Quase lá: Previdência Social: uma Reforma que precisa ser discutida

Este texto foi produzido com a colaboração de Laura Tavares, professora e pesquisadora da UFRJ, doutora em Economia do Setor Público; Jurema Werneck, secretária-executiva da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras e suplente de Sueli Carneiro no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social; e integrantes do CFEMEA

A realização da Reforma da Previdência Social é um compromisso assumido pelo presidente Lula, durante a campanha eleitoral e, atualmente, um dos maiores desafios do seu governo. A questão está sendo discutida por várias lideranças políticas, sindicais e empresariais, assim como por diversos movimentos sociais. O movimento feminista e de mulheres articula-se para que as futuras mudanças no sistema previdenciário sejam capazes de promover justiça social, eliminar os privilégios e contribuir para a redução das desigualdades.

No dia 11 de março, o CFEMEA realizou, em Brasília, uma reunião para discutir a Reforma da Previdência e as estratégias de atuação junto ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Na reunião, estavam presentes integrantes da Articulação de Mulheres Brasileiras, Articulação de Organizações de Mulheres Negras, Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, CFEMEA, SOS Corpo e ILDES/FES (Instituto Latino-Americano de Desenvolvimento Econômico e Social / Fundação Friedrich Ebert). Também parti-ciparam de toda a discussão dois integrantes do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social: José Antônio Moroni - conselheiro representante do Fórum Nacional de Assistência Social, e Jurema Werneck - suplente da conselheira Sueli Carneiro, representante da Articulação Nacional de ONG´s de Mulheres Negras. O debate contou com a contribuição fundamental de Laura Tavares e Marcelo Medeiros, ambos especialistas na questão.

A grande expectativa é que o novo sistema previdenciário contribua para a construção da justiça social no país. O foco do debate não deve estar ajustado apenas à perspectiva econômica, visando resolver problemas como a redução do déficit orçamentário.

É essencial que se busque soluções para os profundos problemas econômicos e financeiros do Brasil. No entanto, a Reforma da Previdência não é o caminho direto para a resolução de problemas desta natureza.

Não é possível fazer as mudanças necessárias, nessa área, sem se considerar, por exemplo, as enormes desigualdades reproduzidas pelo sistema previdenciário, o seu caráter excludente (57% da população está fora da Previdência Social), os privilégios que o sistema sustenta, a corrupção e a sonegação que conso-mem seus recursos, entre outros.

Breve Histórico

O debate nacional sobre a Reforma da Previdência não começou agora. Mobilizada pelo espírito da abertura democrática de meados dos anos 80, a sociedade brasileira participou de intensa discussão a respeito das mudanças que se faziam necessárias para transformar o então Estado autoritário em um Estado democrático. Entre as reformas debatidas nesse período, estava a da Previdência Social que, com a Constituição de 1988, entrava para o capítulo da Seguridade Social.

A concepção inovadora tratava de implantar um sistema de proteção social mais amplo e inclusivo, onde os seus benefícios fossem universalizados e superassem a visão da equivalência contributiva. Cada um deveria receber de acordo com suas necessidades, e não apenas de acordo com o que contribuía.

Nos dois anos de governo do presidente Fernando Collor de Melo, a partir de um programa neoliberal iniciou-se - antes mesmo que fosse construída a Seguridade Social prevista na Constituição - um processo de desmonte do Estado e de retrocesso quanto à concepção de uma proteção social baseada nos direitos de cidadania.

A década de 90 foi profundamente marcada pela agenda neoliberal, cujas reformas faziam parte das chamadas "condicionalidades" dos empréstimos externos do FMI. Os pontos centrais desta agenda eram:

  • diminuir o déficit fiscal atribuído ao gasto público (partindo da premissa de que gasto público não é investimento - sobretudo o gasto social);
  • promover a reforma do Estado, remodelando suas funções na perspectiva de aumentar a sua "eficiência" através da diminuição de custos;
  • aumentar a "competitividade", reduzindo os custos sociais das em-presas e flexibilizando a mão-de-obra.

Em função dos compromissos firmados com os Organismos Internacionais, a seguridade social no Brasil nunca se constituiu na prática. Apesar da sua "existência" legal e formal, ela foi constrangida do ponto de vista de suas ações, de seu financiamento e de seus gastos. Boa parte do que está escrito na Constituição a respeito da Seguridade Social não foi cumprido.

Recentemente, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, afirmou durante uma teleconferência que para o crescimento econômico do país há duas condições: baixa inflação e contas saudáveis, o que inclui superávit primário e responsabilidade fiscal. Para isso, disse ele, as reformas da Previdência e Tributária são fundamentais.

Mais uma vez, a tão esperada reforma corre o risco de não ir à raiz do problema, apresentando-se apenas "soluções" fragmentadas. É preciso, de uma vez por todas, redefinir a real incidência do gasto previdenciário sobre as contas públicas, sobretudo o seu alegado impacto sobre o déficit fiscal.

Em discurso no Congresso Nacional, a deputada federal Jandira Feghali (PC do B / RJ) destacou a necessidade de se ter tranqüilidade para tratar da reforma previdenciária. Para ela, "não estão na Previdência Social os problemas do país, nem o déficit, nem as nossas dificuldades macroeconômicas, juros altos, desequilíbrio cambial ou problema na infra-estrutura nacional". A deputada disse ainda que a reforma previdenciária urgente é a possibi-lidade da seguridade social incluir os excluídos do sistema previdenciário - 40 milhões de brasileiros.

Se uma Reforma da Previdência é inevitável e necessária, ela não pode ser vista isoladamente. É necessário retomar a perspectiva da Seguridade Social - consagrada na Constituição de 1988 e nunca efetivada - que tenha como propósito maior a construção de um sistema de proteção social que garanta a cidadania a quem não tem possibilidade de incorporação pelo "mercado".

É necessário ir além da lógica individualista que orienta o seguro - pagou, levou. Na sociedade brasileira, a parcela "não-incorporável" ou "não incluída" que não pode "pagar o seguro" para no futuro "levar a aposentadoria" constitui a grande maioria da população. Mesmo num cenário otimista de crescimento econômico, as possibilidades de ampliação de um mercado formal de trabalho ainda são muito remotas no atual contexto mundial.

É preciso superar o individualismo e afirmar a solidariedade. Em lugar do princípio da equivalência - só recebe quem contribui - há que se colocar o princípio da necessidade e do direito. É necessário explicitar que tod@s pagam pela Previdência Social na medida em que os custos das contribuições são repassados aos preços finais dos produtos pelas empresas. Mais do que isso, dada a atual estrutura indireta de impostos, as pessoas pobres pagam proporcionalmente mais impostos que as pessoas ricas. Também é importante salientar que existem contribuições para a Previdência Social, de altíssimo valor, que não são feitas em dinheiro: o cuidado com os familiares é um exemplo típico.

Mulheres e Previdência

O sistema de previdência social, lá nos seus primórdios, concebeu um beneficiário do sexo masculino, trabalhador engajado no mercado formal, chefe de família com vários dependentes, aos quais transmitia seus direitos previdenciários.

Do início do século passado para cá, a vida das trabalhadoras mudou muito. Elas deixaram de ser "dependentes do trabalhador", ingressaram no mercado de trabalho, compartilhando com seus compa-nheiros ou assumindo sozinhas o sustento de suas famílias.

Este esforço das mulheres, entretanto, não obteve a justa contrapartida de seus companheiros, da sociedade e do Estado. As tarefas domésticas, os cuidados com as crianças e os idosos continuam recaindo quase que exclusivamente sobre elas.

Embora a Constituição de 1988 parecesse inaugurar uma época de maior responsabilidade do Estado e da iniciativa privada com a reprodução social, de verdade isto não chegou a acontecer. Nunca se efetivou a obrigação constitucional tanto do Estado quanto das empresas com a educação infantil. Pelo contrário, a partir do governo Collor, as políticas de ajuste neoliberal cortaram gastos do Estado com políticas sociais e repassaram estes custos às famílias, que por sua vez sobrecarregaram as mulheres. A precarização dos serviços de saúde, a redução da oferta de vagas em creches são dois exemplos, entre tantos outros que poderiam ser citados, da transferência das responsabilidades do Estado para as mulheres.

Estudos realizados tanto pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) quanto pela CEPAL sobre as reformas previdenciárias ocorridas em diferentes países da América Latina concluíram que as trabalhadoras são mais vulneráveis a reformas que fortalecem os vínculos entre contribuição previdenciária e direito a benefícios futuros.

A reforma brasileira tem de criar condições mais justas e igualitárias para a participação das mulheres no sistema previdenciário. Grande parte das trabalhadoras está excluída do sistema. E a pequena parcela incluída, está em desvantagem em relação aos trabalhadores do sexo masculino. Os ônus da dupla jornada são altos. No mercado de trabalho, a discriminação contra a mulher tem custos elevados, que se reproduzem e se potencializam no sistema de Previdência Social. Senão, vejamos:

  • As mulheres têm uma remuneração menor do que os homens pelo mesmo trabalho, do que decorre o recolhimento de uma contribuição também menor para a Previdência Social, fator que repercute diretamente sobre o valor da aposentadoria;
  • A maior parte da mão-de-obra feminina está ocupada no mercado informal ou em empregos precários;
  • A participação da mulher no mercado de trabalho é intermitente, em razão de suas atividades na esfera da reprodução social;
  • A taxa de desemprego feminino é cinco pontos percentuais mais elevada que as encontradas entre os homens.

As injustiças estão postas. A aposentadoria diferenciada em cinco anos entre mulheres e homens, longe de ser um privilégio, é uma medida compensatória. Aliás, a única que o Sistema apresenta.

A reforma da Previdência Social em curso deveria propor outras medidas que permitam incluir quem hoje está fora do Sistema. O enfoque de gênero revela a exclusão das mulheres.

De uma perspectiva étnico-racial, revelam-se outros filtros. Basta dizer que, segundo a PNAD/1999, dos 24,6 milhões de contribuintes selecionados para análise, apenas pouco mais de 1/3 dos contribuintes (8,6 milhões ou 34%) era formado por negros, pardos ou indígenas.


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