fundamentais para as articulações que determinarão os caminhos da campanha, quando as regras do jogo serão postas. Nesta fase, são escolhidos aqueles que serão eleitos e para quem serão encaminhados recursos e apoio estratégico, momento em que as mulheres ficam de fora.

Pudemos apreender, ainda, que as mulheres deste universo investigado têm uma concepção de política coerente com uma visão voltada ao social, às políticas públicas, aos efeitos e objetivos da política. Poucas demostraram que tinham consciência de que política primordialmente se refere a relações de poder na sociedade. Contudo, não se pode imputar a elas o desconhecimento destas relações. Algumas falas mostraram que elas conheciam esta realidade, procurando se beneficiar da mesma. Entretanto, na campanha eleitoral, as verdadeiras regras do jogo eram do conhecimento dos homens e não delas.

Nesta pesquisa, pudemos observar como o atual sistema político e eleitoral dificulta a eleição de mulheres. É evidente que as regras eleitorais, a falta de mecanismos democráticos de financiamento público de campanhas e certas dimensões do sistema institucional e social contribuem para a baixa representação das mulheres. Tanto parte da imprensa, quanto parte da elite política explicam a questão como a teoria política clássica o fizera, atribuindo às mulheres desinteresse e incompetência, sem considerar todos os fatores condicionantes de tal realidade.

Conclusões

A análise desenvolvida neste texto procurou trazer elementos para a compreensão do porquê da baixa representação política feminina. Apesar de o processo de redemocratização ainda estar em curso na sociedade brasileira, há que se considerar que, embora a participação da mulher na política seja maior no âmbito local, portanto, considerada mais democratizada, no município em questão há mecanismos de poder muito fortes, nada democráticos, que dificultam sua participação. O poder ainda está nas mãos de uma minoria de homens bem como o poder nos partidos. Por outro lado, a análise apontou outros fatores a se considerar: os caminhos para que a candidata possa construir favoravelmente sua candidatura dentro do partido e, fora dele, lutar para participar da elaboração das regras do jogo. Isto ficou evidente no que se refere à candidatura que consegue abrir espaço e fazer uso de sua imagem na mídia, que possui formação política e instrumentalização para desenvolvimento de sua campanha, que consegue contornar o problema do recurso para financiamento e investe em uma base eleitoral forte.

Na verdade, as regras do nosso sistema eleitoral dificultam a eleição de mulheres e a cultura política local pode potencializar as dificuldades. Entretanto, no caso em questão, ficou evidente que as barreiras podem ser vencidas se houver investimento para removê-las. Embora houvesse muitos obstáculos, as mulheres sempre estiveram presentes na política. Apenas não participaram do poder que, mesmo nos partidos de esquerda, se encontra nas mãos dos homens.


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